terça-feira, 9 de julho de 2024

A RAINHA DE OUDE[1], [2], [3]

 


Allan Kardec

 

1. Quais as vossas sensações ao deixardes o mundo terrestre?

– Porque ainda perturbada, tornasse-me impossível explicá-las.

2. Sois feliz?

– Não.

3. Por quê?

– Tenho saudades da vida... não sei... experimento acerba dor da qual a vida me libertaria... quisera que o corpo se levantasse do túmulo...

4. Lamentais o ter sido sepultada entre cristãos, e não no vosso país?

– Sim, a terra indiana pesaria menos sobre o meu corpo.

5. Que pensais das honras fúnebres tributadas aos vossos despojos?

– Não foram grande coisa, pois eu era rainha e nem todos se curvaram diante de mim... Deixai-me... forçam-me a falar, quando não quero que saibais o que ora sou... Asseguro-vos, eu era rainha...

6. Respeitamos a vossa hierarquia e só insistimos para que respondais no propósito de nos instruirmos. Acreditais que vosso filho recupere de futuro os Estados de seu pai?

– Meu sangue reinará, por certo, visto como é digno disso.

7. Ligais a essa reintegração de vosso filho a mesma importância que lhe dáveis quando encarnada?

– Meu sangue não pode misturar-se com o do povo.

8. Qual a vossa opinião atual sobre a verdadeira causa da revolta das Índias?

– O indiano foi feito para ser senhor em sua casa.

9. Que pensais do futuro que está reservado a esse país?

– A Índia será grande entre as nações.

10. Não se pôde fazer constar na respectiva certidão de óbito o lugar do vosso nascimento; podereis no-lo dizer agora?

– Sou rainha oriunda do mais nobre dos sangues da Índia. Penso que nasci em Delhi.

11. Vós, que vivestes nos esplendores do luxo, cercada de honras, que pensais hoje de tudo isso?

– Que tinha direito.

12. A vossa hierarquia terrestre concorreu para que tivésseis outra mais elevada nesse mundo em que ora estais?

– Continuo a ser rainha... que se enviem escravas para me servirem!... Mas... não sei... parece-me que pouco se preocupam com a minha pessoa aqui... e contudo eu... sou sempre a mesma.

13. Professáveis a religião muçulmana ou a hindu?

– Muçulmana; eu era, porém, bastante poderosa para me ocupar de Deus.

14. Do ponto de vista da felicidade humana, quais as diferenças que assinalais entre a vossa religião e o Cristianismo?

– A religião cristã é absurda; diz que todos são irmãos.

15. Qual a vossa opinião a respeito de Maomé?

– Não era filho de rei.

16. Acreditais que ele houvesse tido uma missão divina?

– Que me importa isso?!

17. Qual a vossa opinião quanto ao Cristo?

– O filho do carpinteiro não é digno de ocupar os meus pensamentos.

18. Que pensais desse uso pelo qual as mulheres muçulmanas se furtam aos olhos masculinos?

– Penso que as mulheres nasceram para dominar: – eu era mulher.

19. Tendes inveja da liberdade de que gozam as europeias?

– Que poderia importar-me tal liberdade? Servem-nas, acaso, ajoelhados?

20. Qual a vossa opinião sobre a condição da mulher em geral, na espécie humana?

– Que me importam as mulheres! Se me falasses de rainhas!...

21. Tendes reminiscências de encarnações anteriores a esta que vindes de deixar?

– Deveria ter sido sempre rainha.

22. Por que acudistes tão prontamente ao nosso apelo?

– Não queria fazê-lo, mas forçaram-me. Acaso julgarás que me dignaria responder-te? Quem és tu ao meu lado?

23. E quem vos forçou a vir?

– Eu mesma não sei... posto que não deve existir ninguém maior do que eu.

24. Em que lugar vos encontrais aqui?

– Perto de Ermance.

25. Sob que forma vos apresentais aqui?

– Sempre rainha... e pensas que eu tenha deixado de o ser? És pouco respeitoso... fica sabendo que não é desse modo que se fala a rainhas.

