Rodolfo Collevatti[2]
A terapia familiar sistêmica,
mais conhecida por Constelação Familiar, foi criada por Bert Hellinger
(1925-2019). Bert era alemão, católico, e se formou psicoterapeuta após deixar
o sacerdócio na África, motivado por trabalhos de dinâmica de grupo liderados
por clérigos anglicanos na região onde era missionário.
De acordo com o site[3]
de sua família, Constelação Familiar é o nome de uma prática na qual pessoas
são colocadas como membros representantes de uma família, uma empresa ou um
produto, para uma dinâmica em grupo, visando descobrir os antecedentes de
falhas, doenças, desorientações, vícios, agressões, desejos de morte e muito
mais, nestes arranjos. O procedimento seria útil sempre quando decisões
precisassem ser tomadas.
Tendo a Doutrina Espírita por
princípio “as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo
invisível[4],
buscando conduzir o espírita a ser um verdadeiro cristão[5]”,
é natural que o Espiritismo não tenha foco em resolver problemas de empresas ou
produtos, nem tampouco problemas humanos imediatistas. Quanto ao suporte para
tomada de decisões pessoais, somos convidados por Santo Agostinho, diante de
indecisões sobre o valor de nossas ações, a nos perguntarmos como a julgaríamos
se fosse praticada por outra pessoa[6].
Contamos também com os conselhos de nossos Espíritos protetores, nos intuindo
quando necessário, e pela voz da nossa consciência[7].
Certamente, o Espiritismo não
tem por objetivo substituir nenhuma técnica psicanalista ou psicológica.
Inclusive, quando recebemos alguém na Casa Espírita para atendimento fraterno
com indícios de necessidade de amparo psicológico ou médico, a recomendação[8]
é buscar um especialista.
No entanto, a presente análise
da Constelação Familiar à luz do Espiritismo é pertinente, pois há pessoas
propagando a técnica em diversos meios, como se essa fosse parte integrante da
Doutrina.
Hellinger concedeu uma longa
entrevista a Gabriele ten Hovel[9].
Vamos resumir e comentar suas explicações e afirmações mais relevantes.
Bert explica que sua terapia
procura verificar se há alguém na família “emaranhado” nos destinos de seus
antepassados e, assim, trazer à luz tais emaranhamentos por meio do trabalho
com constelações familiares e, dessa forma, a pessoa conseguiria então se
libertar deles com mais facilidade.
Ora, conforme O Livro dos
Espíritos, nossas ações não foram previamente determinadas de forma
irrevogável, nossa inteligência não é dominada pela força do destino, e temos
livre-arbítrio na escolha de nossa existência e das provas que elegemos quando
Espíritos na erraticidade, e agora, encarnados, podemos resistir ou ceder aos
arrastamentos[10] .
Assim, o bom Espírita não precisa se preocupar com a possibilidade de ter um
destino “emaranhado” por seus antepassados, mas sim em se esforçar para domar
suas más inclinações, dominar suas tendências materialistas e trabalhar na sua
transformação moral5.
Ao descrever melhor os emaranhamentos,
Hellinger afirma que as pessoas revivem inconscientemente o destino de
antepassados, dando o exemplo de uma criança entregue para adoção numa família,
numa geração anterior. Segundo ele, um descendente dessa família irá se
comportar como se fosse ele mesmo também abandonado, e só poderá se livrar de
tal emaranhamento se conhecer o fato, e, por intermédio da Constelação
Familiar, honrar seu antepassado, fazendo-o assim retornar a fazer parte do
sistema familiar, e passar a olhar afetuosamente para seus descendentes.
Nossas tribulações são expiações
ou provas, para podermos reparar o mal que fizemos e tentarmos melhorar,
começando de novo a tarefa que falhamos em outra vida, como nos ensina Allan
Kardec[11].
Assim, na hipótese de reencarnarmos com prova ou expiação semelhante à de um
antepassado, o caminho para resolvermos o nosso problema é a reparação de
nossos atos, aceitando nossas provas, e trabalhando constantemente nossa
transformação moral, e não simplesmente fazendo uma declaração de honra a um
antepassado numa prática terapêutica.
Ainda segundo Hellinger, uma
injustiça cometida por antepassados seria sofrida por algum descendente,
repetidamente, pois membros inocentes de uma família sofreriam uma injustiça
expiada por meio do emaranhamento, porque a consciência de grupo da família não
trataria com justiça os descendentes.
Tal assertiva é frontalmente
contrária aos ensinamentos espíritas. As pessoas não expiam os erros dos
outros; lembremos a promessa Divina: “a justiça do justo cairá sobre ele
mesmo”[12].
Assim, não precisamos temer sofrer por injustiças cometidas por antepassados de
forma alguma.
Hellinger dá exemplos do
funcionamento da Constelação Familiar, onde se colocam pessoas para representar
parentes vivos ou mortos. Cita também um caso no qual três antepassados teriam
se suicidado devido a uma injustiça cometida por uma bisavó, contra o filho de
um primeiro matrimônio, transferindo a propriedade ao filho do segundo
casamento. Isso teria causado o desejo de mais um descendente de se matar, o
que fora evitado por Hellinger, ao evocar o parente morto injustiçado e
explicar a este que seu parente agora iria anunciar para a família a injustiça
cometida contra ele e o reverenciaria. Essa prática teria livrado a pessoa do
estado de pânico e evitado o seu suicídio.
Cremos que Bert,
inconscientemente, tenha percebido a influência da reencarnação durante nossa
vida corpórea, associando o “emaranhado” atual com a conduta do antepassado,
pois em muitos casos, o familiar de agora foi o próprio ancestral em existência
passada.
É inevitável também a associação
da técnica de Hellinger com o uso de mediunidade para fazer regressão de
memória de existências passadas. Claro, nem a evocação de mortos e tampouco a
mediunidade são exclusividade do Espiritismo. Apesar de não mencionar a
reencarnação ou a possibilidade da comunicação com Espíritos – algo esperado
diante de sua formação católica - Hellinger reconhece que se expunha a um
contexto para ele incompreensível, durante as práticas por ele chamadas fenomenológicas.
Inclusive mencionou ter visto, numa constelação, uma criança que fora
assassinada, o que chamou de algo não visível, de fenômeno. Nós espíritas
chamamos isso de fenômeno mediúnico, e somos convidados a atentar para
necessidade das reuniões de estudo para a prática da mediunidade, face aos
riscos de obsessão, fascinação, e de nos iludirmos com Espíritos enganadores[13],
entre tantos cuidados e técnicas a serem aprendidos após o estudo básico da
Doutrina. Assim, alertamos para o risco de se escolher pessoas ao acaso para
fazerem o papel de entes mortos sem os devidos estudos.
Segundo Bert, os filhos teriam
que aceitar os pais como são, e os pais não poderiam e nem precisariam ser
diferentes, uma vez que esses seriam seus pais devido a sua união como homem e
mulher, e não por serem bons ou ruins.
O Espiritismo nos chama à
piedade filial, ao respeito, atenção e condescendência com nossos pais[14].
No entanto, afirmar que os pais não precisariam ser diferentes, equivale a
negar a necessidade de evoluirmos como Espíritos e negar a responsabilidade da
paternidade, uma missão dada por Deus aos pais para que dirijam os filhos pelo
caminho do bem[15].
Hellinger correlacionou a
felicidade com a sensação de estarmos plenamente integrados à fase de desenvolvimento
na qual nos encontramos em dado momento, como por exemplo: se crianças, se
somos homens ou mulheres de verdade, ou ainda pais e mães de verdade, e se
somos bem-sucedidos em nossa profissão. Ele questiona se uma sociedade na qual
só existisse gente feliz, poderia ter força ou grandeza.
Mais uma vez, temos uma
distância grande das ideias de Hellinger quanto ao Espiritismo. Nossa vida nos
foi dada como prova ou expiação, e assim não podemos ainda gozar de felicidade
completa na Terra[16].
Podemos sim alcançar uma felicidade relativa “tão grande quanto o comporte”
nossa existência. No entanto, para isso, somos chamados a praticar a Lei de
Deus[17].
Além disso, quanto a ser homem ou mulher “de verdade”, vale lembrar que o
Espiritismo abomina os preconceitos[18]
e, ademais, os Espíritos não têm sexo, assim, o que lhes importa são as provas
que irão passar durante a reencarnação[19],
e não sua posição quanto ao gênero ou sucesso profissional. Quanto a felicidade
de uma sociedade com “gente feliz” ser o entrave para a força e grandeza de uma
sociedade, um dia chegaremos a ser Espíritos puros, gozaremos de felicidade
inalterável, pois não mais estaremos sujeitos às adversidades e necessidades da
vida material e assim, não mais sofreremos provas nem expiações[20].
Ora, se isso não traduz força ou grandeza, desconheço forma melhor de as
descrevermos.
Ressaltamos também que a terapia
da Constelação Familiar é condenada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP),
pois vários de seus pressupostos teóricos são contrários a normativas,
resoluções e leis relativas ao exercício da psicologia. Segunda nota do CFP[21],
as sessões de Constelação podem levar os participantes à estados de sofrimento
ou desorganização psíquicas, sem que haja conhecimento técnico necessário para
capacitar o profissional a reagir adequadamente à tais situações.
