Allan Kardec
Lendo um jornal, encontramos
esta frase proverbial: Na França o ridículo sempre mata. Isto nos
sugeriu as seguintes reflexões:
Por que na França, e não em
outra parte? É que aqui, mais que em qualquer lugar, o espírito, ao mesmo tempo
fino, cáustico e jovial, apreende, antes de tudo, o lado alegre ou ridículo das
coisas; busca-o por instinto, sente-o, adivinha-o, por assim dizer fareja-o;
descobre-o onde outros não o percebiam e o põe em relevo com habilidade. Mas o
espírito francês quer, antes de tudo, o bom-gosto, a urbanidade até no gracejo;
ri de bom grado de uma pilhéria fina, delicada, espirituosa sobretudo, ao passo
que as caricaturas insossas, a crítica pesada, grosseira, à queima-roupa,
semelhante à pata do urso ou ao soco do bruto, lhe repugnam, porque tem uma
repulsa instintiva pela trivialidade.
Talvez digam que certos sucessos
modernos parecem desmentir essas qualidades. Muito haveria a dizer sobre as
causas deste desvio, que não deixa de ser muito real, mas que é apenas
parcial, e não pode prevalecer sobre o fundo do caráter nacional, como
demonstraremos qualquer dia. Apenas diremos, de passagem, que esses sucessos
que surpreendem as pessoas de bom-gosto, são, em grande parte, devidos à
curiosidade muito vivaz, também, no caráter francês. Mas escutai a multidão à
saída de certas exibições; o julgamento que domina, mesmo na boca do povo,
resume-se nestas palavras: É repugnante! E, contudo, a gente veio,
unicamente para poder dizer que viu uma excentricidade; lá não voltam, mas
esperando que a multidão de curiosos tenha desfilado, o sucesso está feito, e é
tudo o que pedem. Dá-se o mesmo em certos sucessos supostamente literários.
A aptidão do espírito francês em
captar o lado cômico das coisas, faz do ridículo uma verdadeira potência, maior
na França do que em outros países; mas é certo dizer que sempre mata?
É preciso distinguir o que se
pode chamar o ridículo intrínseco, isto é, inerente à coisa mesma, e o
ridículo extrínseco, vindo de fora e descarregado sobre uma coisa. Sem
dúvida este último pode ser lançado sobre tudo, mas só fere o que é vulnerável;
quando se ataca às coisas que não dão ensejo a isto, desliza sem prejudicá-las.
A mais grosseira caricatura de uma estátua irreprochável[2]
nada tira de seu mérito e não a faz diminuir na opinião, pois cada um está em
condições de apreciá-la.
O ridículo não tem força senão
quando fere com precisão, quando ressalta com espírito e finura os pequenos
defeitos reais: é então que mata; mas quando cai no falso, absolutamente não
mata, ou antes, ele se mata. Para que o adágio acima seja completamente
verdadeiro, dever-se-ia dizer: “Na França, o ridículo sempre mata o que é
ridículo”. O que realmente é verdadeiro, bom e belo jamais é ridículo. Se se
ridicularizar uma personalidade notoriamente respeitável, o
cura Vianney, por exemplo, inspirar-se-á repulsa, mesmo aos incrédulos,
tanto é verdade que o que é respeitável em si é sempre respeitado pela opinião
pública.
Como nem todos têm o mesmo
gosto, nem a mesma maneira de ver, o que é verdadeiro, bom e belo para uns,
pode não o ser para outros. Quem, pois,
será o juiz? O ser coletivo que se chama todo o mundo, e contra as decisões do
qual em vão protestam as opiniões isoladas. Algumas individualidades podem ser
momentaneamente desviadas pela crítica ignorante, malévola ou inconsciente, mas
não as massas, cujos julgamentos acabam sempre por triunfar. Se a maioria dos
convivas num banquete acha um prato a seu gosto, por mais que digais que é
ruim, não impedireis que o comam, ou pelo menos que o provem.
Isto explica por que o ridículo,
lançado em profusão sobre o Espiritismo, não o matou. Se ele não sucumbiu, não
é por não ter sido revolvido em todos os sentidos, mascarado, desnaturado,
grotescamente ridicularizado por seus antagonistas. E, contudo, após dez anos
de encarniçada agressão, ele está mais forte do que nunca; é que ele é como a
estátua de que falamos há pouco.
Em última análise, sobre o que
se exerceu particularmente o sarcasmo, a propósito do Espiritismo? Naquilo em
que realmente é vulnerável à crítica: os abusos, as excentricidades, as
exibições, as explorações, o charlatanismo sob todos os aspectos, as práticas
absurdas, que são apenas a sua paródia, de que o Espiritismo sério jamais tomou
a defesa, mas que tem, ao contrário, sempre desautorizado. Assim, o ridículo
não feriu, nem pôde morder senão o que era ridículo na maneira por que certas
pessoas pouco esclarecidas concebem o Espiritismo. Se ainda não matou
completamente esses abusos, desferiu-lhes um golpe mortal, e era de justiça.
O Espiritismo verdadeiro não
pôde, pois, senão ganhar em se desembaraçar da chaga de seus parasitas, e foram
os seus inimigos que disso se encarregaram. Quanto à Doutrina propriamente
dita, é de notar que quase sempre ficou fora de debate, embora seja a parte
principal, a alma da causa. Seus adversários bem compreenderam que o ridículo
não podia atingi-lo; sentiram que a fina lâmina da zombaria espirituosa
resvalava sobre a couraça, daí por que o atacaram com a borduna da injúria
grosseira e o soco rústico, mas com tão pouco sucesso.
