terça-feira, 12 de novembro de 2024

O TAMBOR DE BERESINA[1]

 

Batalha de Beresina

Allan Kardec

 

Tendo-se reunido em nossa casa algumas pessoas, com vistas a constatar certas manifestações, produziram-se os fatos que se seguem, no curso de várias sessões, originando a conversa que vamos relatar, e que apresenta um grande interesse do ponto de vista do estudo.

Manifestou-se o Espírito por pancadas, que não eram dadas com o pé da mesa, mas na própria intimidade da madeira. A troca de ideias que então ocorreu, entre os presentes e o ser invisível, não permitia duvidar da intervenção de uma inteligência oculta. Além das respostas a várias perguntas, seja por sim, seja por não, seja ainda por meio da tiptologia alfabética, os golpes batiam à vontade uma marcha qualquer, o ritmo de uma ária, imitavam a fuzilaria e o canhoneiro de uma batalha, o barulho do tanoeiro e do sapateiro; faziam eco com admirável precisão etc. Depois ocorreu o movimento de uma mesa e sua translação sem qualquer contato das mãos, uma vez que os assistentes se mantinham afastados; colocada sobre a mesa, em vez de girar uma saladeira pôs-se a deslizar em linha reta, igualmente sem contato com as mãos. Os golpes eram ouvidos do mesmo modo, nos diversos móveis do quarto, algumas vezes simultaneamente; outras, como se estivessem respondendo.

O Espírito parecia ter uma marcante predileção pelo toque de tambor, pois que os repetia a cada instante sem que se lhe pedisse. Muitas vezes, em lugar de responder a certas perguntas, batia a generala ou tocava o reunir. Interrogado sobre várias particularidades de sua vida, disse chamar-se Célima, ter nascido em Paris, falecido aos quarenta e cinco anos e sido tocador de tambor.

Entre os assistentes, além do médium especial de efeitos físicos que produzia as manifestações, havia um excelente médium psicógrafo que serviu de intérprete ao Espírito, o que nos permitiu obter respostas mais explícitas. Tendo confirmado, pela escrita, o que havia dito pela tiptologia a propósito de seu nome, lugar de nascimento e época da morte, foi-lhe dirigida a série de perguntas que se segue, cujas respostas oferecem vários traços característicos que corroboram certas partes essenciais da teoria.

 

1. Escreve qualquer coisa, o que quiseres.

– Ran plan plan, ran, plan, plan.

2. Por que escreveste isso?

– Eu era tocador de tambor.

3. Havias recebido alguma instrução?

– Sim.

4. Onde fizeste teus estudos?

– Nos Ignorantins[2]

5. Pareces jovial.

– Eu o sou bastante.

6. Uma vez nos disseste que, em vida, gostavas muito de beber; é verdade?

– Eu gostava de tudo o que era bom.

7. Eras militar?

– Claro que sim, pois que era tocador de tambor.

8. Sob que governo serviste?

– Sob Napoleão, o Grande.

9. Podes citar-nos uma das batalhas em que tomaste parte?

– A de Beresina.

10. Foi lá que morreste?

– Não.

11. Estavas em Moscou?

– Não.

12. Onde morreste?

– Na neve.

13. Em que corpo servias?

– Nos fuzileiros da guarda.

14. Gostavas muito de Napoleão, o Grande?

– Como todos nós o amávamos, e sem saber o porquê!

15. Sabes em que se tornou Napoleão depois de sua morte?

– Depois de minha morte só me ocupei de mim mesmo.

16. Estás reencarnado?

– Não, pois que venho conversar convosco.

17. Por que te manifestas por pancadas, sem que tenhas sido chamado?

– É preciso fazer barulho para aqueles cujo coração nada crê. Se não tendes o bastante, dar-vos-ei ainda mais.

18. É de tua própria vontade que vieste bater, ou um outro Espírito obrigou-te a fazê-lo?

– Venho por minha vontade; há um outro, a quem chamais Verdade, que pode forçar-me a isto também. Mas há muito tempo que eu queria vir.

19. Com que objetivo querias vir?

– Para conversar convosco; era o que queria; havia, porém, alguma coisa que me impedia. Fui forçado por um Espírito familiar da casa, que me exortou a tornar-me útil às pessoas que me fizessem perguntas.

Esse Espírito, então, tem muito poder, visto comandar outros Espíritos?

– Mais do que imaginais, e não o emprega senão para o bem.

 

Observação – O Espírito familiar da casa deu-se a conhecer sob o nome alegórico de Verdade, circunstância ignorada do médium.

 

20. O que te impedia de vir?

– Não sei; alguma coisa que não compreendo.

21. Lamentas a vida?

– Não; nada lamento.

22. Qual a existência que preferes: a atual ou a terrestre?

– Prefiro a existência do Espírito à do corpo.

