Quando a palavra, o
pensamento e os sentidos não vibram em nós, soa o solene momento de ouvirmos de
Deus a voz.
Longfellow
Nem na história, nem na tradição, se encontra a menor
insinuação de que as religiões foram criadas pelo raciocínio; ao contrário,
toda a história e tradição afirmam que elas vieram ao mundo pela revelação. O
estado da religião nas primitivas eras de que temos conhecimento, faz supor e
insinua que foi essa a sua origem no seio da humanidade.
Butler
A inspiração, como os prodígios
e milagres dos Evangelhos e os dons espirituais exaltados por S. Paulo, têm
sido usualmente estudados com pouco critério. Seus apologistas lhes têm feito
mais mal que os adversários. O espírito racionalista da nossa época mostra-se
disposto a rejeitá-lo, apresentando como principal motivo a extravagância e o
caráter exclusivo das pretensões interessadas dos teólogos a tal respeito.
A ortodoxia protestante proclama
que isso foi um dom excepcional e miraculoso, concedido ao homem, apenas
durante o primeiro século e unicamente ao Autor da religião e a mais oito, isto
é, aos quatro Evangelistas e a S. Paulo, S. Tiago, S. Pedro e S. Judas; ao
passo que a ortodoxia católico-romana afirma que esse dom miraculoso de Deus
tem sido concedido durante esses dezoito séculos, mas, nos dezessete últimos,
só a uma jurisdição eclesiástica: A Santa Igreja Católica.
Ambas as ortodoxias, apesar de
diferirem em muitos pontos, são concordes em afirmar que a inspiração é dom
direto de Deus, a fonte da pura e infalível verdade.
Embaraçada por essas pretensões
tão antifilosóficas, não devemos nos admirar de ver a inspiração rejeitada como
mentira, por muitos dos espíritos mais eminentes e pensadores da nossa época.
Quando a ciência reconhecer plenamente a existência como pane do plano cósmico,
dos fenômenos ultramundanos, como admite a dos mundanos, o crescente ceticismo
se dissipará.
Antes disso, porém, cumpre-nos
abandonar a definição ortodoxa da inspiração, adotando uma outra que mais se
conforme com o espírito esclarecido do tempo; alguma coisa, talvez, neste
sentido.
Ela é um fenômeno mental ou
psíquico, restritamente obedecendo à lei; ocasional, mas não excepcional ou
exclusiva, apresentando, às vezes, um caráter espiritual e ultramundano é
certo, mas nunca miraculoso; fornecendo frequentemente ao homem valiosos
conhecimentos, mas nunca ensinos infalíveis; sendo um dos dons mais preciosos
por Deus concedido às suas criaturas; mas, em caso algum, podendo ser
considerado como mensagem direta de Deus, mensagem que deva ser aceita sem
discussão, pela razão e pela consciência, como a verdade divina expurgada dos
erros humanos.
A isso podemos acrescentar,
conformando-nos com as vistas do Bispo Butler, que a inspiração não é a fonte
de uma só religião, mas, de um modo mais ou menos puro, de todas as religiões
antigas ou modernas, que têm dominado as grandes frações da humanidade.
A proporção do bem e da verdade
que se nota em cada sistema de fé religiosa é relativa ao grau de pureza da
fonte donde cada uma emanou e, mesmo, aparece, em certos limites, como a
ciência moderna reconhece nos credos mais toscos. Por isso diz Lowell:
Das crenças todas nas leis Que hão regido a humanidade,
Sempre germes achareis
De justiça e de bondade.
Entre os que adotam esta clara
definição da inspiração, considerando-a como uma potência universal, há duas
opiniões diferentes quanto à sua origem: certos nacionalistas (incluindo muitos
dos cultores do magnetismo vital, descobrem-na em uma condição especial da
alma; ao passo que outros lhe buscam a fonte em alguma inteligência oculta,
estranha ao indivíduo e obrando sobre ele).
Estou convencido de que ambas as
teorias contêm verdades. A inspiração é um fenômeno às vezes puramente
psíquico, da classe da clarividência e pertencendo ao ramo da Ciência Mental,
e, outras vezes, produzido por influências do outro mundo e pertencendo ao
domínio do Espiritismo.
Entre os antigos filósofos,
alguns houve que, mais ou menos distintamente notaram a sua existência, uns de
uma certa forma, outros de outra. O espaço, porém, só me permite apresentar
alguns espécimes. O mais importante exemplo nos vem de um homem justamente considerado
como pai da Filosofia Moral.
Relativamente à inspiração,
Sócrates, não menos que Platão, adotava a teoria espírita.
Entre os célebres Diálogos de
Platão, há um em que os interlocutores são Sócrates e Ion, declamador e poeta
ateniense, que tinha por hábito introduzir em seus discursos belas e abundantes
citações de Homero. Aludindo ao grande sucesso que tais citações tinham obtido,
e dado o fato de ter ele baqueado em seus esforços quando fazia citações de
outros poetas, Ion pediu a Sócrates uma explicação. E Sócrates lhe respondeu:
Digo-vos, oh! Ion, qual me parece ser a causa dessa
desigualdade de poderes. É que vós não empregais artifício algum para fazer
tais citações, mas o efeito obtido provém de uma influência divina que vos
move, semelhante àquela que reside na pedra que Eurípides chama magnética.
Depois, para mais esclarecer,
acrescenta:
Os autores desses grandes poemas que admiramos, não
alcançaram a preeminência pela arte com que eram arranjadas as belas melodias
dos seus versos, mas porque os recitavam num estado de inspiração, sob o
domínio de um espírito que não era o deles.
Dizei-me, pergunta a Ion, sem dissimulação:
Quando declamais bem e arrebatais o vosso auditório admirado, celebrando a
volta de Ulisses ao seu palácio, fazendo conhecer aos pretendentes a mão de sua
mulher e lançando flechas a seus pés; ou explicando o ataque de Aquiles contra
Heitor, expondo as passagens relativas a Andrômaca, a Hécuba e a Príamo, vos
sentis na posse de vós mesmo? Não pareceis estar arrebatado e cheio de
entusiasmo pela lembrança que esses fatos despertam, fazendo-vos imaginar que
estais em Itaca, em Tróia, ou onde quer que vos leve o poema que recitais?
