terça-feira, 26 de novembro de 2024

HABITAÇÕES DO PLANETA JÚPITER[1]

 


Allan Kardec

 

Se há um fato que gera perplexidade entre certas pessoas convencidas da existência dos Espíritos – não nos ocuparemos aqui das outras – é seguramente a existência de habitações em suas cidades, tal como ocorre entre nós. Não me pouparam de críticas:

Casas de Espíritos em Júpiter!... Que gozação!... Que seja, nada tenho a ver com isso. Se o leitor aqui não encontra, na verossimilhança das explicações, uma prova suficiente de sua veracidade; se, como nós, não se surpreende com a perfeita concordância das revelações espíritas com os dados mais positivos da ciência astronômica; numa palavra, se não vê senão uma hábil mistificação nos detalhes que se seguem e no desenho que os acompanha, eu o convido a pedir explicação aos Espíritos, de quem sou apenas o instrumento e o eco fiel. Que ele evoque Palissy ou Mozart, ou outro habitante desse mundo bem-aventurado; que sejam interrogados, que minhas afirmações sejam controladas pelas suas; que, enfim, discutam com eles. Quanto a mim, apenas apresento o que me foi dado, repetindo somente o que me foi dito. E, por esse papel absolutamente passivo, creio-me ao abrigo tanto da censura quanto do elogio.

Feita essa ressalva, e uma vez admitida a confiança nos Espíritos, se se aceitar como verdadeira a única doutrina realmente bela e sábia que a evocação dos Espíritos nos revelou até aqui, isto é, a migração das almas de planeta em planeta, suas encarnações sucessivas e seu progresso incessante pelo trabalho, as habitações de Júpiter não nos deverão mais causar admiração. Desde que o Espírito se encarna num mundo submetido, como o nosso, a uma dupla revolução, isto é, à alternativa de dias e noites e ao retorno periódico das estações; desde que tenha um corpo, por mais frágil seja esse envoltório material, não reclama apenas alimentação e vestuário, mas, também, um abrigo ou, pelo menos, um local de repouso, consequentemente uma casa. Com efeito, foi exatamente isso que nos disseram. Como nós, e melhor que nós, os habitantes de Júpiter têm seus lares comuns e suas famílias, grupos harmoniosos de Espíritos simpáticos, unidos no triunfo depois de o haverem sido na luta. Daí as moradas tão espaçosas, que podemos chamar, merecidamente, de palácios. Como nós, ainda, esses Espíritos têm suas festas, suas cerimônias, suas reuniões públicas, o que explica a existência de edifícios especialmente destinados a essas finalidades.

Finalmente, devemos encontrar nessas regiões superiores toda uma Humanidade, ativa e laboriosa como a nossa, como nós submetida a leis, necessidades e deveres, com a só diferença de que o progresso, rebelde aos nossos esforços, torna-se conquista fácil para os Espíritos que já se despojaram de nossos vícios terrestres.

Não deveria ocupar-me aqui senão da arquitetura de suas habitações; contudo, para a exata compreensão dos detalhes que se seguem, uma palavra de explicação não será inútil. Se Júpiter só é acessível aos Espíritos bons, daí não se segue que sejam excelentes no mesmo grau todos os seus habitantes: entre a bondade do simples e o homem de gênio, é permitido contar vários matizes.

Ora, toda a organização social desse mundo superior repousa precisamente sobre as variedades de inteligência e de aptidões, cabendo aos Espíritos superiores, aos mais depurados, por efeito de leis harmoniosas cuja explicação seria muito longa apresentar aqui, a alta direção de seu planeta. Essa supremacia não se detém aí, estendendo-se até os mundos inferiores, onde esses Espíritos, por sua influência, favorecem e ativam incessantemente o progresso religioso, gerador dos demais. É preciso acrescentar que para esses Espíritos depurados não haveria senão trabalhos intelectuais, pois suas atividades só se exercem no domínio do pensamento e eles já conquistaram bastante império sobre a matéria para não serem senão debilmente entravados por ela no livre exercício de sua vontade. O corpo desses Espíritos, como aliás o de todos os que habitam Júpiter, é de uma densidade tão leve que só encontra termo de comparação nos fluidos imponderáveis: um pouco maior do que o nosso, do qual reproduz exatamente a forma, embora mais pura e mais bela, ele se nos apresentaria sob a aparência de um vapor, termo que emprego a contragosto, por designar uma substância ainda muito grosseira; de um vapor, dizia eu, impalpável e luminoso... luminoso sobretudo nos contornos do rosto e da cabeça, porquanto ali a inteligência e a vida irradiam-se como um foco muito ardente. E é justamente esse brilho magnético, entrevisto pelos visionários cristãos, que nossos pintores traduziram pelo nimbo ou auréola dos santos.

Compreende-se que um tal corpo em nada dificulte as comunicações extramundanas desses Espíritos, permitindo-lhes, em seu planeta, um deslocamento pronto e fácil. Ele se subtrai tão facilmente à atração planetária, e sua densidade difere tão pouco daquela da atmosfera, que nela pode agitar-se, ir e vir, descer ou subir ao capricho do Espírito e sem outro esforço senão a vontade.

Assim, alguns dos personagens que Palissy teve a gentileza de me fazer desenhar estão representados tocando o solo levemente ou a superfície das águas, ou ainda bastante elevadas no ar, com inteira liberdade de ação e de movimentos que atribuímos aos anjos.

Quanto mais depurado o Espírito, tanto mais fácil é essa locomoção, o que se concebe sem dificuldade; nada também é mais fácil aos habitantes do planeta do que avaliar, logo à primeira vista, o valor de um Espírito que passa; dois sinais falarão por ele: a altura de seu voo e a luz mais ou menos brilhante de sua auréola.

Em Júpiter, como em toda parte, os que alçam voos mais altos são os mais raros; abaixo deles, é preciso contar várias camadas de Espíritos inferiores, tanto em virtude quanto em poder, mas naturalmente livres para os igualarem um dia, quando se aperfeiçoarem. Escalonados e classificados conforme os seus méritos, estes se dedicam mais particularmente aos trabalhos que interessam ao próprio planeta, não exercendo, sobre os mundos inferiores, a autoridade toda poderosa dos primeiros. É verdade que respondem a uma evocação, através de revelações sábias e boas, mas, pela presteza que demonstram em nos deixar e pelo laconismo de suas palavras, é fácil compreender que têm muito o que fazer em outra parte, e que não se encontram ainda suficientemente desprendidos para se fazerem irradiar simultaneamente em dois pontos tão distantes um do outro. Enfim, seguindo os menos perfeitos desses

Espíritos, mas deles separados por um abismo, vêm os animais que, como únicos serviçais e únicos trabalhadores do planeta, merecem uma menção toda especial.

Se designamos pelo nome de animais os seres bizarros que ocupam a base da escala, é porque os próprios Espíritos o utilizaram e também em razão de nossa língua não dispor de melhor termo para nos oferecer. Essa designação os avilta bastante; chamá-los, porém, de homens seria conceder-lhes muita honra; de fato, são Espíritos votados à animalidade, talvez por muito tempo ou, quem sabe, para sempre. Contudo, nem todos os Espíritos são concordes com esse ponto e a solução do problema parece pertencer a mundos mais elevados que Júpiter; seja qual for o seu futuro, entretanto, não há equívocos sobre o seu passado. Antes de ir para lá, esses Espíritos emigraram sucessivamente em nossos mundos inferiores, do corpo de um ao de outro animal, através de uma escala de aperfeiçoamento perfeitamente graduada. O estudo atento de nossos animais terrestres, seus costumes, suas características individuais, sua ferocidade longe do homem e sua domesticação lenta, mas sempre possível, tudo indica suficientemente a realidade dessa ascensão animal.

Desse modo, para qualquer lado que nos voltemos, a harmonia do Universo se resume sempre em uma única lei: o progresso, por toda parte e para todos, para o animal como para a planta, para planta como para o mineral; progresso puramente material, a princípio, nas moléculas insensíveis do metal ou do calhau, para tornar-se cada vez mais inteligente à medida que ascendemos à escala dos seres e que a individualidade tende a desembaraçar-se da massa, a afirmar-se, a conhecer-se.

Pensamento elevado e consolador, jamais imaginado antes, porquanto nos prova que nada é sacrificado, que a recompensa é sempre proporcional ao progresso realizado; o devotamento do cão, por exemplo, que morre pelo dono, não é estéril para o seu Espírito, cujo salário justo haverá de receber além deste mundo.

É o caso dos Espíritos animais que povoam Júpiter; eles se aperfeiçoaram ao mesmo tempo que nós, conosco e com o nosso auxílio. A lei é mais admirável ainda: faz tão bem de seu devotamento ao homem a primeira condição de sua ascensão planetária, que a vontade de um Espírito de Júpiter pode chamar a si todo animal que, numa de suas vidas anteriores, lhe haja dado provas de afeição. Essas simpatias, que lá no alto formam famílias de Espíritos, também agrupam em torno das famílias todo um cortejo de animais devotados. Em consequência, nosso apego neste mundo por um animal, o cuidado que tomamos de domesticá-lo e de humanizá-lo, tudo isso tem sua razão de ser, tudo será pago: é um bom ajudante que preparamos antecipadamente para um mundo  melhor.

Será assim um operário, porquanto aos seus semelhantes está reservado todo trabalho material, toda tarefa corporal: carga ou obras pesadas, semeadura ou colheita. E para tudo isso a Suprema Inteligência preparou um corpo que participa ao mesmo tempo das vantagens do animal e do homem. Podemos fazer uma avaliação pelo esboço de Palissy, representando alguns desses animais muito aplicados em jogar bola. Eu não os poderia melhor comparar senão aos faunos e aos sátiros da Fábula; o corpo, levemente peludo é, entretanto, aprumado como o nosso; entre alguns as patas desapareceram, dando lugar a certas pernas que ainda lembram a forma primitiva, os dois braços robustos, singularmente implantados e terminados por verdadeiras mãos, se levarmos em conta a oposição dos polegares. Coisa bizarra: a cabeça não é tão aperfeiçoada quanto o resto! Dessa forma, a fisionomia reflete bem alguma coisa de humano, mas o crânio, o maxilar e, sobretudo, a orelha não apresentam diferenças sensíveis em relação aos animais terrestres. É, pois, fácil distingui-los entre si: este é um cão, aquele é um leão.

Convenientemente vestidos com blusas e vestes muito semelhantes às nossas, eles só faltam falar para lembrar de bem perto certos homens daqui; eis precisamente o que lhes falta e que não poderiam fazer. Hábeis para se entenderem entre si, por meio de uma linguagem que nada tem da nossa, não mais se enganam sobre as intenções dos Espíritos que os comandam: basta um olhar, um gesto. A certos abalos magnéticos, dos quais nossos domadores de bestas já conhecem o segredo, o animal advinha e obedece sem murmurar e, melhor ainda, com boa vontade, porque está fascinado. É desse modo que lhe é imposta toda a tarefa pesada e que, com seu auxílio, tudo funciona regularmente de um extremo ao outro da escala social: o Espírito elevado pensa e delibera, o espírito inferior age com sua própria iniciativa e o animal executa. Assim, a concepção, a execução e o fato se unem numa mesma harmonia, levando todas as coisas a uma solução mais rápida, pelos meios mais simples e mais seguros.

Pedimos desculpas por essa digressão: ela era indispensável ao assunto que agora podemos abordar.

Enquanto aguardamos as cartas prometidas, que facilitarão singularmente o estudo de todo o planeta, podemos, pelas descrições feitas pelos Espíritos, fazer uma ideia de sua grande cidade, da cidade por excelência, desse foco de luz e de atividade que eles concordam estranhamente em designar pelo nome latino de Julnius.