23. Por quê?

– Porque estamos bem melhor do que na Terra. A Terra é um purgatório; durante todo o tempo em que nela vivi, sempre desejei a morte.

24. Sofres em tua nova situação?

– Não; mas ainda não sou feliz.

25. Ficarias satisfeito se tivesses uma nova existência corporal?

– Sim, porque sei que devo elevar-me.

26. Quem te disse isso?

– Eu o sei bem.

27. Reencarnarás logo?

– Não sei.

28. Vês outros Espíritos à tua volta?

– Sim; muitos.

29. Como sabes que são Espíritos?

– Entre nós, vemo-nos tais quais somos.

30. Sob qual aparência os vês?

– Como se podem ver os Espíritos; mas não pelos olhos.

31. E tu, sob que forma estás aqui?

– Sob a que tinha quando vivo, isto é, como tocador de tambor.

32. E os outros Espíritos? Tu os vês sob a forma que possuíam quando estavam encarnados?

– Não; só tomamos uma aparência quando somos evocados, de outro modo nos vemos sem forma.

33. Tu nos vês tão claramente como se estivesses vivo?

– Sim, perfeitamente.

34. É através dos olhos que nos vês?

– Não; temos uma forma, mas não temos sentidos; nossa forma é apenas aparente.

 

Observação – Seguramente os Espíritos têm sensações, já que percebem; se assim não fora, seriam inertes; contudo, suas sensações não são localizadas, como quando têm um corpo, mas inerentes a todo o ser.

 

35. Dize-nos positivamente em que lugar estás aqui.

– Perto da mesa, entre vós e o médium.

36. Quando bates, estás sob a mesa, em cima dela ou na intimidade da madeira?

– Estou ao lado; não me meto na madeira: basta-me tocar a mesa.

37. Como produzes os ruídos que fazes ouvir?

– Creio que é por intermédio de uma espécie de concentração de nossa força.

38. Poderias explicar-nos a maneira pela qual são produzidos os diferentes ruídos que imitas, as arranhaduras, por exemplo?

– Eu não saberia precisar muito a natureza dos ruídos; é difícil de explicar. Sei que arranho, mas não posso explicar como produzo esse ruído que chamais de arranhadura.

39. Poderias produzir os mesmos ruídos com qualquer outro médium?

– Não; há especialidade em todos os médiuns; nem todos podem agir da mesma forma.

40. Vês entre nós, além do jovem S... (o médium de efeitos físicos pelo qual o Espírito se manifesta), alguém que poderia te ajudar a produzir os mesmos efeitos?

– No momento não vejo ninguém; com ele eu estaria muito disposto a fazê-lo.

41. Por que com ele e não com outro?

– Porque o conheço mais; depois, porque está mais apto do que qualquer outro a esse gênero de manifestações.

42. Tu o conhecias há muito tempo? Antes de sua atual existência?

– Não; só o conheço há bem pouco tempo; de alguma sorte a ele fui atraído para que se tornasse meu instrumento.

43. Quando uma mesa se eleva no ar, sem ponto de apoio, quem a sustenta?

– Nossa vontade, que lhe ordenou obedecer e, também, o fluido que lhe transmitimos.

 

Observação – Essa resposta vem apoiar a teoria que nos foi dada sobre a causa das manifestações físicas e que relatamos nos números 5 e 6 desta Revista.

 

44. Poderias fazê-lo?

– Creio que sim; tentarei quando o médium vier (nesse momento ele estava ausente).

45. De que depende isso?

– Depende de mim, pois me sirvo do médium como de um instrumento.

46. Mas a qualidade do instrumento não conta para alguma coisa?

– Sim, auxilia-me muito; tanto é assim que eu disse não poder fazê-lo hoje com outros médiuns.

 

Observação – No curso da sessão tentou-se levantar a mesa, mas não se obteve êxito, talvez porque não tivesse havido bastante perseverança; houve esforços evidentes e movimentos de translação sem contato nem imposição das mãos. Entre as experiências feitas destacou-se a da abertura da mesa, que era elástica; porque oferecesse muita resistência, em face de um defeito de construção, foi posta de lado, enquanto o Espírito tomava uma outra e conseguia abri-la.

 

47. Por que, outro dia, os movimentos da mesa se detinham a cada vez que um de nós tomava de uma luz para olhar embaixo dela?

– Porque eu queria punir a vossa curiosidade.

48. De que te ocupas em tua existência de Espírito, considerando que não deves passar o tempo todo somente a bater?

– Muitas vezes tenho missões a cumprir; devemos obedecer a ordens superiores e, sobretudo, fazer o bem aos seres humanos que estão sob nossa influência.