Ion lhe respondeu: Falaste
sabiamente, Sócrates. Então o sábio lhe dá a seguinte explicação:
Vós, oh! Ion, sois influenciado pelo Espírito de
Homero. Se recitais as obras de algum outro poeta, o fareis sem fogo e vossas
palavras se perdem; mas, quando ouvis alguma das composições daquele, vossos
pensamentos são excitados e vos tornais eloquente... Isso explica vossa
pergunta sobre o fato de Homero e nenhum outro poeta vos inspirar com
eloquência, e quer dizer que se não tendes primazia pela ciência tende-ia pela
divina inspiração.
A expressão atribuída a Sócrates
por Platão: Sois influenciado por Homero, é mui notável e implica a
doutrina cardeal do Espiritismo.
Para adotar essa explicação, o
filósofo tem a melhor de todas as razões: a sua própria experiência. Falemos
do: GÊNIO OU DEMÔNIO DE SÓCRATES.
Sobre as particularidades
relativas ao conhecido Espírito Protetor ou Demônio (Diamonion) de Sócrates,
recorremos à mesma eminente autoridade, por cujo intermédio a maioria das
opiniões emitidas verbalmente e não por escrito, do filósofo mártir, vieram ter
a nós.
Apesar de se encontrar alusão
noutros pontos dos escritos de Platão, a notícia mais direta e segura dessa voz
espiritual e de seus conselhos se encontra na Apologia escrita logo após a
morte de Sócrates. Nessa obra, a única recordação rigorosamente autêntica que
possuímos da defesa daquele filósofo diante de seus juízes, ‒ Platão, que se
achava presente a essa prova, deve merecer toda confiança quando reproduz
fielmente as palavras e argumentos do seu amado mestre naquela memorável
ocasião.
Entre as acusações feitas a
Sócrates, achava-se compreendida a sua pretensão de comunicar com um Espírito
familiar. Referindo-se a isso e aludindo ao fato de haver ele ensinado que as
orações deviam ser feitas no íntimo e não nas assembleias populares, Sócrates
diz aos seus juízes:
Frequentemente, e em muitos lugares, tendes
ouvido dizer que sou guiado por uma certa influência divina e espiritual; e é a
isso que Mélitus, por zombaria, se refere em sua denúncia. Essa influência
começou na minha infância, qual espécie de voz que, quando a ouço, me distrai
do que estou fazendo, mas nunca me irrita. Foi ela que se opôs a que me
envolvesse na política.
Outra alusão ao mesmo objeto,
ainda mais solene, feita na imediata previsão de morrer, visto que a maioria
dos juízes já o tinham condenado, é a seguinte:
Comigo, oh! Juízes,
dá-se uma coisa estranha. A voz profética do meu divino protetor costuma, em
todas as ocasiões, mesmo tratando-se de coisas banais, opor-se a que eu cometa
uma injustiça.
Agora, porém, que me
sucedeu o que estais vendo, uma coisa que vós supondes o maior dos males, nada
me avisou de que Deus se opunha a que eu saísse de casa esta manhã, nem que me
dirigisse a vós; contudo, fui frequentemente refreado no meio do meu discurso.
Qual supondes ser a
causa disso?... O que me sucedeu não é efeito do acaso e é claro que, morrer
agora e ficar livre de meus cuidados, é para mim muito melhor. Neste caso, o
aviso de modo algum podia desviar-me do meu fim.
A sinceridade do filósofo quando
tal disse, não pode racionalmente ser posta em dúvida. É preciso ser um cético
teimoso e insensato para acreditar que um homem como Sócrates, já prestes a
morrer por não querer resgatar a vida pela desistência de um ensino que sentia
bom e justo, se afastasse nesse momento da rigorosa verdade. Poderemos rejeitar
esse testemunho?
O mais sincero dos modernos
historiadores da filosofia admite o que disse Sócrates como prova concludente.
Lewis, que ninguém por certo acusará de superstição ou credulidade, em sua História
da Filosofia aludindo à crença de Sócrates em ser, de tempos a tempos
aconselhado por uma voz divina, diz:
Isto é uma explícita
afirmação e, com certeza, num país cristão onde abundam exemplos de pessoas que
acreditam nas sugestões espirituais, não haverá dificuldade de crer em tal
afirmação.
Não podemos saber até que ponto
Sócrates devia ao seu Espírito Protetor as ideias sobre a imortalidade e a vida
futura, nem mesmo é provável que ele o pudesse determinar. Sócrates parece ter considerado
essa influência antes como conselheira que mentora.
Contudo, parece-nos estranho
que, há vinte e três séculos, ele tivesse, sem auxílio, chegado ao conhecimento
de verdades que com tanta dificuldade hoje vamos reconhecendo. Adicionemos o
seguinte exemplo:
Quando é que a alma chega
a obter a verdade? Quando busca investigar alguma coisa ao longe, estando presa
ao corpo, é claro que este a desencaminha... A alma raciocina com mais eficácia
sem o embaraço dos sentidos corporais, quando não ouve, não vê nem sente
qualquer dor ou prazer. Sem esse embaraço, ela concentra-se o mais possível e
aspira o conhecimento, do real, buscando separar-se do corpo e abstendo-se,
tanto quanto possível, de toda união e participação com ele.
Aí vemos o germe da ideia da
inspiração. Cícero, mais tarde, estendeu-se no assunto. A seguinte notável
passagem, literalmente traduzida, é das suas Questões Tusculanas:
Que fazemos nós
quando subtraímos nossa alma à ação dos gozos corporais, das relações comuns
que os produzem, dos deveres públicos ou de qualquer outra preocupação - que
mais fazemos, digo eu, senão concentrar nossa alma em si mesma e afastá-la o
mais possível da ação do corpo? Mas, separar a alma do corpo será coisa diversa
da morte? Por isso, acreditai-me, quando tomamos a peito subtrair-nos à ação de
nosso corpo, vamo-nos acostumando a morrer. Enquanto estamos na terra, nada
mais fazemos que nos preparar para a vida celestial; e quando, afinal, nos
desprendermos dos laços terrenos, o libertamento da alma será mais fácil.
Esse acostumar-se a morrer tem
alguma coisa de fantástico; mas essa expressão é, de algum modo, justificada
pelos fenômenos do Magnetismo Animal. Quando o sonambulismo artificial se
afunda até o ponto que os franceses chamam o êxtase, que não é mais que
o transe profundo, os laços que prendem a alma ao corpo são gradualmente
afrouxados e no paciente se manifesta, às vezes, um forte desejo de escapar-se
da terra para um mundo mais belo. Se, pela inexperiência ou descuido do
operador, o sono sonambúlico prolongar-se muito, a morte provavelmente virá. Eu
soube, em Paris, que muitos casos destes se têm dado, mas os nomes dos agentes
e percipientes, como é natural, são conservados em segredo.
O exemplo de um sonâmbulo que
esteve prestes a escapar-se, foi relatado por um magnetizador francês, autor de
uma obra curiosa sobre Os segredos da vida futura. Tinha ele à sua
disposição dois sonâmbulos lúcidos: um jovem chamado Bruno, e uma mulher, Adélia,
de humilde condição, mas não médium de profissão. Não recebia paga pelo
exercício da faculdade que manifestara desde a infância.
Uma vez, ele magnetizou
simultaneamente os dois, desejando comparar impressões e satisfazer dúvidas
acerca do perigo inerente ao estado do êxtase prolongado. Colocou Bruno em
relação magnética com Adélia, ordenando-lhe que observasse o que era feito dela.
Entregue a esse trabalho por algum tempo, Bruno de repente exclamou: Perdi-a
de vista; despertai-a; é tempo. Assustado, o magnetizador fixou a atenção
sobre Adélia, a quem tinha abandonado a si mesma por espaço de um quarto de
hora.
Eis o que ele próprio diz:
Neste pequeno lapso de tempo, seu corpo tinha adquirido
quase a frieza do gelo; a pulsação e a respiração eram insensíveis; a face
ficou lívida, os lábios azulados, o coração não dava sinal de vida. Um espelho
que aproximei de seus lábios conservou-se limpo. Magnetizei-a com maior força, esperando
reanimá-la, mas nada consegui durante cinco minutos.
Bruno e várias pessoas que
assistiam à sessão, concorriam, pelo terror que os dominava, para o meu desnorteamento.
Por um momento julguei tudo acabado e que a alma da sonâmbula havia realmente
abandonado o corpo. Pedi que todos os presentes passassem à sala imediata, a
fim de ver se assim recuperava a minha energia, mas a esperança própria me
fugia e eu me sentia impotente.
Concentrando-me, então, pedi a
Deus não consentisse que aquela alma, vítima das minhas dúvidas, se passasse
para o outro mundo.
Depois de curto período de
angústias, ouvi Adélia com voz muito fraca, dizer:
Por que me chamaste?
Tudo estava acabado, quando Deus, tocado pela vossa prece, mandou-me voltar.
O autor acrescenta:
Aconselho aos que
sejam tentados a aventurar-se em tais experiências, que delas desistam, a fim
de não testemunharem um tão triste espetáculo, cuja consequência pode não ser
para eles tão feliz como foi para mim.
Em ocasião anterior, Adélia
achando-se no estado de êxtase, acreditou estar vendo e conversando com sua mãe
e dois irmãos.
Então, entabulou-se a seguinte
conversação entre ela e seu magnetizador:
- Ah!
Quanto me alegra estar com eles! Deixai-me ir; depressa estarei no céu.
- Sois
corajosa. Que faremos do vosso corpo?
-
Queimai-o ou fazei dele o que quiserdes.
- E
que diremos aos oficiais de justiça?
-
Dizei-lhes que me fui embora.
Que durante o sono magnético se
produza uma modificação das relações normais existentes entre alma e corpo, é
um fato atestado pela insensibilidade do percipiente aos sons exteriores e às
dores, mesmo as mais agudas, que sobrevenham. Não se pode ler uma boa obra
sobre Magnetismo sem se adquirir fortes razões para crer que no transe
magnético profundo há um certo afastamento da alma das suas relações terrenas,
aproximando-se do estado existencial a que ela chegará quando aquilo a que S.
Paulo chama corpo espiritual estiver totalmente desligado do terrenal.
Outro fenômeno também está agora
provado, e é que durante esse afastamento parcial da alma, as suas faculdades
naturais menos embaraçadas pelos laços terrestres, mostram-se com percepções mais
claras e conhecimentos mais desenvolvidos. Isto sucede, quando, como Sócrates o
disse, a alma se concentra em si mesma, ou, segundo Cícero, quando nos chamamos
a nós mesmos; seja que se produza artificialmente, como nos passes magnéticos;
seja que se dê nas condições normais do corpo, por natural idiossincrasia.
O mais modesto e cauteloso dos
escritores sobre o Magnetismo Animal, o Doutor Bertrand, definiu perfeitamente
esse estado, quando artificialmente produzido:
O sonâmbulo adquire novas
percepções fornecidas pelos órgãos internos, e a sucessão dessas percepções
constitui uma nova vida, diversa da que gozamos habitualmente; nessa nova vida
apresentam-se fases de conhecimento diferentes daquelas que nos dão as
sensações ordinárias.
Eu mesmo, em muitas ocasiões,
verifiquei esse fenômeno, que podemos chamar de ciência íntima, produzido pela
exaltação da inteligência nesse estado anormal. Outros, porém, podem falar com mais
segurança do que eu, devido a terem maior experiência.
Um médico com quem entretenho
íntimas relações, dos mais conhecidos e considerados de New York, e sua mulher,
tendo, antes do advento do Espiritismo tomado profundo interesse pelos fenômenos
magnéticos, em experiências feitas durante cerca de dois anos com uma
costureira americana, mediocremente instruída e com um pouco mais que a
capacidade mental da gente de sua classe, me disse que Marian desperta e Marian
mergulhada no sono magnético eram duas pessoas inteiramente distintas; tanto
quanto se pode imaginar por suas percepções, inteligência e discernimento. Um
dia, conversando sobre magnetismo e seus efeitos, ele me disse que essa jovem
tinha feito comentário sobre assuntos médicos e filosóficos, nos quais
manifestara grande profundeza de vistas. Em muitas outras matérias também se
mostrou bastante esclarecida.
Entretanto, relativamente à
inspiração, refletindo sobre os fenômenos supracitados, vêm-me à mente que o
mundo os tem reconhecido sob essa forma particular porém, que a analogia entre eles
e as variadas fases de exaltação intelectual e psíquica, o êxtase religioso, o
hipnotismo involuntário e o transe espontâneo é tão estreita, que,
racionalmente não se pode negar a conexão existente.
Muitos dos dons espirituais
enumerados por Paulo se têm manifestado epidemicamente em pessoas de
temperamento sensitivo, durante o sono magnético, como se deu com a intitulada possessão
das freiras ursulinas de Loudun (1632
a 1639), e com os pseudomilagres dos convulsionários (Trembleurs) das Cevenas (1686
a 1707). A fúria mágica das pitonisas tinha, evidentemente, um cunho magnético.
Numa no bosque de Arícia, Maomé na caverna de Hira, poderiam ter estado
inconscientemente sob influência espiritual ou sonambúlica. A visão de Pedro,
em que se lhe mostrou o céu aberto, descendo dele um vaso; o transe de Paulo,
que ele não pôde dizer, se estaria no corpo ou fora dele, apresentam com
certeza, menor ou maior, semelhança com muitas centenas de casos de êxtases,
que têm aparecido em Paris, em Londres e em outros pontos, durante o último
século. Todas as manifestações desta ordem pertencem a uma grande classe de fenômenos.
A forma mais simples e mais
usual da inspiração é a comumente chamada a do gênio, cujos resultados
aparecem em eminentes trabalhos literários, em primores de arte, em algumas das
nossas mais maravilhosas descobertas científicas e invenções mecânicas; e mais
evidentemente ainda, na elevada ordem da composição musical. Tudo isso é,
algumas vezes, adstrito a uma organização natural, devidamente cultivada;
mas, ao lado da influência reconhecidamente poderosa de um cérebro forte e bem
conformado, o melhor dos patrimônios, o gênio, pode dever seus triunfos aos Espíritos
invisíveis, semelhantes à atração, salvo nos seus efeitos.
Os grandes poetas dos primeiros
tempos tinham algum sentimento desse auxilio do alto, costumavam invocar a
assistência dos poderes invisíveis; podemos afirmá-lo com razão, como disse Sócrates.
Quando um poema escrito por um
mestre-escola grego, em passado que já vai bem longe, força ainda os nossos
mais hábeis literatos a traduzirem-no, despertando ainda hoje a mesma admiração
com que era ouvido há mais de três mil anos; quando alguns dramas, escritos por
um homem comparativamente ignorante têm,
desde há três séculos, fornecido à língua saxônia uma quarta parte das suas
palavras domésticas. Poderemos
banir a ideia do provável auxílio de uma esfera mais elevada de seres? O caráter
maravilhoso desses resultados, desencaminhando o mundo, tem provocado a dúvida
acerca da existência desses autores, como incapazes de apresentar tais obras. O
professor Wolf, de Berlim, em uma obra apreciada, nega a Homero a autoria da
Ilíada e da Odisséia, duvidando mesmo da sua existência e aventurando a ideia de
serem esses imortais poemas a coleção das produções de diversos rimadores e
rapsodistas. O mesmo sucede relativamente a Shakespeare. Uma ilustrada e
laboriosa escritora consumiu sua vida, e podemos dizer que a inutilizou, coligindo
e publicando o que acreditava serem provas de que o discípulo da escola livre
de Strasford não era o autor dos dramas que ainda hoje encantam o mundo.
O mesmo ainda se nota a respeito
de um dos mais célebres pintores: seus contemporâneos olhavam-no e seus
biógrafos falavam dele, apesar de ter morrido apenas com trinta e sete anos de
idade, com uma espécie de reverência, como de uma pessoa divinamente inspirada.
Vasári assim começa a biografia da sua vida:
A largueza e a liberdade
com que o céu, às vezes, se compraz acumular com as infinitas riquezas de seus
tesouros a um dos seus favoritos, são exemplificados na pessoa de Rafael
Sanzio.
Noutro ponto, diz que os
indivíduos "como Rafael dificilmente podem ser chamados homem; devendo
antes, se me permitem falar assim, dar-se-lhes o apelido de deuses
mortais". Ainda em outro ponto, fala desse pintor como daqueles "que,
por um dom especial da natureza, ou por um favor particular a eles concedido
pelo Altíssimo, fazem milagres na arte".
Nenhuma memória, que eu saiba,
se possui da vida doméstica de Rafael; nenhuma coleção há de cartas suas. Isso
nos pode revelar a sua própria consciência da inspiração que lhe assinala o temperamento
artístico.
Temos uma evidência direta dessa
espécie, em dois dos mais notáveis músicos do mundo.
Beethoven, falando da fonte
donde lhe vinha o espírito de suas maravilhosas obras-primas, diz a Bettina:
Sinto que a corrente
da melodia saindo do foco da inspiração, se derrama por todos os lados.
Sigo-a, alcanço-a
apaixonadamente; vejo-a escapar-se, esvair-se no meio da confusão de
excitamentos variados; apanho-a de novo com renovada paixão; não posso
separar-me dela. Depois, com um vivo arrebatamento, multiplico-a em todas as
formas de modulações, e, no último momento, seguro o seu pensamento capital, a
fim de compor uma sinfonia.
Mais frisante é o seguinte
trecho de uma carta de Mozart a um seu amigo:
Dizeis que
desejaríeis conhecer o meu modo de compor e o método que sigo escrevendo obras
de alguma extensão. Sobre isso, não vos posso dizer mais que o seguinte, porque
eu mesmo nada mais compreendo, nem vos posso expor: Quando me torno completamente
eu mesmo, quando estou inteiramente só e bem disposto, viajando em carruagem,
passeando depois de uma boa refeição, ou de noite, quando não consigo conciliar
o sono, é que sinto as ideias me assaltarem com mais força e abundância. Donde
e como elas me vêm, não sei dizê-lo. Conservo na memória as ideias que me
agradam e, como já tenho dito, estou acostumado ao seu sussurro. Se não me
distraio, dá-se o fato de poder repetir um ou outro pedaço que desejo
conservar, de modo a fazer com eles uma melodia, isto é, um todo conforme as
regras do contraponto, às peculiaridades dos diversos instrumentos, e assim por
diante. Tudo isso me excita a alma e se não me distrair, meu tema se alarga e
vai metodizando-se, definindo-se e o todo, por mais vasto que seja, fica quase
completo e acabado em minha alma, de modo a poder observá-lo, como se faz de
relance com uma fina pintura ou uma bela estátua. Na minha imaginação não ouço
as partes sucessivamente, porém, todas formam um conjunto. Não posso exprimir o
deleite que isso me causa. Todas essas invenções e produções representam para
mim o efeito de um sonho grato e animado. Mas o melhor é depois, a audição do
todo completo. Não posso esquecer facilmente o que assim se produziu. Este é,
talvez, o melhor dom que me concedeu o Divino Criador.
Essas ideias e sugestões vêm
quase sempre descarnadas e imperfeitas: necessariamente, porque o mundo
civilizado recentemente começou a estudar a inspiração como uma potência universal,
em sua conexão com a faculdade do transe ou com a hipótese espiritualista, e,
porque, neste sentido, as experiências desse ramo de investigações apenas
começam a acumular-se, ainda não é comum a crença de que paira na esfera
ultramundana um dos focos das mais subidas obras humanas, literárias,
artísticas ou espirituais.
Ficamos sempre confusos com as
analogias do caráter humano, com os seus extremos de bondade e maldade, e
podemos dizer: "Pobre ou rico, vassalo ou soberano, sempre é escuso e estupendo
o ser humano”.
Nós, porém, ainda não temos
firmada uma explicação. Ainda não conhecemos praticamente como a escravidão da
alma ao corpo tende a entorpecer suas percepções e a sufocar suas melhores aspirações;
nem sabemos por que aquela aspira mais livremente e discerne com maior clareza,
quando o rigor dessa servidão diminui.
Praticamente, não podemos ainda
dizer como pode o homem aprender a crescer em sabedoria e bondade por sua
comunicação ocasional com um estado mais elevado do ser; nem quão grande é o prejuízo
dos que fogem dessa comunhão. Praticamente, não cremos que o Cristo nos tivesse
falado de um espírito de verdade que viria, depois dele, ensinar-nos toda a
verdade.
Nossas investigações nessa
matéria têm sido feitas de longe, entre névoas cerradas e não em terreno
favorável, esclarecido pela luz do alto.
Julgo que a razão disso é que a
luz maravilhosa que há dezoito séculos despontou para o mundo, ofuscou e cegou
a humanidade, mesmo quando ela se acha mais inteligente e aperfeiçoada. Era um fenômeno
espiritual, sem igual em toda a história e, para os nossos antepassados, sem
solução aparente fora do miraculoso; sem exemplo e, talvez, sem relação com as
obras maravilhosas praticadas pelo Cristo, visto que os judeus em sua história
e, mesmo os gregos e os romanos em sua mitologia, encontravam precedentes a
muitas delas, mas em relação à luz do Cristianismo que, no seu aspecto moral e
espiritual e em seus efeitos, é sem igual na velha experiência do homem. Não
aparecendo assim, no começo, a não ser para um pequeno número de adeptos, mas
indo gradualmente se apossando da mente e da alma do mundo, essa luz brilhou
como um sol surgindo pela primeira vez para a terra, cujos habitantes, até
então, tinham vivido e trabalhado à luz de um astro.
Deverá esse símile ser rejeitado
por parecer divergir de tudo o que observamos na marcha da natureza? Permiti
vos diga, com segurança, que essa divergência não existe: a ação da natureza é multiforme.
Entretanto, as obras de Deus ao
redor de nós, dão-nos a evidência de que o princípio do progresso gradual
domina a economia do universo, de que as leis naturais são invariáveis e persistentes,
e de que mesmo dentro dessa ordem e governadas por essas leis, ocorrem em
certas épocas, vastos adiantamentos no progresso humano, os quais, como as
revoluções políticas que sobrevêm de tempos a tempos, modificando a ordem de
coisas estabelecidas, produzem, às vezes, em alguns anos, melhoramentos que os
tempos não tinham conseguido efetuar.
A história nada contém de mais
interessante que a lembrança desses progressos gigantescos, cada um
aparentemente sem precedente, cada um vindo interromper a monótona paz do
mundo.
Quantos incidentes na história
cósmica estão à espera de um Colombo, dando ao mundo antigo uma metade do nosso
globo para que ele a estude e nela possa viver? Os anais da literatura não nos apresentam
uma vitória igual, em seus resultados práticos, ao triunfo de Fausto, caso se
deva atribuir ao ourives de Mentz a arte da impressão, que habilitou o homem a
estreitar suas relações com todos os de sua raça. Até nos inventos, o império
das fadigas teve sua época titânica ocorrida há pouco mais de um século; época
essa em que o vapor começou a substituir a força humana; em que a roca e o
torno, humildes auxiliares do operário humano durante três mil anos, foram
substituídos por um sistema rápido de manufatura, que tornou quinhentas vezes
mais produtivo o trabalho da humanidade.
Na vida do indivíduo, por mais
restrito que o progresso seja, encontramos fenômeno ainda mais notável,
denunciando um adiantamento sem precedentes. Criança, jovem, adulto, patriarca,
os limites de cada um desses estados sucessivos, são imperceptíveis; depois,
porém, chega a grande época, o ponto do progresso em que sem sabermos como,
nossas faculdades perceptíveis, intelectuais e espirituais, repentinamente se
acham aumentadas; em que os meios de comunicação com os nossos semelhantes se
libertam dos tropeços do tempo e do espaço; em que novos Colombos nos guiam a
um novo mundo.
O mesmo acontece com a sucessão
da vida animal na terra, desde os tempos pré-históricos. A geologia nos
informou que houve um período de incalculável duração no qual este mundo ocupado
pelas raças inferiores, não foi habitado pelo homem. Um eminente naturalista
moderno,
explorando esse período e investigando o princípio do progresso vital descobriu
uma grande lei geral governando o gradativo adiantamento das espécies, por meio
da seleção natural e da preservação de cada espécie, animal ou vegetal, na luta
pela existência. Ele, porém, não aduziu fatos que atestassem a transformação de
uma espécie em outra, nem nos descobriu nenhum elo prendendo o bruto ao homem.
Contudo, permanece intacta a
hipótese, certamente razoável, de que, de conformidade com a lei que regulou a
vida pré-adâmita, está subentendida uma condição segundo a qual uma criatura
com faculdades e sentimentos que a habilitam a conceber e desejar uma vida
futura, podia, em certo ponto do progresso geral, aparecer repentinamente; uma
criatura destinada a subjugar a terra e alcançar o céu. A vasta cadeia, se nos
podemos exprimir assim, do cósmico desenvolvimento, apresenta em certo ponto
uma falta, anterior e posteriormente à qual, a razão progressiva das séries não
difere, quando, em virtude de passo superiormente grande, toma lugar no mundo
uma raça, a única capaz de transmitir a experiência de uma outra geração, e
que, depois de certo tempo, aprende a perpetuar essa experiência por duradouros
sinais artificiais. Daí, como consequência desse passo, apareceu o progresso
ético, intelectual e espiritual.
Agora, voltando dessa digressão
ao assunto que nos ocupa, encontramos firme a mesma analogia. A história da
Ética e da Religião, como as da Cosmogonia, da Literatura e da Ciência produtiva,
teve à sua época, da qual data um motivo de progresso até então desconhecido.
Nos primeiros progressos do Espiritismo, como nos sucessivos progressos das
raças e na peregrinação da vida humana, temos a notar que se deu um passo
agigantado, indo da mais baixa à mais alta esfera de seres.
Sem precedentes, sem nenhum
outro que se lhe assemelhe, o progresso que resultou deste, não pode ser
comparado à marcha de qualquer outra revolução política ou religiosa.
O estabelecimento neste mundo de
um reino que não é deste mundo, chamado, às vezes, o reino do céu, não se nos
faz conhecer pela observação,
nem se denuncia pela pompa mundana que lhe fazem, nem mesmo através de alguma
abertura nas nuvens. O reino do céu vai-se fazendo lenta, pacífica e calmamente
no coração do homem, à medida que a realeza do Cristo se exerce sobre as almas humanas.
Cumpre-nos estudar essas
pretensões que aos céticos parecem exageradas, não segundo as asserções dos teólogos,
nem com as incertezas e obscuridades da história remota, mas em fatos conhecidos,
bem delineados, familiares a todo homem instruído.
No que chamamos usualmente mundo
civilizado, existem milhões de homens que, se lhes perguntarem qual a sua
religião, dirão que não são católicos; existem outros milhões para afirmarem que
não são protestantes; porém, se excetuarmos os cinco ou seis milhões de judeus,
acharemos que cerca de um centésimo somente da humanidade dirá que não é
cristã.
Se os ensinos espirituais
ouvidos primeiro na Galileia há dezoito séculos (limpos de todos os credos
estranhos), não são a religião da civilização, nenhum outro o poderá ser.
Aquilo que justamente chamamos a maioria esclarecida do mundo, adere a esses
ensinos, apesar da amortecedora e retroativa influência dos credos estranhos que
lhes ajuntaram.
É admirável que a cristandade,
antes de começar a reconhecer o reinado universal da lei, admitindo a
intervenção miraculosa, tivesse buscado explicar um tal fenômeno; é admirável,
ainda, à vista da presunção para a qual se inclina a nossa raça míope, que a
ortodoxia não conhecendo solução natural de um tal enigma, tenha-se refugiado
em uma concepção na qual se manifestam pretensões que o homem tem escrúpulos de
expor claramente; porque elas não só envolvem a direta intervenção e suspensão
de suas leis pelo Criador e Legislador Onipotente de miríades de sistemas
solares e miríades de miríades de mundos, mas também pressupõem virtualmente a
sua presença, com a forma humana, durante uma geração de homens neste nosso
pequeno mundo, quando há tantos que para nós são mundos, mas para Ele são
pequenos pontos na imensidade.
Entretanto, se essas pretensões
transcendentais eram próprias do seu tempo e da sua geração, nada menos que
elas, fornece hoje um motivo abundante e uma ocupação ao ceticismo. É esse um
ponto inexpugnável; mas, a ortodoxia deixa-o de lado, internando-se pelas ilimitadas
regiões do Dogmatismo. Ela busca os milagres nas obscuras perspectivas dos
dezoito séculos passados, quando o milagre dos milagres, se o maravilhoso se
chamar miraculoso, nos está patente e pode ser apreciado pelos nossos sentidos.
Presume a teoria do Ceticismo o
seguinte: O filho de um operário judeu, residente em uma vila obscura da Galileia
criou-se na casa de seu pai com as mais limitadas oportunidades de cultivar o espírito,
sem meios de estudar as literaturas da Grécia e de Roma, sem experiência do
mundo para suprir a sua falta de instrução e ainda sem auxílio espiritual,
torna-se, na idade de trinta anos, um Pregador público; continua a ensinar
durante três anos, três somente; e depois, por causa da liberdade de suas
opiniões, sofre a pena capital. Suas palavras e atos desses três anos, que ele
não reduziu à escrita, foram registrados no período de meio século seguinte à
sua morte, por seus companheiros humildes e relativamente ignorantes.
Apesar disso, mais de cinquenta
gerações de homens encontraram nesses registros, somente neles, uma religião
que os homens cultos podem abraçar e as nações civilizadas venerar. Certamente,
não é assim como os céticos admitem; pois seria isso um milagre de todos os
milagres, uma impossibilidade moral e intelectual.
A impossibilidade é inerente ao
postulado do Ceticismo – sem auxilio espiritual. Se esse auxílio é essencial a
todas as obras altas e nobres do homem, será concebível que ele faltasse ao
mais alto e mais nobre de todos?
As dificuldades que acompanham
essa ideia capital, na hipótese dos céticos, não findam aí. Se os discípulos
não caluniaram o Mestre, suas narrativas encerram uma acusação direta de
falsidade contra ele; pois, apesar de ter ele habitualmente dado a si mesmo o título
de Filho do Homem, consente que o chamem e aclamem Messias, Cristo, tão falado
pelos antigos profetas e tão esperado pelos judeus, como um Libertador. É
necessário que os que não aceitam a minha interpretação consultem os léxicos
hebreu e grego.
Jesus proclama-se o Ungido de
seu Pai e nosso Pai, um Mensageiro divino, Profeta e Rei Espiritual. Devemos
conceder-lhe esses títulos? A história nada apresenta de seguro que nos
autorize a fazê-lo. Suas credenciais, porém, estão na sua própria Mensagem, na obra
que produziu e na narração da vida do Mensageiro.
Todas as grandes figuras da Antiguidade
empalidecem, mais ou menos, diante da luz da civilização moderna, com exceção,
somente, da do Cristo. O mundo pensante tem, de certo modo, sobrevivido a todas
as outras fases da crença religiosa, excetuando-se a cristã. Esta foi por seu
Autor colocada tão adiante do grau de progresso da época em que seus preceitos
foram ouvidos pela primeira vez, que a corrente de dezoito séculos passando
sobre todos os outros sistemas, não pôde atingi-la. Os ensinos do Cristo, de
caráter profético, são mais adiantados não só do que as mais puras práticas do
mundo moderno, mas também do que as suas aspirações. Poderemos negar ao seu
Autor o direito de ser chamado o Escolhido, o Ungido de Deus? Qual foi a
resposta do Apóstolo mais crente do Cristo, quando o Mestre lhe perguntou:
"E vós, quem dizeis que eu sou?"
Pedro respondeu: "O Cristo
de Deus."
Foi esse também o título que lhe deu o mesmo apóstolo na sua primeira prédica
aos judeus, depois da crucificação do Mestre, na qual ele designa o Grande Pregador
como "Jesus de Nazaré, varão por Deus aprovado com milagres, maravilhas e
prodígios"; e ainda, com ligeiras variações de frases, quando, discursando
diante de Cornélio e seus irmãos gentios, em Cesaréia, falou do Mestre como
"Jesus de Nazaré, a quem Deus ungiu com o Espírito Santo e o poder de
fazer o bem".
Sua própria natureza, seu
caráter e obras narradas nas biografias evangélicas, são quase tão
maravilhosas, como o sistema que ele legou ao mundo. Elas não são o que se
devia esperar daquele país, daquele tempo e ‒ a não ser como um sublime modelo
oferecido a nós do que o Homem há de ser ‒ daquela raça humana com a qual, em
centenas de ocasiões ele expressamente se identifica. É difícil, sobre este
ponto, dizer melhor do que o fez um padre anglicano, cuja morte prematura foi
uma desgraça para a igreja de que era ornamento.
Uma vez, no curso das idades,
isento das inumeráveis falhas, desde o começo inerentes à natureza humana, um
botão desenvolveu-se no seio de uma flor sem mácula. Deus exibiu na terra um
espécimes perfeito da humanidade... Como se o sangue vital de todas as nações
estivesse em suas veias, como se o que há de melhor e mais perfeito em todos os
homens, de mais terno, delicado e puro, em todas as mulheres, se concentrasse
no seu caráter, ele se chamava a si mesmo o Filho do Homem.
Não menos eloquente neste
assunto é o autor de uma obra bem conhecida, o Ecce Homo de Seeley:
A história da vida
de Cristo será sempre uma lembrança, na qual a perfeição moral do homem se revela
em sua origem e unidade, e manifesta-se a mola oculta que põe em movimento todo
esse maquinismo... Todos os menores exemplos e vidas ocuparão sempre um lugar
subordinado e servirão principalmente para refletir a luz do exemplo central e
original. À vista de suas feridas, todas as penas humanas desaparecerão e todas
as abnegações humanas virão encontrar um apoio na sua cruz.
Donde procede a essa
preeminência? O germe do Divino repousa, realmente, silencioso em nossa
natureza comum; mas, antes de ele frutificar, receberá o sopro divino de uma
região mais pura que a nossa. Nenhum mortal ousará decidir, se neste supremo
grau da inspiração devemos ver uma fase extraordinária do Sopro Divinal,
produzindo uma obra monumental.
Contudo, creio que mal obraria
se ocultasse o fato de haver eu recebido a respeito uma comunicação, uma somente
e essa espontânea, que acredito vinda de uma fonte espiritual. É uma das poucas
mensagens, que obtive, relativas a pontos controvertidos da doutrina. O leitor
poderá julgá-la. Eis a comunicação recebida a 26 de janeiro de 1862:
O aparecimento do
Cristo foi o resultado de uma crença e não de uma concepção. Maria tinha
herdado uma organização peculiar, física e espiritual, dos seus ancestrais da linhagem
de David. Foi colocada em perfeito estado de transe, com suspensão da vida
corporal. O princípio espiritual frutificante foi recebido durante esse transe.
O corpo mortal do Cristo foi o resultado da fé perfeita de Maria, dominando o
organismo, fé essa de tal transcendência, que é o centro e a circunferência de
tudo o que se deseja. É uma verdade literal, e não somente uma figura, dizer-se
que essa fé pode remover montanhas. Ela está para a fé comum da humanidade como
o diamante cristalino para o carvão de pedra.
O que sucedeu com
Maria já vinha previsto com muitos séculos de antecedência. Foi uma fé
específica, o florescimento de uma crença preservada pelas idades, de que uma
virgem conceberia e pariria um filho. Nenhuma outra combinação poderia produzir
um Cristo.
Contudo, não houve
nisso uma suspensão da lei. Seu nascimento foi natural. Com o concurso de
idênticas circunstâncias, a admitir-se tal caso, um nascimento semelhante ainda
pode dar-se. Era necessário que o Cristo permanecesse acima do plano da humanidade,
para poder atraí-la a si. Ele era isento dos apetites e paixões humanos, em
grau tal que escapa a toda a humana concepção. No sentido humano e corporal,
era um homem incompleto. Se não se desse nele essa ausência de apetites e
paixões, a verdade não nos teria vindo por seu intermédio, como veio. Haveria
obscurecimentos e prejuízos, sob cuja influência a sua integridade de
Mensageiro não seria preservada, e ele teria sido simpaticamente recebido pelo
seu tempo.
O Cristo sofreu as
provas e tentações que os seus irmãos da humanidade costumam suportar, mais
fortemente mesmo do que estes, por causa da força repulsiva que elas iam
encontrar nele, e não porque houvesse nele alguma coisa que as atraísse. Essas
tentações não o atraíam, mas penalizavam-no. Ele tinha sempre diante de seus
olhos as leis eternas e através do presente via o futuro.
Nesta comunicação não se
descobre suspensão ou violação da lei natural, e mesmo, creio eu, não há
nenhuma impossibilidade que no-la faça rejeitar imediatamente. Segundo ela, o
nascimento do Cristo efetuou-se em circunstâncias tão peculiares, que o
libertaram dos apetites e paixões da natureza humana, em grau necessário à sua pura
integridade, como um Pregador a quem nenhum outro jamais poderia ser comparado.
No estado a que chegaram os nossos conhecimentos, sinto-me incapaz de afirmar
ou negar uma tal teoria.
Sem o dom da clarividência
espiritual, vendo tudo através de um vidro embaciado, poderei precipitar uma
decisão? Contento-me com a esperança de obter, talvez, em poucos anos, maior
discernimento e luz mais viva.
O hábil autor do Ecce Homo
toca justamente nas questões do nascimento do Cristo. Tratando do entusiasmo
espiritual que caracterizava Jesus, pergunta: "Quem pode compreender como
esse fogo se ateava nele?" A sua resposta é: "O insondável mistério
de sua personalidade esconde esse segredo. Deus não queria engendrar um segundo
filho semelhante”.
O Senhor Gladstone, o grande
político da Inglaterra, aludindo, em crítica, à obra onde elas aparecem, às
palavras supracitadas, diz:
Elas parecem
referir-se a coisas que não conhecemos e nem temos habilitação para estudar.
Sou da sua opinião. É
estranho, sim, mas também é triste que os homens, em todos os tempos, tenham
sido arrastados a encarar essas questões, a ataca-las e, apesar de conhecerem
sua incapacidade, e mesmo de estarem convencidos disso, sejam compelidos a
decidir no assunto! Forçados, sim, pelos outros homens, mas não por Deus, pois
não é maior a certeza que tenho da minha própria existência do que a de que a
Onipotência e Bondade Divina não me punirá, nem a nenhuma outra de suas
criaturas pelo fato de, a respeito desses arcanos, nos julgarmos e confessarmos
incapazes de compreendê-los. O que somente posso dizer é que Jesus era
divinamente favorecido e dotado de altíssimos dons. Que havia um limite, uma
lei diretriz, seus biógrafos no-lo informam. No seu país natal, onde os homens perguntavam
uns aos outros: "Não é este o carpinteiro, o filho de Maria?" Ele não
pôde fazer outras obras a não ser a cura de poucos enfermos, pela aposição das
mãos; e espantou-se da sua incredulidade.
Noutro ponto, em palavras repassadas de tristeza, ele mesmo nos diz que não
devia ter feito tudo o que fizera por seus concidadãos: "Jerusalém,
Jerusalém, que mataste os profetas e apedrejaste os que a ti foram enviados;
quantas vezes procurei juntar teus filhos, como a galinha que sob as asas reúne
os pintos, sem nada conseguir24?
Como definiremos os limites dos
seus conhecimentos? Lendo-se o Evangelho, sente-se o que sentiam os juízes
judeus, quando diziam: "Nunca outro homem falou como este". Contudo,
nos escritos que possuímos, encontramos palavras que, se as aceitarmos, demonstram
claramente que, como os demais homens, o Cristo também era sujeito ao erro. Os
exemplos aparecem para todos os que desapaixonadamente estudam os Evangelhos.
Cumpre que as almas tímidas, que
julgam perigoso achar-se uma simples imperfeição de doutrina ou um descuido da
narrativa, se convençam de que o sistema espiritual do Cristo, com a sua grande
influência sobre a vida terrena do homem, não depende absolutamente de
incidentes como estes, não essenciais. Seu espírito, substância e eficácia,
nada sofrem com isso. Ele é útil, quando mais não seja, como regra para a
conduta humana neste mundo, como guia muito necessário ao nosso preparo da vida
futura.
Não é conveniente, a respeito
deste assunto, depositar confiança em coisas acidentais, ou em qualquer
autoridade, a não ser a da excelência intrínseca e do poder inerente aos
grandes ensinos. Não é nas suas velhas fortalezas de pedra, por mais
inexpugnáveis que pareçam, que deve uma nação, na hora do perigo, depositar confiança;
mas, sim na fidelidade, no valor e no afeto que animam o coração de seus
defensores. Assim, o Cristianismo, assaltado pelas legiões da dúvida e do
materialismo, não deve depositar sua confiança nas velhas evidências da
tradição e da remota história; apesar de serem firmadas sobre estudos e
entrincheiradas contra as laboriosas polêmicas das idades; se ele quer
tornar-se a religião da civilização, seu reino deve fundar-se nas convicções
sinceras, na candura e no amor esclarecido das almas livres.
Permiti-me dizer aqui uma
palavra com referência a mim mesmo. Ninguém, mais do que eu, venera
religiosamente os ensinos e a pessoa do Cristo; ninguém, mais do que eu, sente
profundamente o indispensável dever de estudar suas lições e fazer todo o
possível para seguir o seu exemplo; apesar dos teólogos não terem conseguido
lançar em meu cérebro todas as perplexidades que amontoaram no credo de
Atanásio. Se alguns encontram nisso, apesar de suas sutilezas, um conforto nas
suas aflições, um incentivo para reanimar sua fé, um motivo para excitar seu
zelo adormecido, um estímulo aos seus deveres religiosos, deixai que aproveitem
aí o que podem aceitar. O patriarca alexandrino não fala ao meu coração nem à
minha inteligência; mas, se outros, podem receber a sua doutrina, não se deve
impedi-lo.
Se, fora da declaração de ser
ele o Messias prometido, o Profeta Ungido de Deus, por Ele comissionado para
libertar o mundo das trevas espirituais, há algum fundamento razoável para crer
que o Cristo se tenha dito ou considerado uma das Pessoas da Divindade, confesso-me
incapaz de contestá-lo. Mui raramente, apenas uma meia dúzia de vezes, nos três
Evangelhos sinóticos, Jesus dá a si mesmo o título de Filho de Deus; ao passo
que chama quase sempre filhos de Deus a seus irmãos da Terra; e, na única prece
que nos deixou, manda chamar à Divindade Nosso Pai. Sendo mensageiro de Deus,
como é que essa preeminência justifica o título que, de vez em quando, a si
próprio dá? Se, como ensina, os pacíficos serão chamados Filhos de Deus, ele,
que é o Príncipe da paz, o Portador do Evangelho que trouxe a paz aos homens de
boa vontade neste mundo, com mais razão que todos os outros, deve ser chamado o
Filho amado de Deus, o depositário de toda a sua complacência.
Jesus foi o tipo mais perfeito
dos inspirados, pois que, quando habitou entre nós, vivia, mais que qualquer
outra das criaturas de Deus, tendo somente em vista a sua futura pátria. Por
isso, seus ensinos são os mais subidos frutos da inspiração.
Nos mais elevados fenômenos do
Espiritismo, em outras palavras, nos melhores exemplos da moderna fase dos
poderes e dons conexos com a inspiração, devemos ver o cumprimento da promessa
feita pelo Cristo aos cristãos, de que eles fariam obras imitando as suas.
Nas mais puras revelações do Espiritismo podemos achar o cumprimento de uma
outra promessa sua, relativa à vinda do sopro divino, do alto trazendo aos
homens a verdade e o conforto.
O Cristianismo primitivo, a
maior de todas as reformas, evidencia-se melhor no Espiritismo moderno; porque,
o germe deste está naquele. À medida que se for estudando as manifestações do Espiritismo,
a atenção ir-se-á afastando do dogmatismo religioso e concentrando-se na forma
primitiva dos ensinos do Cristo.
Que mais poderoso motivo
poderemos aduzir em prova desses prodígios e maravilhas, que vêm rejeitar tudo
o que é estranho e ímpio, só aceitando o que é fiel e bom?