quarta-feira, 14 de junho de 2023

TRANSPOSIÇÃO DOS SENTIDOS COM OS HISTÉRICOS HIPNOTIZADOS[1]

 


Cesar Lombroso

 

Certa manhã daquele ano, fui chamado para a Srta. CS, de 14 anos de idade, filha de um dos homens mais ativos e mais inteligentes da Itália, que tinha também mãe sã, inteligente e robusta, mas dois irmãos crescidos extraordinariamente na estatura, nas proximidades da puberdade, e com alguma turbação pulmonar; e a própria CS, que era de gentil aspecto, altura de 1,54m, com pupila um pouco midriática, tato normal e normal sensibilidade dolorífica e às cores, quando na vizinhança da época púbere cresceu subitamente 15 centímetros, e teve, nos primeiros acenos menstruais, graves fenômenos histéricos no estômago (vômitos, dispepsia), e por isso, durante um mês, só pôde ingerir alimentos sólidos, e num outro mês alimentos líquidos, apresentando, no terceiro mês, acessos de convulsões histéricas, hiperestesia incrível, pois um fio posto sobre a mão lhe parecia ter o peso de uma barra de ferro.

Em outro mês, manifestou cegueira e pontos histerogênicos no dedo mínimo e no reto, que, tocados, provocavam convulsões, bem como paralisia muscular no movimento das pernas, com reflexos exagerados, contraturas, energia muscular aumentada, sendo que o dinamômetro passava, pressionado pela mão, de 32 a 47 quilogramas.

Começaram, então, a apresentar-se nela fenômenos extraordinários.

De início, sonambulismo, durante o qual mostrava singular atividade nos labores domésticos, grande afetividade aos parentes, distinta disposição musical; mais tarde apresentou mutação no caráter, audácia viril e imoral; mas, o fato mais estranho era que, enquanto perdia a visão com os olhos, via, com o mesmo grau de acuidade (o 7º da escala de Jager), pela ponta do nariz e lóbulo esquerdo da orelha, lendo, assim, uma carta que então me viera dos Correios, enquanto que eu lhe vendara os olhos, e pôde distinguir os números de um dinamômetro.

Curiosa era depois a nova mímica com que reagia nos estímulos levados aos que chamaremos órgãos ópticos transitórios e transpostos.

Avizinhando, por exemplo, um dedo à orelha ou ao nariz, ou fazendo menção de os tocar, ou ainda melhor, fazendo com uma lente incidir um raio de luz de lâmpada, mesmo à distância e por fração de minuto, ressentia-se vivamente e irritava-se.

Quereis cegar-me? – gritava.

Depois, com instintiva mímica inteiramente nova, tão nova quanto o fenômeno, movia o antebraço a defender o lóbulo da orelha e a extremidade do nariz, e assim permanecia por alguns minutos.

Também o olfato estava transposto: o amoníaco e a assafética não lhe provocavam a menor reação, quando colocados sob o nariz, enquanto que uma substância ligeiramente odorífera, sob o queixo, dava lugar a viva impressão, e a mímica toda especial.

Assim, se o aroma lhe era agradável, sorria, piscava os olhos e respirava com maior frequência; se o perfume desagradava, levava rapidamente a mão à dobra do queixo, tornado este a sede do olfato, e voltava com rapidez a cabeça para o lado. Mais tarde, o olfato se transferiu ao dorso do pé, e então, quando um odor a desagradava, movia a perna para a direita e esquerda, contorcendo também todo o corpo; quando agradava, permanecia imóvel, sorridente, respirando mais frequentemente.

Vieram depois fenômenos de profetismo e de lucidez, pois previa com rigor, direi matemático, com 15 ou 16 dias de antecedência, o dia dos acessos, a hora em que sobreviriam e o metal apto a fazê-los cessar.

Assim, a 15 de junho predisse que a 2 de julho teria delírio e em seguida 7 acessos catalépticos, que cessariam com ouro, e, para 25 desse mês, faringismo e dores nos membros; para 6 de julho, catalepsia à primeira gota de água que lhe fosse atirada, e calma até 12, no qual seria presa de acesso às 6 da manhã, com tendência a morder e a despedaçar, e que só se acalmaria mediante meia colherinha de quinina e três gotas de éter.

E tudo aconteceu exatamente como houvera vaticinado.

No dia 14, predisse que os quatro acessos do dia 15 seriam sanados com chumbo. Em verdade, porém, este ajudou pouco, sendo mais eficaz o ouro; mas, se houve engano nisto, este não se positivou na designação da hora, preanunciada exatamente, e no número de acessos.

Mais tarde, profetizou aventuras que deviam atingir o pai e o irmão, as quais, dois anos depois, se verificaram; viu também, estando no leito, o irmão que nesse momento se encontrava em um teatro distante mais de um quilômetro da sua casa.

 

Esses fenômenos de nenhum modo são isolados ou únicos.

 

Já em 1808, Petetin[2] estudou oito mulheres catalépticas, nas quais os sentidos externos eram translocados para a região epigástrica ou para os dedos das mãos ou dos pés.

Em 1840, Carmagnola, no “Giornale dell’Accademia di Medicina”, narrava um caso inteiramente análogo ao nosso.

Tratava-se de uma jovem, de 14 anos de idade, também de recente catamênio, sofrendo tosse convulsiva, cefaleia, delíquio, soluços quando bebia; espasmos, dispneia e convulsões mímicas, durante as quais cantava; modorra que se prolongava por três dias, e verdadeiros acessos de sonambulismo, em cujo decurso via distintamente pela mão e com esta separava fitas e cores, e lia às escuras. Querendo mirar-se ao espelho, ante o qual colocava as mãos, via apenas estas; abaixava-o para ver o rosto e, não o conseguindo, enraivecia-se e fugia, sapateando no pavimento, gesto, o primeiro, espontâneo, instintivo, que reproduz aquele da nossa CS, escondendo o lóbulo da orelha irritado pelo imprevisto raio de luz, e que bastava por si mesmo para excluir a simulação.