De fato, uma busca na internet
por cursos de formação de “constelador”, nome que se dá às pessoas habilitadas
a empregar o método, nos permite afirmar que pode-se aprender a técnica rapidamente,
com uma carga horária equivalente a poucos meses de estudo, e observamos não
haver pré-requisitos de formação em psicologia ou psicanálise para participar
de tais cursos, dificultando assegurar aos profissionais “formados” nos cursos,
a capacitação necessária para lidar com emoções fortes e traumas eventualmente
despertados numa sessão de Constelação Familiar, como alerta o CFP.
A nota da CFP também cita o
reconhecimento do uso da violência como mecanismo para se restabelecer
hierarquias supostamente violadas, incluindo a atribuição a meninas e mulheres
a responsabilidade pela violência sofrida, além da violação de normas do CFP
sobre gênero e sexualidade.
De fato, Hellinger reafirmou a
atribuição de papeis rígidos para pais e filhos, e assim, não estranhamos que
os eventos citados pelo CFP tenham possivelmente ocorrido em função do eventual
despreparo dos “consteladores”. Além disso, Bert entende que as famílias onde
os homens estão em primeiro lugar se sentem melhores em 70% dos casos contra apenas
30% dos casos quando a mulher ocupa esse lugar. Creio que essa afirmativa
machista também explica a reação do CFP.
A partir da entrevista de
Hellinger, nos parece que a Constelação Familiar foi embasada em suas
experiências e opiniões pessoais, carecendo de base cientifica, justificando a
nota do CFP. Vale ressaltar, nesse particular, a importância da ciência para o
Espiritismo[22]
(20).
Dessa forma, a Constelação
Familiar seria uma prática alternativa, e assim, talvez, poderia servir àqueles
que buscam uma terapia rápida, que promete auxiliar na tomada de decisões e
resolução de problemas materiais imediatos. Aqueles que escolhem esse caminho,
correm os riscos aqui citados, e se submetem a uma terapia cuja prática e
pressupostos teóricos são, com base nos conflitos aqui expostos, desalinhados
com o ensinamento Espírita.
Finalmente, cabe um
esclarecimento. Há sites na internet, supostamente espíritas, usando o livro Constelação
Familiar de Joanna de Ângelis, como se fora uma ratificação da Doutrina ao
método. Ora, qualquer pessoa que se dê ao trabalho de ler o livro, poderá
constatar que a autora utiliza o termo como sinônimo de família espiritual e,
em nenhum momento, advoga a favor do método de Hellinger, de forma alguma.
Assim, esperamos ter esclarecido
alguns enfoques bem distintos entre esta prática não espírita e a Doutrina
Espírita, e os riscos de espíritas advogarem o uso de Constelação Familiar no
âmbito do Espiritismo.
[1] O CONSOLADOR - Ano 17 - N° 843 - 1° de Outubro
de 2023 - http://www.oconsolador.com.br/ano17/843/ca7.html
[2] Rodolfo Collevatti, palestrante e conselheiro do
Centro Espírita Divino Mestre, reside em São José dos Campos (SP).
[3] Site de Constelação Familiar da família do fundador e
detentores dos direitos de uso da marca. Disponível em LINK-1. Acesso em 9 de
setembro de 2023.
[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília: FEB, 2018. Introdução,
p.14.
[5] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília: FEB, 2013. Cap.
XVII item 4.
[6] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília: FEB, 2018. Pergunta 919-A.
[7] ________, _________. Perguntas 523 e 524.
[8] PEREIRA FRANCO, Divaldo. Atendimento Fraterno. Pelo
Espírito Manoel Philomeno de Miranda. Salvador: FEB, 1997. Página 25.
Disponível em LINK-2 . Acesso em 9 de setembro de 2023.
[9] HELLINGER, Bert; TEN HOVEL, Gabriele. Constelações
Familiares: o Reconhecimento das Ordens do Amor. 5ª edição. São Paulo: Editora
Pensamento-Cultrix, 2006.
[10] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília: FEB, 2018. Pergunta 872.
[11] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília: FEB, 2013. Cap. V
item 8.
[12] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília: FEB, 2013. Cap. VI item 25
parágrafo 20.
[13] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília: FEB, 2013. Cap. XXIX item 329.
[14] 12. KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o
Espiritismo. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília:
FEB, 2013. Cap. XIV item 3.
[15] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília: FEB, 2018. Pergunta 582.
[16] ________, _________.
Pergunta 920.
[17] ________, _________.
Pergunta 921.
[18] KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Evandro
Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília: FEB, 2013. Cap. I item 36.
[19] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. 4ª ed. 5ª imp. Brasília: FEB, 2018. Perguntas 201 e
202.
[20] ________, _________.
Pergunta 113.
[21] Notícia sobre nota do Conselho Federal de Psicologia.
Disponível em LINK-3. Acesso em 10 de setembro de 2023.
[22] KARDEC, Allan. A Gênese. Tradução de Evandro
Noleto Bezerra. 2ª ed. 1ª imp. Brasília: FEB, 2013. Cap I, item 16.
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