49. Por certo tua vida terrestre não foi isenta de faltas; reconhece-as, agora?

– Sim; e por isso as expio, permanecendo estacionário entre os Espíritos inferiores; só poderei purificar-me bastante quando tomar um outro corpo.

50. Quando aplicavas os golpes na mesa e, ao mesmo tempo, em outro móvel, eras tu quem os produzia, ou era um outro Espírito?

– Era eu mesmo.

51. Estavas só, portanto?

– Não, mas realizava sozinho o trabalho de bater.

52. Os demais Espíritos que lá se encontravam não te auxiliavam em alguma coisa?

– Não para bater, mas para falar.

53. Então não eram Espíritos batedores?

– Não; a Verdade somente a mim havia permitido bater.

54. Algumas vezes os Espíritos batedores não se reuniam em maior número, com o fim de haver mais força na produção de certos fenômenos?

– Sim, mas para aqueles que eu podia fazer, a mim só bastava.

55. Estás sempre na Terra, em tua existência espiritual?

Mais frequentemente no espaço.

56. Vais algumas vezes a outros mundos, isto é, a outros globos?

– Não aos mais perfeitos, mas aos mundos inferiores.

57. Por vezes te divertes em ver e ouvir o que fazem os homens?

– Não; entretanto, algumas vezes tenho piedade deles.

58. De preferência, quais aqueles que procuras?

– Os que querem crer de boa-fé.

59. Poderias ler os nossos pensamentos?

– Não; não leio nas almas; não sou bastante perfeito para isso.

60. Todavia, deves conhecer nossos pensamentos, já que vens entre nós; de outra forma, como poderias saber se cremos de boa-fé?

– Não leio, mas compreendo.

 

Observação – A pergunta 58 tinha por objetivo saber a quem, espontaneamente, dirigia sua preferência na vida de Espírito, sem ser evocado; através da evocação, como Espírito de uma ordem pouco elevada, poderia ser constrangido a vir a um meio que lhe desagradasse. Por outro lado, sem ler propriamente os nossos pensamentos, por certo poderia ver que as pessoas ali reunidas não o faziam senão com um objetivo sério e, pela natureza das perguntas e da conversa que ouvisse, seria capaz de julgar se a assembleia era composta de pessoas sinceramente desejosas de se esclarecerem.

 

61. Encontraste alguns dos teus antigos companheiros do Exército no mundo dos Espíritos?

– Sim, mas suas posições eram tão diferentes que não os reconheci a todos.

62. Em que consistia essa diferença?

– Na situação feliz ou infeliz de cada um.

63. Como entendias essa subida para Deus?

– Cada degrau transposto é um degrau a mais até Ele.

64. Disseste que morreste na neve; foi em consequência do frio?

– De frio e de necessidade.

65. Tiveste consciência imediata de tua nova existência?

– Não, mas já não sentia mais frio.

66. Alguma vez retornaste ao local onde deixaste teu corpo?

– Não, ele me fez sofrer bastante.

67. Nós te agradecemos as explicações que tiveste a bondade de dar-nos. Elas nos forneceram material de observação muito útil para o nosso aperfeiçoamento na ciência espírita.

– Estou inteiramente às vossas ordens.

 

Observação – Pouco avançado na hierarquia espírita, como se vê, o próprio Espírito reconhecia a sua inferioridade. Seus conhecimentos são limitados; mas tem bom senso, sentimentos louváveis e benevolência. Como Espírito, sua missão carecia de significado, visto que desempenhava o papel de Espírito batedor para chamar os incrédulos à fé; contudo, mesmo no teatro, a humilde indumentária de comparsa não pode envolver um coração honesto?

Suas respostas têm a simplicidade da ignorância; entretanto, pelo fato de não possuírem a elevação da linguagem filosófica dos Espíritos superiores, nem por isso deixam de ser menos instrutivas, sobretudo para o estudo dos costumes espíritas, se assim nos podemos exprimir. É somente estudando todas as classes desse mundo que nos aguarda que podemos chegar a conhecê-lo e nele marcar, de algum modo, por antecipação, o lugar que a cada um de nós será dado ocupar. Vendo a situação que, por seus vícios e virtudes, criaram os homens, nossos iguais aqui na Terra, sentimo-nos encorajados para nos elevar o mais rapidamente possível desde esta vida: é o exemplo ao lado da teoria. Para conhecermos bem alguma coisa, e dela fazermos uma ideia isenta de ilusões, é preciso dissecá-la em todos os seus aspectos, assim como o botânico não pode conhecer o reino vegetal a não ser observando desde o mais humilde criptógamo, que o musgo oculta, até o carvalho altaneiro, que se eleva nos ares.



[1][1] REVISTA ESPÍRITA – junho/1858 – Allan Kardec

[2] N. do T.: Grifo nosso.

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