Alma Feminina - Lina Miotta
As mulheres têm alma? Sabe-se
que a coisa nem sempre foi tida por certa, pois, ao que se diz, foi posta em
deliberação num concílio. A negação ainda é um princípio de fé em certos povos.
Sabe-se a que grau de
aviltamento essa crença as reduziu na maior parte dos países do Oriente. Embora
hoje, nos povos civilizados, a questão esteja resolvida em seu favor, o
preconceito de sua inferioridade moral perpetuou-se a tal ponto que um escritor
do século passado, cujo nome não nos vem à memória, assim definia a mulher:
“Instrumento de prazer do homem”, definição mais muçulmana que cristã. Desse
preconceito nasceu a sua inferioridade legal, ainda não apagada de nossos
códigos. Durante muito tempo elas aceitaram essa submissão como uma coisa
natural, tão poderosa é a força do hábito. Dá-se o mesmo com os que, votados à
servidão de pai a filho, acabam por se julgar de natureza diversa da dos seus
senhores.
Não obstante, o progresso das
luzes resgatou a mulher na opinião. Muitas vezes ela se afirmou pela
inteligência e pelo gênio e a lei, conquanto ainda a considerasse menor, pouco
a pouco afrouxou os laços da tutela. Pode-se considerá-la como emancipada
moralmente, se não o é legalmente. É a este último resultado que ela chegará um
dia, pela força das coisas.
Ultimamente lia-se nos jornais
que uma jovem senhorita de vinte anos acabava de defender o bacharelado com
pleno sucesso perante a faculdade de Montpellier. Dizia-se que era o quarto
diploma concedido a uma mulher. Ainda não faz muito tempo foi agitada a questão
de saber se o grau de bacharel podia ser conferido a uma mulher. Embora a
alguns isto parecesse uma monstruosa anomalia, reconheceu-se que os
regulamentos sobre a matéria não faziam menção às mulheres e, assim, elas não
se achavam excluídas legalmente. Depois de terem reconhecido que elas tinham
alma, lhes reconheceram o direito à conquista dos graus da Ciência, o que já é
alguma coisa. Mas a sua libertação parcial é apenas resultado do
desenvolvimento da urbanidade, do abrandamento dos costumes ou, se quiserem, de
um sentimento mais exato da justiça; é uma espécie de concessão que lhes fazem
e, é preciso que se diga, que lhes regateiam o mais possível.
Hoje, pôr em dúvida a alma da
mulher seria ridículo; mas outra questão muito séria sob outro aspecto, aqui se
apresenta, e cuja solução só pode ser estabelecida se a igualdade de posição
social entre o homem e mulher for um direito natural, ou uma concessão feita
pelo homem. Notemos, de passagem, que se esta igualdade não passar de uma
concessão do homem por condescendência, aquilo que ele der hoje pode ser
retirado amanhã, e que tendo para si a força material, salvo algumas exceções
individuais, em massa ele sempre levará vantagem. Ao passo que se essa
igualdade estiver na Natureza, seu reconhecimento será o resultado do progresso
e, uma vez reconhecido, será imprescritível.
Teria Deus criado almas
masculinas e femininas, fazendo estas inferiores àquelas? Eis toda a questão.
Se assim fosse, a inferioridade da mulher estaria nos decretos divinos e
nenhuma lei humana poderá transgredi-los. Tê-las-ia, ao contrário, criado
iguais e semelhantes? Nesse caso as desigualdades, baseadas na ignorância e na
força bruta, desaparecerão com o progresso e o reinado da justiça.
Entregue a si mesmo, o homem não
podia estabelecer a respeito senão hipóteses mais ou menos racionais, mas
sempre questionáveis. Nada no mundo poderia dar-lhe a prova material do erro ou
da verdade de suas opiniões. Para se esclarecer, seria preciso remontar à
fonte, pesquisar nos arcanos do mundo extracorpóreo, que não conhece. Estava
reservado ao Espiritismo resolver a questão, não mais pelos raciocínios, mas
pelos fatos, quer pelas revelações de além-túmulo, quer pelo estudo que
diariamente pode fazer sobre o estado das almas depois da morte. E, coisa
capital, esses estudos não são o fato nem de um só homem, nem das revelações de
um só Espírito, mas o produto de inúmeras observações idênticas, feitas todos
os dias por milhares de indivíduos, em todos os países, e que assim receberam a
sanção poderosa do controle universal, sobre o qual se apoiam todas as
doutrinas da ciência espírita. Ora, eis o que resulta dessas observações.
As almas ou Espíritos não têm
sexo. As afeições que os unem nada têm de carnal e, por isto mesmo, são mais
duráveis, porque fundadas numa simpatia real e não são subordinadas às
vicissitudes da matéria.
As almas se encarnam, isto é,
revestem temporariamente um envoltório carnal, para elas semelhante a uma
pesada vestimenta, de que a morte as desembaraça. Esse invólucro material,
pondo-as em contato com o mundo material, nesse estado elas concorrem ao
progresso material do mundo que habitam; a atividade a que são obrigadas a
desenvolver, seja para a conservação da vida, seja para alcançarem o bem-estar,
auxilia-lhes o avanço intelectual e moral. A cada encarnação a alma chega mais
desenvolvida; traz novas ideias e os conhecimentos adquiridos nas existências
anteriores. Assim se efetua o progresso dos povos; os homens civilizados de
hoje são os mesmos que viveram na Idade Média e nos tempos de barbárie, e que
progrediram; os que viverem nos séculos futuros serão os de hoje, porém mais
avançados, intelectual e moralmente.