No maior de nossos continentes – diz Palissy – em um vale de setecentas a oitocentas léguas de largura, para contar como vós, um rio magnífico desce das montanhas do norte e, engrossado por uma porção de torrentes e de ribeirões, forma em seu percurso sete ou oito lagos, dos quais o menor mereceria entre vós o nome de mar. Foi sobre as margens do maior desses lagos, por nós batizado com o nome de Pérola, que nossos antepassados lançaram os primeiros fundamentos de Julnius. Essa cidade primitiva ainda existe, venerada e guardada como preciosa relíquia. Sua arquitetura difere muito da vossa. Explicar-vos-ei tudo isso em seu devido tempo; por ora ficai sabendo que a cidade moderna está apenas a algumas centenas de metros abaixo da antiga. Limitado entre altas montanhas, o lago se derrama no vale por oito enormes cataratas, que formam outras tantas correntes isoladas e dispersas em todos os sentidos. Com o auxílio dessas correntes, cavamos na planície uma porção de riachos, canais e pequenos lagos, reservando a terra firme apenas para nossas casas e jardins. Disso resultou uma espécie de cidade anfíbia, como vossa Veneza e da qual, à primeira vista, não se poderia dizer se está construída na terra ou sobre a água. Nada vos direi hoje de quatro edifícios sagrados, construídos sobre a própria vertente das cataratas, de sorte que a água jorra aos borbotões de seus pórticos: são obras que vos pareceriam incríveis em grandeza e em ousadia.

É a cidade terrestre que descrevo aqui, de certo modo material, a cidade das ocupações planetárias, a que chamamos, enfim, de Cidade baixa. Tem suas ruas ou, melhor dizendo, seus caminhos traçados para o serviço interno; tem suas praças públicas, seus pórticos e suas pontes lançadas sobre canais para a passagem dos serviçais. Mas a cidade inteligente, a cidade espiritual, a verdadeira Julnius, finalmente, não se encontra na Terra: é preciso que se a procure no ar.

“O corpo material dos animais incapazes de voar[2] necessita de terra firme; mas o que o nosso corpo fluídico e luminoso exige é uma habitação aérea como ele, quase impalpável e móvel, a nosso bel-prazer. Nossa habilidade resolveu esse problema, auxiliada pelo tempo e pelas condições privilegiadas que o Grande Arquiteto nos havia concedido. Compreende bem que essa conquista dos ares era indispensável a Espíritos como os nossos. Nosso dia tem a duração de cinco horas, e nossa noite igualmente dura o mesmo tempo; mas tudo é relativo e, para seres aptos a pensar e a agir como o fazemos, para Espíritos que se compreendem pela linguagem dos olhos e que sabem comunicar-se magneticamente a distância, nosso dia de cinco horas já igualaria uma de vossas semanas. Em nossa opinião era ainda muito pouco; e a imobilidade da morada, o ponto fixo do lar eram um entrave para todas as nossas grandes obras. Hoje, pelo deslocamento rápido dessas moradas de pássaros, pela possibilidade de nos transportarmos, bem como os nossos, a tal ou qual endereço do planeta e à hora do dia que nos apraza, nossa existência pelo menos dobrou e, com ela, tudo quanto se possa conceber de útil e de grandioso.

Em determinadas épocas do ano – aduz o Espírito – em certas festas, por exemplo, verás aqui o céu obscurecido pela nuvem de habitações que nos vem de todos os pontos do horizonte. É um curioso agregado de moradias esbeltas, graciosas, leves, de todas as formas, de todas as cores, equilibradas em diferentes alturas e continuamente em marcha, da cidade baixa para a cidade celeste: alguns dias depois, faz-se o vácuo pouco a pouco e todos esses pássaros desaparecem.

Nada falta nessas moradas flutuantes, nem mesmo o encanto da verdura e das flores. Refiro-me a uma vegetação que não encontra paralelo entre vós, de plantas e até de arbustos que, pela natureza de seus órgãos, respiram, alimentam-se, vivem e se reproduzem no ar.

Temos – diz ainda o mesmo Espírito – esses tufos de flores enormes, cujas formas e matizes nem podeis imaginar, e de uma leveza de tecido tão delicada que os torna quase transparentes. Balançando no ar, sustentados por grandes folhas e munidos de gavinhas semelhantes às da videira, reúnem-se em nuvens de mil tonalidades ou se dispersam ao sabor do vento, oferecendo um espetáculo encantador aos viandantes da cidade baixa... Imagina a graça dessas jangadas de verdura, desses jardins flutuantes que nossa vontade pode fazer e desfazer e que, algumas vezes, duram toda uma estação! Longas fieiras de lianas e de ramos floridos destacam-se dessas alturas e se dependuram até o solo; cachos enormes se agitam, despetalando-se e liberando perfume... Os Espíritos que se deslocam no ar param à sua passagem: é um lugar de repouso e de encontro, ou, se quisermos, um meio de transporte para terminar a viagem sem fadiga e em boa companhia.

Um outro Espírito estava sentado sobre uma dessas flores quando o evoquei. Disse-me ele:

Neste instante  é noite em Julnius, e me encontro sentado à distância sobre uma dessas flores aéreas que aqui desabrocham somente à claridade de nossas luas. Sob meus pés, toda a cidade baixa está entregue ao sono; sobre minha cabeça e ao meu redor, contudo, e a perder de vista, não há senão movimento e alegria no espaço. Dormimos pouco: nossa alma encontra-se muito desprendida para que as necessidades do corpo a tiranizem, e a noite é feita mais para os nossos servos do que para nós. É a hora das visitas e das longas conversas, dos passeios solitários, dos devaneios, da música... Só vejo moradas aéreas, resplandecentes de luz, ou guirlandas de folhas e flores carregadas de bandos alegres... A primeira de nossas lua ilumina toda a cidade baixa: é uma luz suave, comparável à dos vossos luares; mas, ao lado do lago, a segunda se eleva, emitindo reflexos esverdeados que dão a todo o rio o aspecto de um vasto prado...

É sobre a margem direita desse rio, diz o Espírito, “cuja água te ofereceria a consistência de um leve vapor[3]”, que está construída a casa de Mozart, que por meu intermédio Palissy houve por bem reproduzir sobre o cobre. Só apresento aqui a fachada sul. A grande entrada fica à esquerda, dando para a planície; à direita fica o rio; os jardins estão localizados ao norte e ao sul. Perguntei a Mozart quais eram seus vizinhos.

Mais acima – disse ele – e mais embaixo, dois Espíritos que não conheces; mais à esquerda, apenas uma grande campina me separa do jardim de Cervantes.

Como as nossas, portanto, a casa tem quatro faces, laborando em erro se disso fizéssemos uma regra geral. É construída com certa pedra que os animais extraem das pedreiras do norte e cuja cor o Espírito compara a esses tons esverdeados que muitas vezes toma o azul do céu quando o sol se põe. Quanto à sua rigidez, podemos fazer uma ideia por essa observação de Palissy: “que ela se fundiria sob a pressão de nossos dedos humanos tão depressa quanto um floco de neve; mesmo assim, ainda é uma das matérias mais resistentes do planeta! Nessas paredes os Espíritos esculpiram ou incrustaram estranhos arabescos, que o desenho procura reproduzir. São ornamentos gravados na pedra e coloridos em seguida, ou incrustações que restabelecem a solidez da pedra verde, através de um processo que no momento desfruta de grande popularidade e que nos vegetais conserva toda a graça de seus contornos, toda a delicadeza de seus tecidos, toda a riqueza de seu colorido. E o Espírito acrescenta:

Uma descoberta que fareis qualquer dia e que entre vós mudará muita coisa.

A grande janela da direita apresenta um exemplo desse gênero de ornamentação: um de seus bordos nada mais é que uma enorme cana, cujas folhas foram conservadas. O mesmo ocorre no coroamento da janela principal, que afeta a forma da clave de sol: são plantas sarmentosas, enlaçadas e incrustadas. É por esse processo que eles obtêm a maior parte do coroamento dos edifícios, portões, balaústres etc. Muitas vezes a planta é colocada na parede com as raízes e em condições de crescer livremente. Cresce e se desenvolve; suas flores desabrocham ao acaso, e o artista não as incrustou no lugar senão quando adquiriram todo o desenvolvimento requerido para a ornamentação do edifício: a casa de Palissy é decorada quase inteiramente dessa maneira.

