Quantos personagens assim
conhecemos: ranzinzas, intragáveis, rabugentos? Vizinho que reclama porque o
nosso cãozinho pisou na grama da frente da sua casa e urinou ali. Vizinho que
faz um verdadeiro patrulhamento na quadra, reclamando da sacola plástica no
meio da rua, embora tenha sido simplesmente o vento a trazê-la, de algum lugar
que se desconhece.
Vizinho que não responde aos
nossos cumprimentos, que nunca sorri, que somente tem uma cara enfezada e
contraída. Um vizinho que ninguém estima, ninguém faz questão de chegar perto.
Otto é assim. Um criador de caso
por tudo e por nada. Reclamador inveterado, lança verdades cruas em plena face
de quem encontra: o cão da jovem parece uma ratazana, seu carro é uma sucata, o
marido é um imprestável.
A primeira questão que o filme
nos faz descobrir é que por detrás de uma pessoa assim, existe um terrível
drama, uma raiva imensa, uma mágoa absurda. Inconscientemente, ao menos, um
extraordinário e urgente pedido de socorro.
Interessante é que, desatentos,
nem nos damos conta dessas solicitações gritantes de auxílio, dessa faceta de
infelicidade sem fim.
Otto vive um luto de seis meses,
que lhe desperta o desejo de ir ao encontro da amada, o quanto antes. Por isso,
arquiteta fugir da vida.
Esclarecem os Benfeitores
Espirituais que aqueles que põem fim à vida, no intuito de se unirem aos amores
que se foram, deles se afastam por longo tempo (…) Pagarão esse instante de
loucura com aflições maiores do que as que pensaram abreviar e não terão, para
compensá-las, a satisfação que esperavam[2].
O suicídio voluntário importa
numa transgressão à Lei Divina[3].
Com a morte biológica,
destrói-se o corpo físico, mas o ser imortal persiste com todo o carreiro de dificuldades
ou de frustrações que pretendia eliminar suicidando-se, uma vez que os
problemas da vida terrena não são obra do soma, mas da alma, que não desaparece
com o ato de suicídio[4].
Por essa razão, descobrimos
ações engendradas pela Espiritualidade, com certeza, acionadas pela sua amada,
para que ele não efetive seu intento.
E os que temos o esclarecimento
espírita a respeito das consequências danosas para o Espírito, ficamos torcendo
para que Otto não alcance seu infeliz objetivo.
De nossa parte, nos
questionamos: temos olhos e ouvidos atentos para que as Forças Espirituais nos
acionem, auxiliando, nessas situações?
Marisol, a mais nova vizinha, é
o instrumento de que se serve a Espiritualidade, que agira primeiramente,
colaborando para que Otto não concluísse, de forma eficiente o artefato
destinado a lhe cortar o fio da vida, para desagrado dele.
Marisol é a pessoa que se
importa. Logo vê que ele mora sozinho e lhe leva ora uma refeição, ora alguns
biscoitos de receitas especiais de sua gente e de sua terra. Também é aquela
que procura sua ajuda a toda hora. Dessa forma, frustra a segunda tentativa de
suicídio de Otto.
Em outro momento, será um
ex-aluno de Sonya, a esposa desencarnada, que lhe interromperá a terceira.
Que magnífica é a Providência
Divina! E como envia sinais.
Por fim, depois de quatro
tentativas diferentes e tantas interferências, Otto se dará conta de que,
afinal, talvez não seja a sua partida breve que sua amada deseja. E reformula
seus objetivos, sua vida.
Ouvindo o comentário de um dos
vizinhos, surpreende-se em como esquecera amigos preciosos há muito tempo. E
sua atitude primeira é de desculpas, revelando humildade.
Essa virtude se faz instrumento
da paz. Ela chega e dulcifica a amargura, balsamizando qualquer ferida exposta,
mesmo em chaga repelente.
Com ela, o homem adquire
grandeza interior, e considerando a majestade da Criação, como membro atuante
da vida, que é, eleva-se e, assim, eleva a humanidade inteira[5].
Tudo isso descobrimos na
transformação de Otto que se questiona como pudera esquecer uma amizade
cultivada na juventude, e exercitada em convívio por tanto tempo.
Como pudera ficar mergulhado
tanto em si mesmo a ponto de não ver os problemas graves de Reuben, inválido e
da esposa Shari, com diagnóstico de Mal de Parkinson?
Será com o propósito de salvar o
casal amigo de ser recolhido a um asilo, que renascerá o Otto dinâmico.
E os flashes de sua juventude e
de sua madureza nos farão recordar o quanto devemos a pessoas lutadoras como
ele.
Foi ele que exigiu, entre tantos
outros, incessantemente, para que fossem instituídas leis que privilegiassem os
cadeirantes. Isso porque, esperando o primeiro filho, ele e a esposa sofrem um
acidente e Sonya, não somente perde o bebê mas fica paraplégica. Ele sentirá as
dificuldades de acesso a hospitais, ao condomínio onde reside, a todos os
lugares que deseja frequentar com ela, sem rampas de acessibilidade, sem guias
rebaixadas nas calçadas.
Hoje temos leis que facilitam o
acesso aos edifícios públicos de variada ordem, que privilegiam o cadeirante, o
idoso. Quantos Ottos terão gritado por isso, lutado por isso?
Vejamos que, às vezes, são esses
reclamões inveterados que erguem vozes e bandeiras para lutar por direitos
alheios, mesmo que seja, em primeira instância, para atender o seu afeto mais
próximo.
E quando se fala de obediência a
normas, novamente nos compete pôr a mão na consciência e lembrar do mundo
sustentável que todos desejamos. Em nossa cidade há separação do lixo que não é
lixo? Colaboramos, separando devidamente papel, lata, vidro, plástico, em nossa
residência, no condomínio, nos lugares públicos que frequentamos?
As reclamações diárias de Otto
nos levam a pensar se não somos nós os equivocados, os que não prestamos
atenção, não nos importamos com o meio-ambiente, não investimos alguns minutos
para fazer o certo.
E se Otto reclama, de forma
incessante, que carros não autorizados circulam no condomínio, criando
embaraços aos próprios moradores, bloqueando entradas das suas garagens, já
vimos quantas vezes vagas de idosos e cadeirantes, nos estacionamentos, são violadas?
É de nos perguntarmos se não seria oportuno, por vezes, sermos aquele que
reclama, que denuncia, que sinaliza o equívoco.
Sim, Otto é rabugento demais. No
fundo, ele tem razão. Bastaria somente que melhorasse a sua forma de agir, o
que acaba fazendo depois.
Um fato que ressalta, ainda é o
quanto ele crê na vida depois da vida. Porque ele fala com sua amada,
relatando-lhe tudo que lhe acontece. Nas visitas frequentes ao seu túmulo, ele
leva as flores que ela gosta, chega a comentar que comprou dois ramalhetes
porque a oferta era boa e ele economizou. Bem próprio dele.
Conta da adoção de um gato, e,
por fim, leva a família inteira de Marisol para que Sonya conheça: ela, o
marido, as três crianças.
O único detalhe que se poderia
aduzir a esse comportamento é que não
precisamos comparecer na tumba para ter acesso aos afetos que se foram.
O que nos une é o pensamento, o
que nos enlaça é o sentimento.
O pensamento ecoa pelo infinito,
alcançando o ser onde quer que esteja. Isso lhe constitui verdadeira evocação.
E é por isso que no Dia dos Mortos, uma grande movimentação acontece,
comparecendo multidões espirituais aos cemitérios, pela evocação de tantos.
Mas, poderia se dar em qualquer outro lugar.
Aos Espíritos sensibiliza o se
lembrarem deles os que lhes foram caros na Terra. Se são felizes, esse fato
lhes aumenta a felicidade. Se são desgraçados, serve-lhes de lenitivo[6].
Os Espíritos acodem […] ao
chamado dos que da Terra lhes dirigem seus pensamentos, […][7]
Outro salutar comportamento, na
transformação de Otto, é, sabedor de um problema cardíaco, que o pode conduzir
à morte física, talvez, a breve tempo, providenciar suas últimas vontades.
Eis algo que deveríamos
elaborar, com bastante antecedência. Todos morreremos um dia. Por que legar aos
nossos familiares próximos ou parentes distantes problemas com nosso espólio,
seja pequeno ou extenso?
Por que não deixar bem
estabelecido o que compete a cada um, evitando que nós mesmos, desencarnados,
venhamos a sofrer, imensamente, por eventuais disputas pelo nosso patrimônio?
O Espírito daquele que morreu
quase sempre assiste a reunião de seus herdeiros. Para seu ensinamento e
castigo dos culpados, Deus permite que assim aconteça. Nessa ocasião, o
Espírito julga do valor dos protestos que lhe faziam. Todos os sentimentos se lhe
patenteiam e a decepção que lhe causa a rapacidade dos que entre si partilham
os bens por ele deixados o esclarece acerca daqueles sentimentos. […][8]
Portanto, coerência nas
decisões, não nos servindo dessa ação para nada que não seja beneficiar aos que
permanecem na Terra.
Otto desce a detalhes, doando,
inclusive, um dos bens, antes de partir, algo que fala da generosidade do seu
coração.
Pessimistas dizem que a pessoa
deixa, lega porque não pode levar.
Os altruístas, os otimistas
cremos, ao contrário, que o ato da doação se reveste de atenção, de preocupação
com o próximo, reverenciado com o que lhe endereçamos.
Registramos, plenamente, essa
questão, em Otto transformado, preocupando-se com a família vizinha, com o
jovem que luta por sua sobrevivência, depois de expulso do lar.
E a melhor lição: seu exemplo de
cidadania conquistou adeptos que lhe abraçam a causa, depois de sua morte.
Quantos de nós teremos essa
ventura de deixar bons exemplos, pegadas luminosas para serem seguidas?
Ficha técnica:
A
Man Called Otto
(Um homem chamado Otto)
§ Gênero: comédia dramática
§ Direção: Marc Forster
§ Roteiro: David Magee
§ Elenco: Tom Hanks, Mariana Treviño, Rachel Keller,
Truman Theodore
§ Produção: Tom Hanks, Rita Wilson
§ Trilha Sonora: Thomas Newman
§ Fotografia: Matthias Koenigswieser
§ Duração: 126
minutos
§
Ano: 2022
[1] Revista Mundo Espírita - Setembro de 2023 -
Número 1670 - Ano 91 - http://www.mundoespirita.com.br/?materia=o-pior-vizinho-do-mundo
[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de
Janeiro: FEB, 1974. pt. 4, cap. I, q. 956.
[3] Op. cit. pt. 4, cap. I, q. 944.
[4] TEIXEIRA, J. Raul. Ações corajosas para viver em paz.
Pelo Espírito Benedita Maria. Niterói: Fráter, 2009. pt. XI, cap. 62.
[5] FRANCO, Divaldo Pereira. Convites da vida. Pelo
Espírito Joanna de Ângelis. Salvador: LEAL, 1972. cap. 28.
[6] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de
Janeiro: FEB, 1974. pt. 2, cap. VI, q. 320.
[7] Op. cit. pt. 2, cap. VI, q. 321.
[8] Op. cit. pt. 2, cap. VI, q. 328.
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