Os sexos só existem no
organismo; são necessários à reprodução dos seres materiais. Mas os Espíritos,
sendo criação de Deus, não se reproduzem uns pelos outros, razão pela qual os
sexos seriam inúteis no mundo espiritual.
Os Espíritos progridem pelos
trabalhos que realizam e pelas provas que devem sofrer, como o operário se
aperfeiçoa em sua arte pelo trabalho que faz. Essas provas e esses trabalhos
variam conforme sua posição social. Devendo os Espíritos progredir em tudo e
adquirir todos os conhecimentos, cada um é chamado a concorrer aos diversos
trabalhos e a sujeitar-se aos diferentes gêneros de provas. É por isso que,
alternadamente, nascem ricos ou pobres, senhores ou servos, operários do
pensamento ou da matéria.
Assim se acha fundado, sobre as
próprias leis da Natureza, o princípio da igualdade, pois o grande da véspera
pode ser o pequeno do dia seguinte e reciprocamente. Desse princípio decorre o
da fraternidade, visto que, em nossas relações sociais, reencontramos antigos
conhecimentos, e no infeliz que nos estende a mão pode encontrar-se um parente
ou um amigo.
É com o mesmo objetivo que os
Espíritos se encarnam nos diferentes sexos; aquele que foi homem poderá
renascer mulher, e aquele que foi mulher poderá nascer homem, a fim de realizar
os deveres de cada uma dessas posições, e sofrer-lhes as provas.
A Natureza fez o sexo feminino
mais fraco que o outro, porque os deveres que lhe incumbem não exigem igual
força muscular e seriam até incompatíveis com a rudeza masculina. Nela a
delicadeza das formas e a finura das sensações são admiravelmente apropriadas
aos cuidados da maternidade. Aos homens e às mulheres, são, pois, atribuídos
deveres especiais, igualmente importantes na ordem das coisas; são dois
elementos que se completam um pelo outro.
Sofrendo o Espírito encarnado a
influência do organismo, seu caráter se modifica conforme as circunstâncias e
se dobra às necessidades e exigências que lhe impõe esse mesmo organismo. Esta
influência não se apaga imediatamente após a destruição do envoltório material,
assim como não perde instantaneamente os gostos e hábitos terrenos. Depois,
pode acontecer que o Espírito percorra uma série de existências no mesmo sexo,
o que faz que, durante muito tempo, possa conservar, no estado de Espírito, o
caráter de homem ou de mulher, cuja marca nele ficou impressa. Somente quando
chegado a um certo grau de adiantamento e de desmaterialização é que a
influência da matéria se apaga completamente e, com ela, o caráter dos sexos.
Os que se nos apresentam como homens ou como mulheres, é para nos lembrar a
existência em que os conhecemos.
Se essa influência se repercute
da vida corporal à vida espiritual, o mesmo se dá quando o Espírito passa da
vida espiritual à vida corporal. Numa nova encarnação ele trará o caráter e as
inclinações que tinha como Espírito; se for avançado, será um homem avançado;
se for atrasado, será um homem atrasado.
Mudando de sexo, sob essa
impressão e em sua nova encarnação, poderá conservar os gostos, as inclinações
e o caráter inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas
anomalias aparentes que se notam no caráter de certos homens e de certas
mulheres.
Não existe, pois, diferença
entre o homem e a mulher, senão no organismo material, que se aniquila com a
morte do corpo; mas quanto ao Espírito, à alma, ao ser essencial, imperecível,
ela não existe, porque não há duas espécies de almas. Assim o quis Deus em sua
justiça, para todas as suas criaturas. Dando a todas um mesmo princípio, fundou
a verdadeira igualdade. A desigualdade só existe temporariamente no grau de
adiantamento; mas todas têm direito ao mesmo destino, ao qual cada uma chega
por seu trabalho, porque Deus não favoreceu ninguém à custa dos outros.
A doutrina materialista coloca a
mulher numa inferioridade natural, da qual só é elevada pela boa vontade do
homem. Com efeito, segundo essa doutrina, a alma não existe ou, se existe,
extingue-se com a vida ou se perde no todo universal, o que vem a dar no mesmo.
Assim, só resta à mulher a sua fraqueza corporal, que a põe sob a dependência
do mais forte. A superioridade de algumas não passa de uma exceção, de uma
bizarria da Natureza, de um jogo de órgãos, e não poderia fazer lei.
A doutrina espiritualista vulgar
reconhece a existência da alma individual e imortal, mas é impotente para
provar que não há diferença entre a do homem e a da mulher e, por conseguinte,
uma superioridade natural de uma sobre a outra.
Com a Doutrina Espírita, a
igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; já não é uma
concessão da força à fraqueza, mas um direito fundado nas próprias leis da
Natureza. Dando a conhecer essas leis, o Espiritismo abre a era da emancipação
legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade.