Allan Kardec
Numa cidadezinha da antiga
Borgonha, que nos abstemos de citar, mas que poderíamos fazê-lo, caso
necessário, existe um pobre velho que a fé espírita sustenta em sua miséria,
vivendo penosamente da venda ambulante de quinquilharias pelas localidades
vizinhas. É um homem bom, compassivo, prestando serviços sempre que se oferece
ocasião, e certamente acima de sua posição pela elevação de seus pensamentos. O
Espiritismo lhe deu a fé em Deus e na imortalidade, a coragem e a resignação.
Um dia, num de seus giros,
encontrou uma jovem viúva, mãe de várias crianças que, após a morte do marido,
a quem adorava, perdida de desespero e vendo-se sem recursos, perdeu a razão
completamente. Atraído pela simpatia para essa grande dor, procurou ver essa
infeliz mulher, a fim de julgar se o seu estado era irremediável. A miséria em
que a encontrou redobrou sua compaixão; mas, como também fosse pobre, só lhe
podia dar consolo.
Eu a vi várias vezes, disse ele a um de nossos
colegas da Sociedade de Paris, que o conhecia e tinha ido vê-lo; um dia eu
lhe disse, em tom de persuasão, que aquele que ela lamentava não estava perdido
para sempre; que estava perto dela, embora não o visse, e que eu podia, se ela
quisesse, fazê-la conversar com ele. A estas palavras, seu rosto pareceu
alegrar-se; um raio de esperança brilhou em seus olhos apagados. – “Não me
enganareis?” perguntou ela; “Ah! se isto pudesse ser verdade!”
Sendo bom médium escrevente, obtive na sessão uma curta
comunicação de seu marido, que lhe causou doce satisfação. Vim vê-la várias
vezes, e de cada vez seu marido conversava com ela por meu intermédio; ela o
interrogava e ele respondia de maneira a não lhe deixar qualquer dúvida sobre a
sua presença, porque lhe falava de coisas que eu mesmo ignorava; encorajava-a,
exortava-a à resignação e lhe garantia que um dia iriam encontrar-se.
Pouco a pouco, sob o império dessa doce emoção e desses
pensamentos consoladores, a calma voltou à sua alma, a razão lhe voltava a
olhos vistos e, ao cabo de alguns meses, estava completamente curada e pôde
entregar-se ao trabalho, que devia alimentá-la e aos filhos.
Essa cura fez grande sensação entre os camponeses do
vilarejo. Assim, tudo ia bem; agradeci a Deus por me haver permitido arrancar
essa infeliz da opressão do desespero; também agradeci aos Espíritos bons por
sua assistência, pois todo o mundo sabia que essa cura tinha sido produzida
pelo Espiritismo, com o que eu me regozijava. Mas eu tinha o cuidado de lhes
dizer que nisso nada havia de sobrenatural, explicando-lhes o melhor que podia
os princípios da sublime Doutrina, que dá tanta consolação e já fez tão grande
número de pessoas felizes.
Esta cura inesperada inquietou vivamente o padre do
lugar; ele visitou a viúva, que tinha abandonado completamente, desde a sua
moléstia. Dela ficou sabendo como e por quem ela e os filhos foram curados; que
agora tinha a certeza de não estar separada do marido; que a alegria que
sentia, a confiança que isto lhe dava na bondade de Deus, a fé de que estava
animada tinham sido a principal causa de seu restabelecimento.
Ai! Todo o bem no qual eu pusera tanta perseverança em
produzir ia ser destruído; o cura fez vir a infeliz viúva à paróquia; começou
por lançar a dúvida em sua alma; depois fez que ela acreditasse que era um
demônio, que eu não operava senão em seu nome, que ela agora estava em seu
poder; e agiu tão bem que a pobre mulher, que ainda carecia dos maiores
cuidados, fragilizada por tantas emoções, recaiu num estado pior do que da
primeira vez. Hoje por toda parte só vê diabos, demônios e o inferno. Sua
loucura é completa e devem conduzi-la a um hospício de alienados.
O que havia causado a primeira
loucura daquela mulher? O desespero. O que lhe havia restituído a razão? As
consolações do Espiritismo. O que a fez recair numa loucura incurável? O
fanatismo, o medo do diabo e do inferno. Este fato dispensa qualquer
comentário. Como se vê, o clero fez mal em pretender, como tem feito em muitos
escritos e sermões, que o Espiritismo leva à loucura, quando, com justiça, se
lhe pode devolver o argumento. Aliás, aí estão as estatísticas oficiais para
provar que a exaltação das ideias religiosas entra em parte notável nos casos
de loucura. Antes de lançar a pedra em alguém, seria prudente ver se ela não
poderá cair sobre si mesmo.
Que impressão esse fato deve
produzir na população daquele vilarejo? Certamente não será em favor da causa
sustentada pelo Sr. cura, porque o resultado material está sob os olhos. Se ele
pensa em recrutar partidários pela crença no diabo, engana-se redondamente, e é
triste ver a Igreja fazer dessa crença uma pedra angular da fé[2].
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