segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

ZENÓBIO DE MIRANDA PINTO[1]

 

 

Filho de usineiros de açúcar, Zenóbio de Miranda Pinto nasceu em Campos, Estado do Rio de Janeiro, onde viveu até os 12 anos de idade, quando decidiu mudar-se. Passando por Niterói, aportou de barcas ao cais da Cantareira, antes de chegar ao Rio de Janeiro. Sem recursos financeiros, fez pequenos trabalhos em troca de alimento e abrigo. Nessa fase, chegou à Praça XV para, logo depois, ajeitar-se como auxiliar de um português que detinha um comércio varejista abastecido por tropeiros.

Observando no local de descarga, decidiu-se a auxiliar no transbordo da carga. Os tropeiros imaginaram tratar-se
de um auxiliar do comerciante. O português, por sua vez, acreditou que ele era um dos prepostos da tropa. Ao final, foi convidado, pelo espírito de serviço, a integrar o grupo de auxiliares no comércio, o que lhe trouxe momentâneo alívio.

Num dia de descanso decidiu ir à estação da antiga Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB) para ver o movimento do mais usual meio de transporte de passageiros da época. Lá, afeiçoou-se a um dos conferentes da ferrovia, depois de encantar-se com as comunicações em código Morse. Valorizado, o conferente interessou-se pelo jovem e forneceu-lhe informações do uso da telegrafia, passando a Zenóbio uma cópia do alfabeto Morse.

No domingo seguinte, lá estava ele na ferrovia, de novo. Tinha memorizado o alfabeto Morse e, naquele momento, experimentava o manipulador de transmissão de sinais, bem como a leitura da fita que vertia com a comunicação reversa. O conferente tinha o teatro como hobby e convidou o novo amigo para enturmar-se, tendo este entrado como coadjuvante e logo, logo, se transformado em opção como ator. Ali, viria a ter contato com o Grêmio Literário Recreativo Leopoldo Machado e o ideário do Consolador. Conhecera o próprio Leopoldo Machado, a quem coube fazer chegar-lhe às mãos as obras da Codificação, que ele lera como se tudo já conhecesse.

Com apoio do conferente e estímulo do comerciante português que muito o admirava, ingressou na EFCB como extranumerário, trabalhando apenas quando faltava algum dos titulares. Logo se firmaria e, com isso, teria início a tarefa do bandeirante da Doutrina dos Espíritos. Depois de trabalhar em várias estações da ferrovia, acabou vindo para Minas Gerais, onde grandes frentes de trabalho o aguardavam.

Morou em Itabirito, oportunidade em que conheceu Iara, operária de uma fábrica de tecidos, a alma valorosa que haveria de impulsioná-lo de encontro aos tempos novos que estavam por vir. Consorciou-se com ela, surgindo dali filhos que dariam a ele redobradas alegrias e estímulo para a caminhada. Desafiou a crença dominante, declarando-se espírita e recusando-se a adotar as práticas religiosas tradicionais. Naquela cidade, nasceria seu primogênito, de nome Ismael.

Logo depois, foi transferido para Conselheiro Lafaiete, onde surgiu o segundo da prole, Adolpho. Algum tempo após, foi transferido para Mantiqueira − estação próxima a Santos Dumont − surgindo lá mais um dos membros da família: Expedito. Na sequência, iria parar em Sítio (hoje Antônio Carlos ), onde nasceu aquele que teria o seu nome: Zenóbio. Ali, participou dos primórdios das reuniões espíritas da localidade, na residência do também militante espírita, Henrique Zonzin, recebendo a visita periódica de outros confrades de Barbacena, como Zezinho Abrantes, um dos fundadores do Centro Espírita Caminheiros do Além, que funcionou na antiga praça Conde de Prados − popularmente conhecida como Jardim do Globo.

Promovido a agente de estação, foi então transferido para Carandaí, onde viria a completar o grupo familiar com o nascimento de Allan Kardec e Moarê.  Conta-se que, naquela cidade, àquela época, havia poucas autoridades no município: o Prefeito Municipal, o Delegado de Polícia, o Padre e o Chefe da Estação da Estrada de Ferro. Vivia-se o final da segunda metade dos anos 30 e início dos anos 40.

Em Carandaí, Zenóbio de Miranda mostraria todo o seu potencial de realização empreendedora e capacidade pessoal de vencer desafios. Sem receios da hostilidade e da repulsa que se expressavam naquela época pela presença do novo, transformar-se-ia num bandeirante do Consolador. Das reuniões em sua residência e nos lares de confrades que aderiram à sua liderança carismática, agregou pelo exemplo, pela clareza do raciocínio e pela determinação pessoal um contingente grande de adeptos e simpatizantes. Instituiu as reuniões de estudo e aquelas destinadas ao intercâmbio espiritual.

Deu início à evangelização de crianças e adultos, e logo viria a obter um terreno em doação para construir uma Casa Espírita. Era o desafio máximo. Acreditava na proteção dos amigos espirituais e tinha a certeza de que o acaso não existe. Conta-se que, de imediato, agiu na busca do colimado objetivo. Com um grupo de amigos da primeira hora foi feita a primeira prece no local onde se construiria o Centro Espírita Novo Oriente, primeira casa do Espiritismo local.

Cidade de clima frio e de abundante pluviosidade, no horário previsto para aquele momento solene, começa a cair em Carandaí uma chuva fina, semelhante a uma garoa, que provoca nos presentes um momento de desconforto e contrariedade. De bom ânimo imbatível, Zenóbio ergue as mãos e diz, abrindo o encontro público em meio a flores silvestres e arbustos de pequeno porte: “Meus irmãos! É o orvalho Divino que cai sobre as nossas cabeças! Agradeçamos a Deus por esse encontro maravilhoso”.

Dali pra frente ninguém mais se sentiu incomodado e, ao final, não mais se lembrava de quando a garoa cessara, nem por quanto tempo caíra sobre o grupo.  Protagonista de momentos inesquecíveis da Doutrina, sempre foi um homem de jeito sereno, de aspecto esguio e altivo, sério, de princípios ilibados. Sorria sempre, mas de forma discreta. Não contava anedotas nem estimulava conversações menos edificantes.

Mudou-se de Carandaí para Santos Dumont, onde teve militância espírita ostensiva. Ao aposentar-se, foi para o Rio de Janeiro onde já morava a maioria dos seus filhos, permanecendo ali até o seu desencarne.

 

Zenóbio e a presença dos Espíritos

 

O relógio marca 19h30. Dona Iara alerta o marido:

Zenóbio, acabei de fazer a matula para sua viagem desta madrugada. Podemos sair agora mais sossegados para a reunião.

A passos rápidos dirigem-se à residência do confrade Russo, que, à semelhança das vezes anteriores, apresenta grande movimento. Prece inicial. Leitura e comentário de um trecho de O Evangelho segundo o Espiritismo.

Logo após, a segunda parte, o intercâmbio com o Mundo Espiritual através da mediunidade de alguns confrades.

Nesse instante, D. Iara reflete que não havia colocado sobre a mesa dos trabalhos a papeleta com o nome do marido que, dentro de algumas horas, tomaria o Noturno originário de Belo Horizonte, em direção ao Rio de Janeiro.

Não tem importância” − pensou. Esta questão de colocar papéis sobre a mesa é relativa. O que importa é a força do nosso pensamento. Pedirei, mentalmente, com fé, em favor do Zenóbio, a fim de que ele faça boa viagem.

Mal terminara a prece e o espírito Irmão José, através da médium Maria Russo, fala com voz firme e pausada:

Há neste recinto uma senhora que acaba de pedir proteção para o marido. Quero dizer a ela que o aconselhe a não realizar a viagem que pretende. Que retarde sua saída desta cidade.

Dona Iara comenta o fato discretamente com o marido ao lado, mas este não se deixa convencer.

Com certeza − diz ele – a advertência não é para mim. Deve haver outra pessoa que também vai viajar.

Não senhor! – esclarece, novamente, a Entidade espiritual, dirigindo-se a Zenóbio. O recado é para o senhor mesmo.