Note-se ainda que, tal qual no caso de Petetin (e não se dirá mais que se trata de coisas descobertas agora), a aplicação do ouro e da prata acalmava as raivas e a retornava alegre, pelo que, durante os acessos, buscava avidamente esses metais.

Certa vez tocou em bronze, supondo-o ouro, mas, embora completa fosse a sua ilusão, não obteve alívio algum. A seda e as peliças lhe tiravam as forças. Pouco a pouco melhorou, mas reincidia a cada período lunar mensal.

Despine refere o caso de uma Stella, de Neuchâtel, de 11 anos de idade, que, parética, depois de um traumatismo no dorso e aliviada com o uso dos banhos de Aix, após práticas magnéticas apresentava a transposição da faculdade auditiva para várias partes do corpo, mão, cotovelo, espádua e, durante a crise letárgica, para o epigástrio, juntando a isto facilidade para exercícios natatórios e de equitação, bem como, sob aplicações de ouro, força extraordinária.

Frank (Praxeos Médicae, Turim, 1821) menciona um certo Baerkmann, no qual a audição era transferida, ora para o epigástrio, ora para o osso frontal, e ainda ao occipital.

O Dr. Angonoa estudava, em Carmagnola, em 1840, uma GL, de 14 anos de idade, tornada dispéptica e amenorreica após um desgosto. Presa de sonambulismo, mais ou menos à meia-noite, identificava moedas aproximando-as da nuca e distinguia aromas com o dorso da mão; mais tarde, em fins de abril, vista e ouvido emigraram para a região epigástrica, de modo que, olhos vendados, lia um livro posto a poucos passos de distância do seu corpo.

O mesmo esculápio observou certa Piovano, de 22 anos de idade, com catalepsias histéricas e acessos epilépticos, a qual, no sonambulismo artificial, enxergava ora pela nuca, ora pelo epigástrio, e cheirava com os pés, pretendendo ainda distinguir, no próprio corpo, trinta e três vermes, que, ao fim de algum tempo, expeliu.

Embora de tal não se estabelecesse analogia, o fato se ligava ao que era conhecido: sonâmbulos comuns que veem perfeitamente quando com os olhos estáticos e insensíveis, com as pálpebras fechadas ou com o globo ocular voltado para o alto, à semelhança de quem dorme.

Evidentemente, eles enxergam por qualquer outra parte do corpo, que não pelos olhos.

Preyer e Berger, ainda que observassem, a exemplo recente de Heidenhain, fatos semelhantes, acreditaram interpretá-los recorrendo à maior sensibilidade tátil ou à maior agudeza visual, que verdadeiramente se observam amiúde em casos tais.

Mas, se essa interpretação pode explicar demais a visão em local escuro, o que não ocorre, não pode explicar a transposição neste caso em que se observam inteiramente idênticas, fora e dentro da crise, a sensibilidade tátil e a acuidade visual. Aqui, a percepção visual se revela em dois pontos da cútis; a sensibilidade é medíocre e não basta para, de qualquer modo, explicar a leitura de um manuscrito.

Se os autores mais modernos não levaram em conta estes casos (e Hasse os averbou de ilusão), é porque, com tendência louvável, mas também excessiva, só desejavam admitir os fatos que cientificamente se pudessem explicar. Por isso, tardaram em dar crédito ao magnete e a muitos dos resultados que, empiricamente, obtiveram os magnetizadores (catalepsias, hipnoses, hiperestesias), agora veríssimos e até certo ponto explicados (Heidenhain).

A verdade é que uma explicação absolutamente científica não se pode dar destes fatos, os quais entram no vestíbulo daquele mundo que, com justiça, se deve chamar ainda oculto, porque inexplicado[3]. E assim a lucidez só em parte se pode explicar por uma espécie de sugestão, por maior agudeza daquela instintiva consciência do próprio estado, que faz ao moribundo recapitular a sua vida na derradeira hora da existência. Mais ainda: melhor se nota o desenvolvimento sucessivo dos fenômenos da própria nevrose porque, na excitação extraordinária do êxtase sonambúlico, adquirimos maior consciência do nosso organismo, em cujas condições, à semelhança da engrenagem dos relógios, estão inscritas em potência, em germe, as várias sucessões mórbidas.

Cabe aqui conectar a esses fatos um caso primeiramente revelado pelo nosso Salvioli 9 no sonambulismo, isto é, que o afluxo do sangue ao cérebro é maior do que em vigília, e maior é, pois, a atividade da psique, de igual modo que ocorre aumento na excitabilidade muscular.

Efetivamente, a nossa enferma, que adquiria, em sonambulismo, uma força maior de 12 quilos no dinamômetro, dizia-me que, nesse estado, não podia ficar tranquila com o pensamento, pois necessitava estar sempre ruminando novas ideias.

Mas, esta conclusão já não serve, quando a lucidez chega ao ponto de profetizar o que acontecerá, dois anos depois, ao pai e ao irmão, nem tampouco explicar cientificamente a transposição dos sentidos.

Emerge aqui, de modo característico, apenas o fato de que os fenômenos ocorrem em pacientes histéricos e nos acessos hipnóticos do grande histerismo.



[1] Hipnotismo e Mediunidade – Cesar Lombroso - FEB

[2] Eletricité animale, Lyon, 1808.

[3] Por agora, a noção do duplo (v. cap. “Duplos”), onde daremos uma tentativa de explicação.

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