terça-feira, 14 de novembro de 2023

RESQUÍCIOS DA IDADE MÉDIA - AUTO-DE-FÉ DAS OBRAS ESPÍRITAS EM BARCELONA[1]

 


Allan Kardec

 

Nada informamos aos leitores sobre esse fato, que já não o saibam através da imprensa. O que é de admirar é que certos jornais, que geralmente passam por bem informados, o tenham posto em dúvida.

A dúvida não nos surpreende, mas o fato em si mesmo parece tão estranho ao tempo em que vivemos, está de tal modo longe de nossos costumes que, por maior cegueira reconheçamos no fanatismo, pensamos sonhar ao ouvir dizer que as fogueiras da Inquisição ainda se acendem em 1861, às portas da França. Nestas circunstâncias a dúvida é uma homenagem prestada à civilização europeia e ao próprio clero católico.

Hoje, em presença de uma realidade incontestável, o que mais deve surpreender é que um jornal sério, que diariamente cai sem dó nem piedade sobre os abusos e usurpações do poder sacerdotal, não tenha encontrado, para registrar esse fato, senão algumas palavras zombeteiras, acrescentando:

Em todo o caso, não seríamos nós que nos divertiríamos neste momento em fazer girar as mesas na Espanha.

Siècle de 14 de outubro de 1861.

Então o Siècle ainda vê o Espiritismo nas mesas girantes? Estará tão enceguecido pelo cepticismo para ignorar que toda uma doutrina filosófica, eminentemente progressiva, saiu dessas mesas, das quais tanto zombaram? Não sabe que esta ideia fermenta em toda parte? Que nas grandes cidades, como nas pequenas localidades, de alto a baixo da escala social, tanto na França quanto no estrangeiro, esta ideia se espalha com inaudita rapidez? Que por toda parte agita as massas, que nela saúdam a aurora de uma renovação social? O golpe com que imaginaram feri-lo não é um indício de sua importância?

Porque ninguém se atira assim contra uma infantilidade sem consequência, e Dom Quixote não voltou à Espanha para se debater contra moinhos de vento.

O que não é menos exorbitante, o que causa admiração por não se ver nenhum protesto enérgico, é a estranha pretensão que se arroga o bispo de Barcelona, de policiar a França. Ao se pedir a reexportação das obras, ele respondeu com uma recusa assim justificada:

A Igreja católica é universal; e sendo estes livros contrários à fé católica, o governo não pode consentir que venham perverter a moral e a religião de outros países.

Eis, assim, um bispo estrangeiro que se institui juiz do que convém ou não convém à França! Então a sentença foi mantida e executada, sem mesmo isentar o destinatário das taxas alfandegárias, cujo pagamento lhe foi exigido.

Eis o relato que nos foi dirigido pessoalmente:

Hoje, nove de outubro de mil oitocentos e sessenta e um, às dez horas e meia da manhã, na esplanada da cidade de Barcelona, lugar onde são executados os criminosos condenados ao último suplício, e por ordem do bispo desta cidade, foram queimados trezentos volumes e brochuras sobre o Espiritismo, a saber:

§  A Revista Espírita, diretor Allan Kardec;

§  A Revista Espiritualista, diretor Piérard;

§  O Livro dos Espíritos, por Allan Kardec;

§  O Livro dos Médiuns, pelo mesmo;

§  O que é o Espiritismo, pelo mesmo;

§  Fragmentos de sonata ditada pelo Espírito Mozart;

§  Carta de um católico sobre o Espiritismo, pelo Dr. Grand;

§  A História de Joana d’Arc, ditada por ela mesma à Srta. Ermance Dufau[2];

§  A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta, pelo Barão de Guldenstubbé.

 

Assistiram ao auto-de-fé:

§  Um sacerdote com os hábitos sacerdotais, empunhando a cruz numa mão e uma tocha na outra;

§  “Um escrivão encarregado de redigir a ata do auto-de-fé;

§  “Um ajudante do escrivão;

§  “Um empregado superior da administração das alfândegas;

§  “Três serventes da alfândega, encarregados de alimentar o fogo;

§  “Um agente da alfândega representando o proprietário das obras condenadas pelo bispo;

§  “Uma multidão incalculável enchia as calçadas e cobria a imensa esplanada onde se erguia a fogueira;

Quando o fogo consumiu os trezentos volumes ou brochuras espíritas, o sacerdote e seus ajudantes se retiraram, cobertos pelas vaias e maldições de numerosos assistentes, que gritavam: Abaixo a Inquisição!

Em seguida, várias pessoas se aproximaram da fogueira e recolheram as suas cinzas.

 

Uma parte das cinzas nos foi enviada. Ali se encontra um fragmento de O Livro dos Espíritos, consumido pela metade.

Nós os conservamos preciosamente, como autêntico testemunho desse ato de insensatez.

À parte qualquer opinião, este caso levanta grave questão de direito internacional. Reconhecemos ao governo espanhol o direito de interditar, em seu território, a entrada de obras que não lhe convenham, como a de todas as mercadorias proibidas. Se as obras tivessem sido introduzidas clandestina e fraudulentamente, nada haveria a objetar; mas foram expedidas ostensivamente e apresentadas à alfândega; havia, pois, uma permissão legalmente solicitada. A alfândega julga dever reportar-se à autoridade episcopal que, sem qualquer formalidade processual, condena as obras a serem queimadas pelas mãos do carrasco. Então o destinatário pede que sejam reexportadas para o lugar de sua procedência e, por fim, lhe é respondido que não as receberá, conforme relatado acima.

Perguntamos se em tais circunstâncias a destruição dessa propriedade não é um ato arbitrário e contra o direito comum.

Examinando o caso do ponto de vista de suas consequências, diremos, inicialmente, não haver dúvida de que nada poderia ter sido mais benéfico ao Espiritismo. A perseguição sempre foi proveitosa à ideia que quiseram proscrever: exalta a sua importância, chama a sua atenção e a torna conhecida por quantos a ignoravam. Graças a esse zelo imprudente, todo o mundo na Espanha vai ouvir falar do Espiritismo e quererá saber o que é ele; é tudo quanto desejamos. Podem queimar-se livros, mas não se queimam ideias; as chamas das fogueiras as superexcitam, em vez de abafar. Aliás, as ideias estão no ar, e não há Pireneus bastante altos para as deter. Quando uma ideia é grande e generosa encontra milhares de pulmões prestes a aspirá-la. Façam o que quiserem, o Espiritismo já tem numerosas e profundas raízes na Espanha; as cinzas da fogueira vão fazê-la frutificar. Mas não é somente na Espanha que se produzirá tal resultado: o mundo inteiro sentirá o contragolpe. Vários jornais da Espanha estigmatizaram esse ato retrógrado, como bem o merece. Entre outros, Las Novedades de Madrid, de 19 de outubro, contém notável artigo a respeito. Será reproduzido em nosso próximo número.

Espíritas de todos os países! Não esqueçais esta data: 9 de outubro de 1861; será marcada nos fastos do Espiritismo. Que ela seja para vós um dia de festa, e não de luto, porque é a garantia de vosso próximo triunfo!

Entre as numerosas comunicações que os Espíritos ditaram a respeito, citaremos apenas as duas seguintes, dadas espontaneamente na Sociedade de Paris. Elas resumem as causas e todas as suas consequências.

 

SOBRE O AUTO-DE-FÉ DE BARCELONA

 

O amor da verdade deve sempre fazer-se ouvir: ela rompe o véu e brilha ao mesmo tempo por toda parte. O Espiritismo tornou-se conhecido de todos; logo será julgado e posto em prática. Quanto mais perseguições houver, tanto mais depressa esta sublime doutrina alcançará o apogeu. Seus mais cruéis inimigos, os inimigos do Cristo e do progresso, atuam de maneira que ninguém possa ignorar a permissão de Deus, dada àqueles que deixaram esta Terra de exílio, de voltarem aos que amaram.

Ficai certos: as fogueiras apagar-se-ão por si mesmas; e se os livros são lançados ao fogo, o pensamento imortal lhes sobrevive.

Dollet

 

Nota – Este Espírito, tendo se manifestado espontaneamente, disse ser o de um antigo livreiro do século dezesseis.

 

OUTRA

 

Era necessário que algo ferisse violentamente certos Espíritos encarnados, a fim de que se decidissem a ocupar-se desta grande doutrina que vai regenerar o mundo. Nada é feito inutilmente em vossa Terra. Nós, que inspiramos o auto-de-fé de Barcelona, sabíamos perfeitamente que assim agindo daríamos um grande passo à frente. Esse fato brutal, inacreditável nos tempos atuais, foi consumado com vistas a chamar a atenção dos jornalistas que se mantinham indiferentes diante da profunda agitação que tomava conta das cidades e dos centros espíritas. Eles deixavam dizer e fazer, mas, obstinados, faziam ouvidos de mercador, respondendo pelo mutismo ao desejo de propaganda dos adeptos do Espiritismo. Queiram ou não, é preciso que hoje falem; uns, constatando o histórico do caso de Barcelona, outros o desmentindo, ensejaram uma polêmica que fará a volta ao mundo e da qual só o Espiritismo aproveitará. Eis por que hoje a retaguarda da Inquisição praticou o seu último auto-de-fé, porque assim o quisemos.

São Domingos



[1] Revista Espírita – novembro/1861 – Allan Kardec

[2] N. do T.: Dufau, no original. O correto é Dufaux (Ermance Dufaux).

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