Destinados inicialmente apenas aos móveis, depois às molduras de portas e janelas, esse gênero de ornamentos aperfeiçoou-se pouco a pouco e acabou por invadir toda a arquitetura. Hoje, não se incrusta somente as flores e os arbustos, mas a própria árvore, da raiz até a copa; e os palácios, como os edifícios, praticamente não têm outras colunas.

Uma incrustação da mesma natureza serve também para decorar as janelas. Flores ou folhas muito grandes são habilmente despojadas de sua parte carnuda, restando apenas um feixe de fibras tão finas quanto a mais fina musselina. Cristalizam-nas; e dessas folhas reunidas com arte constrói-se uma janela inteira, que apenas filtra para o interior uma luz muito suave; ou, ainda, são revestidas de uma espécie de vidro liquefeito e colorido de todos os matizes que se cristaliza no ar, transformando a folha numa espécie de vidraça. Da disposição dessas folhas nas janelas resultam encantadores buquês, transparentes e luminosos!

Quanto às dimensões dessa aberturas e a mil outros detalhes que podem surpreender à primeira vista, vejo-me forçado a adiar a explicação: a história da arquitetura em Júpiter demandaria um volume inteiro. Renuncio também a falar sobre o mobiliário para aqui me ater tão-somente à disposição geral da casa.

O leitor deve ter compreendido, de tudo que precede, que a casa do continente não deve ser para o Espírito mais que uma espécie de pousada provisória. A cidade baixa quase que só é frequentada por Espíritos de segunda ordem, encarregados dos interesses planetários – da agricultura, por exemplo, ou das trocas, e da boa ordem que deve ser mantida entre os serviçais. Dessa forma, todas as casas situadas no solo só dispõem do térreo e do andar superior: um destinado aos Espíritos que atuam sob a direção do senhor, e acessível aos animais; o outro, reservado tão-somente ao Espírito, que aí reside apenas ocasionalmente. É isso que explica o fato de vermos, nas diversas habitações de Júpiter, nesta, por exemplo, e na de Zoroastro, uma escadaria e, até mesmo, uma rampa. Aquele que rasa a água, como a andorinha, e que pode correr sobre as hastes do trigo sem as curvar, passa muito bem sem a escadaria e sem a rampa para penetrar em sua casa; mas os Espíritos inferiores não têm o voo tão fácil; não se elevam senão aos solavancos e nem sempre a rampa lhes é inútil. Enfim, a escadaria é de absoluta necessidade para os animais-serviçais, que apenas caminham como nós. Estes últimos têm seus pavilhões, aliás muito elegantes, e que fazem parte de todas as grandes habitações; mas suas funções os chamam, constantemente, à casa do senhor: é necessário facilitar-lhes a entrada e o percurso interior.

Daí essas construções bizarras, cuja base lembra muito nossos edifícios terrestres, mas deles diferindo por completo na parte superior.

Esta se distingue, sobretudo, por uma originalidade que seríamos absolutamente incapazes de imitar. É uma espécie de flecha aérea que se balança no alto do edifício, acima da grande janela e de seu singular coroamento. Esse frágil mastaréu, fácil de ser deslocado, destina-se, no pensamento do artista, a não deixar o lugar que lhe está assinalado porque, sem se apoiar em coisa alguma na parte superior, complementa-lhe a decoração; lamento que a dimensão da prancha não lhe tenha permitido encontrar um lugar aí. Quanto à morada aérea de Mozart, apenas constato a sua existência: os limites deste artigo não permitem que me estenda sobre este assunto.

Não terminarei, entretanto, sem dar explicações a propósito do gênero de ornamentos que o grande artista escolheu para sua morada. Nele é fácil reconhecer a lembrança de nossa música terrestre: a clave de sol é ali frequentemente reproduzida e, coisa bizarra, jamais a clave de fá! Na decoração do térreo, encontramos um arco, uma espécie de tiorba ou bandolim, uma lira e uma pauta completa de música. Mais alto, é uma grande janela que lembra vagamente à forma de um órgão; as outras têm a aparência de grandes notas, enquanto notas menores são abundantes por toda a fachada.

Seria erro concluir que a música de Júpiter seja comparável à nossa, e que se represente pelos mesmos sinais: Mozart explicou-se sobre isso, de maneira a não deixar qualquer dúvida; mas na decoração de suas casas os Espíritos lembram, com prazer, a missão terrestre que lhes fez merecer a encarnação em Júpiter e que melhor resume o caráter de sua inteligência. Assim, na residência de Zoroastro, os astros e a chama constituem os únicos detalhes da decoração.

Há mais; parece que esse simbolismo tem suas regras e seus segredos. Nem todos esses ornamentos estão dispostos ao acaso: têm sua ordem lógica e sua significação precisa; mas é uma arte que os Espíritos de Júpiter renunciam a nos fazer entender, pelo menos até hoje, e sobre a qual não se explicam de bom grado.

Nossos velhos arquitetos também empregaram o simbolismo na decoração de suas catedrais; a torre de Saint-Jacques não passa de um poema hermético, a acreditarmos na tradição. Nada há, pois, para nos admirarmos da originalidade da decoração arquitetônica em Júpiter: se contradiz nossas ideias sobre a arte humana é que, com efeito, existe um completo abismo entre uma arquitetura que vive e fala, e o primitivismo da nossa, que nada exprime. Nisso, como em qualquer outra coisa, a prudência nos proíbe esse erro do relativo, que quer tudo reduzir às proporções e aos hábitos do homem terreno. Se os habitantes de Júpiter morassem como nós, comessem, vivessem, dormissem e andassem como nós, não haveria grande vantagem em ascender até lá. É justamente porque seu planeta difere bastante do nosso que desejamos conhecê-lo e com ele sonhar como nossa futura morada!

De minha parte, não terei perdido tempo e serei muito feliz por me haverem os Espíritos escolhido como intérprete, se seus desenhos e inscrições inspirarem a um só crente o desejo de subir mais rápido para Julnius, e a coragem de tudo fazer para o conseguir.

Victorien Sardou.

 

O autor dessa interessante descrição é um desses adeptos fervorosos e esclarecidos, que não temem confessar altivamente suas crenças e se colocam acima da crítica das pessoas que não acreditam em nada que escape do seu círculo de ideias.

Ligar o nome a uma doutrina nova, afrontando os sarcasmos, é uma coragem que não é dada a todo mundo; por isso, felicitamos o Sr. V. Sardou. Seu trabalho revela o distinto escritor que, embora ainda jovem, já conquistou um honroso lugar na literatura, aliando ao talento de escrever os conhecimentos profundos de um sábio, prova evidente de que o Espiritismo não recruta seus prosélitos entre os tolos e os ignorantes. Fazemos votos porque o Sr. Sardou complete o mais breve possível o seu trabalho, em tão boa hora iniciado. Se os astrônomos nos desvelam, por suas sábias pesquisas, o mecanismo do Universo, por suas revelações os Espíritos nos dão a conhecer o seu estado moral, e isso, como dizem, objetivando estimular-nos ao bem, a fim de merecermos uma existência melhor.

 

Allan Kardec



[1] REVISTA ESPÍRITA – agosto/1858 – Allan Kardec

[2] Entretanto, faz-se necessário excetuar certos animais providos de asas, reservados para os serviços aéreos e para as tarefas que, entre nós, exigiriam a utilização de vigamentos para construção. É uma transformação da ave, como os animais descritos acima resultam de uma transformação dos quadrúpedes.

[3] Sendo de 0,23 a densidade de Júpiter, isto é, pouco menos de um quarto da densidade da Terra, o Espírito nada diz que não seja verossímil. Concebe-se que tudo é relativo e que nesse globo etéreo, como ele próprio, tudo seja etéreo.

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