Desde o início o Espiritismo pareceu
a certos pobretões, uma fecunda mina a explorar por sua novidade; alguns, menos
tocados pela pureza de sua moral do que pelas chances que aí entreviam,
puseram-se sob a égide de seu nome, com a esperança de fazer dele um meio. São
os que podem ser chamados de espíritas de circunstância.
Que teria acontecido a esta
Doutrina se ela não tivesse usado toda a sua influência para frustrar e
desacreditar as manobras da exploração? Ter-se-iam visto os charlatães
pululando de todos os lados, fazendo uma aliança sacrílega daquilo que há de
mais sagrado: o respeito aos mortos, com a suspeita arte das feiticeiras,
adivinhos, cartomantes, videntes, suprindo os Espíritos pela fraude, quando
estes não vêm. Logo se teriam visto as manifestações levadas para os palcos, associadas
aos truques de escamoteação; gabinetes de consultas espíritas anunciados
publicamente e revendidos, como agências de emprego, conforme a importância da
clientela, como se a faculdade mediúnica pudesse transmitir-se à maneira de um
fundo de comércio.
Por seu silêncio, que teria sido
uma aprovação tácita, a Doutrina ter-se-ia tornado solidária com esses abusos;
diremos mais: cúmplice. Então a crítica teria feito um belo jogo, porque, com
todo o direito, poderia ter atacado a Doutrina que, por sua tolerância, houvera
assumido a responsabilidade do ridículo e, por consequência, a justa reprovação
lançada sobre os abusos; talvez ela tivesse levado mais de um século para
erguer-se desse fracasso. Seria preciso não compreender o caráter do
Espiritismo e, ainda menos, seus verdadeiros interesses, para crer que tais
auxiliares possam ser úteis à sua propagação e estejam aptos para o
considerarem como uma coisa santa e respeitável.
Estigmatizando a exploração,
como temos feito, temos certeza de haver preservado a Doutrina de um verdadeiro
perigo, perigo maior que a má vontade de seus antagonistas confessos, porque
caminhava para o seu descrédito; por isto mesmo, ela lhes teria apresentado um
lado vulnerável, ao passo que eles se detiveram ante a pureza de seus
princípios. Não ignoramos que contra nós suscitamos a animosidade dos
exploradores e que nos afastamos de seus partidários. Mas, que importa? Nosso
dever é resguardar os interesses da Doutrina, e não os deles, e esse dever nós
cumpriremos com perseverança e firmeza até o fim.
Não era pouca coisa lutar contra
a invasão do charlatanismo, num século como este, sobretudo um charlatanismo
estimulado, muitas vezes suscitado pelos mais implacáveis inimigos do
Espiritismo, porquanto, depois de ter fracassado pelos argumentos, bem
compreendiam que o que lhes poderia ser mais fatal era o ridículo. Por isso, o
mais seguro meio seria fazê-lo explorar pelo charlatanismo, a fim de o
desacreditar na opinião.
Todos os espíritas sinceros
compreenderam o perigo que assinalamos e nos secundaram em nossos esforços
reagindo por seu lado contra as tendências que ameaçavam desenvolver-se. Não
serão alguns casos de manifestações, supondo-os reais, dados como espetáculo,
como chamariz à minoria, que darão verdadeiros prosélitos ao Espiritismo,
porque, em tais condições, eles autorizam a suspeita. Os próprios incrédulos
são os primeiros a dizer que, se os Espíritos realmente se comunicam, não será
para servirem de comparsas ou de cúmplices a tanto por sessão; por isso riem
deles; acham ridículo que a essas cenas se misturem nomes respeitáveis, e estão
cem vezes com a razão. Para uma pessoa que seja levada ao Espiritismo por essa
via, sempre supondo um fato real, haverá cem que se afastarão, sem dele
quererem ouvir falar mais. Outra será a impressão nos meios onde nada de
equívoco pode fazer suspeitar da sinceridade, da boa-fé e do desinteresse, onde
a notória honorabilidade das pessoas impõe respeito. Se daí não se sai
convencido, pelo menos não se leva a ideia de uma charlatanice.
Assim, o Espiritismo nada tem a
ganhar, e só poderia perder, apoiando-se na exploração, enquanto os
exploradores é que se beneficiariam de seu crédito. Seu futuro não está na
crença de um indivíduo a tal ou qual fato de manifestação; está inteiramente no
ascendente que conquistar por sua moralidade. É por aí que triunfou e triunfará
ainda das manobras de seus adversários. Sua força está no seu caráter moral, e
é o que não lhe poderão tirar.
O Espiritismo entra numa fase
solene, mas na qual ainda terá grandes lutas a sustentar; é preciso, pois, que
seja forte por si mesmo e, para ser forte, deve ser respeitado. Cabe aos seus
adeptos dedicados fazê-lo respeitar, inicialmente pregando-o pela palavra e
pelo exemplo; depois, desaprovando, em nome da Doutrina, tudo quanto pudesse
prejudicar a consideração de que deve ser rodeado. É assim que poderá afrontar
as intrigas, a zombaria e o ridículo.
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