Depois de palavras tão incisivas, não havia mais o que retrucar. Dona Iara estava satisfeita pela orientação recebida, mas, ao mesmo tempo, um tanto contrafeita.  Porque, afinal − como era hábito na época − tinha passado algum tempo a preparar a bolsa de Zenóbio. O jeito era, então, ir para casa. Tomou, assim, seu café em companhia do esposo e foi repousar, ainda com a mente tumultuada com o acontecimento da noite.

No dia seguinte, ao clarear, o filho do casal, Adolpho, levanta-se, dirigindo-se para a estação ferroviária, onde costumava carregar embrulhos dos passageiros, ganhando, desta forma, alguns trocados.

Todos estão ainda em casa, quando ele chega, sobremodo nervoso, para comunicar:

Papai, o trem que o senhor ia tomar foi vitimado num engarrafamento. Envolveu-se num violento desastre!  Falaram lá na estação que há muita gente morta e ferida.

O pai vai até lá, onde já se acotovelam dezenas de pessoas, a tecerem comentários sobre o triste acontecimento.

O Noturno (N-2), que descia da Capital mineira para o Rio, chocara-se com um cargueiro (C-65), que subia a Mantiqueira. O desastre verificara-se no quilômetro 355, entre as estações de João Aires e Sítio. Os comboios deveriam cruzar-se em João Aires. Consoante notícias espalhadas, o maquinista do cargueiro, que deveria esperar no desvio a passagem do noturno, encontrara no arco de aviso uma papeleta de licença, ali deixada pelo maquinista de outro cargueiro, por esquecimento, e, julgando ser a licença para o comboio que conduzia, retirou-a do arco e, sem ler, porque lia com dificuldade, conforme depois declarou, prosseguiu a marcha. Daí o encontro dos trens.

Naquela data, 19 de dezembro de 1938, o Diário Mercantil estampava em suas páginas uma grande manchete: “O maior desastre ferroviário no Brasil, nos últimos tempos”, noticiando, logo depois, que 53 pessoas haviam morrido, enquanto que 60 estavam gravemente feridas, a maior parte internada em hospitais de Barbacena.  No meio do tumulto que se formara na estação de Carandaí, Zenóbio recorda, angustiado, a figura de um amigo vendedor de bilhetes na cidade.

Senhor Zenóbio, − dissera-lhe o cambista no dia anterior ao desastre – estou muito contente. Imagine que não consegui vender ontem todos os pedacinhos e, exatamente um que ficou encalhado, foi sorteado. Já conferi o resultado. Amanhã, segunda-feira, seguirei pelo Noturno a fim de tomar algumas providências em Juiz de Fora.

Essa conversa Zenóbio recorda naquela manhã triste.  À tarde, debaixo ainda de forte emoção, percebe a aproximação do cambista que lhe bate no ombro e, sem que o amigo se refaça da surpresa, conta-lhe o que se passara.

Tomara o trem em Carandaí, de madrugada. Após algum tempo de percurso, resolvera ir ao banheiro. Ao voltar, ainda de longe, com o Noturno lotado, percebera que uma irmã de caridade acomodara-se em sua poltrona.  Acanhado, não tentou reaver o lugar, ficando junto ao banheiro, de pé. Foi quando ocorreu o acidente. O lugar em que estava assentada a religiosa ficara completamente destruído. Se ele estivesse em sua poltrona, não teria escapado.

Zenóbio ouve o amigo, estarrecido, e pergunta:

E a irmã de caridade? Já localizaram o corpo?

O cambista continua a explicar, agora com voz a tremer:

Durante muitas horas, eu e outras pessoas tentamos localizá-la. Não a encontramos. Comentei o fato com os passageiros que estavam no mesmo carro. Todos eles afirmaram com absoluta certeza: ‘Não havia nenhuma irmã de caridade no vagão!’ ...

 

Fontes:

§  HALFELD, Revista “Reformador”, abril/1987, FEB

§  Judith Rubatino (já desencarnada)

§  Zenóbio de Miranda Silva

§  “O Espírita Mineiro”, nº. 281 (setembro/outubro – 2004)

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