26. Por que não vos podemos ver?

– Não o quero.

27. Se nos fosse dado enxergar-vos, ver-vos-íamos com os vossos ornatos e pedrarias?

– Certamente.

28. E como se explica o fato de, despojado de tudo isso, conservar o vosso Espírito tais aparatos, sobretudo os ornamentos?

– É que eles me não deixaram. Sou tão bela quanto era, e não compreendo o juízo que de mim fazeis. É verdade que nunca me vistes.

29. Que impressão vos causa estardes entre nós?

– Se eu pudesse evitá-la... Tratam-me com tão pouca cortesia... Não quero que me tratem assim... Chamai-me Majestade, ou não responderei mais.

30. Vossa Majestade compreendia a língua francesa?

– Por que não a compreenderia? Eu sabia tudo.

31. Vossa Majestade gostaria de nos responder em inglês?

– Não... Não me deixareis, pois, tranquila?... Quero ir embora... Deixai-me... Pensais que eu esteja submetida aos vossos caprichos?... Sou rainha, e não escrava.

32. Rogamos somente que respondais, ainda, a duas ou três perguntas.

 

Resposta de São Luís, que estava presente:

Deixai-a, a pobre perturbada. Tende compaixão da sua cegueira e oxalá vos sirva de exemplo. Não sabeis quanto padece o seu orgulho.

 

Observação – Essa conversa oferece mais de um ensinamento. Evocando essa majestade decaída, agora no túmulo, não esperávamos respostas de grande profundidade, tendo em vista o gênero de educação das mulheres naquele país; mas pensávamos encontrar nesse Espírito, se não a filosofia, pelo menos um sentimento mais verdadeiro da realidade e ideias mais sadias sobre as vaidades e grandezas da Terra. Longe disso: nela as ideias terrestres conservaram toda sua força; é o orgulho, que nada perdeu de suas ilusões, que luta contra sua própria fraqueza e que deve, com efeito, sofrer muito por sua impotência. Prevendo respostas de outra natureza, havíamos preparado diversas perguntas que se tornaram sem objetivo. Essas respostas são tão diferentes das que esperávamos, assim como as pessoas presentes, que nelas não se poderia ver a influência de um pensamento estranho. Além disso, têm uma marca tão característica de personalidade, que acusam claramente a identidade do Espírito que se manifestou.

Poder-se-ia estranhar, com razão, ver Lemaire, homem degradado e maculado por todos os crimes, manifestar, em sua linguagem de além-túmulo, sentimentos que denotam uma certa elevação e uma apreciação bastante exata de sua situação, ao passo que na rainha de Oude, cuja hierarquia deveria ter-lhe desenvolvido o senso moral, não sofreram as ideias terrestres nenhuma modificação. A causa dessa anomalia parece fácil de explicar. Por mais degradado fosse, Lemaire vivia no seio de uma sociedade civilizada e esclarecida, que tinha reagido contra sua natureza grosseira; ele havia absorvido, mau grado seu, alguns raios da luz que o cercavam e essa luz nele fez nascerem pensamentos sufocados por sua abjeção, mas cujo germe, nem por isso, deixava de subsistir.

Ocorre de modo diferente com a rainha de Oude: o meio em que viveu, os hábitos, a ausência absoluta de cultura intelectual, tudo deve ter contribuído para manter, em toda a sua pujança, as ideias de que estava imbuída desde a infância; nada veio modificar essa natureza primitiva, sobre a qual os preconceitos conservaram todo o seu império.



[1][1] Revista Espírita – março/1858 – Allan Kardec

[2] N. do T.: Vide O Céu e o Inferno, de Allan Kardec – Segunda Parte, capítulo VII – Espíritos endurecidos.

[3] Nota: Nestas conversas suprimiremos, doravante, a fórmula de evocação, que é sempre a mesma, a menos que sua resposta apresente alguma particularidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário