terça-feira, 30 de maio de 2023

UM CASO DE LOUCURA CAUSADA PELO MEDO DO DIABO[1]

 


Allan Kardec

 

Numa cidadezinha da antiga Borgonha, que nos abstemos de citar, mas que poderíamos fazê-lo, caso necessário, existe um pobre velho que a fé espírita sustenta em sua miséria, vivendo penosamente da venda ambulante de quinquilharias pelas localidades vizinhas. É um homem bom, compassivo, prestando serviços sempre que se oferece ocasião, e certamente acima de sua posição pela elevação de seus pensamentos. O Espiritismo lhe deu a fé em Deus e na imortalidade, a coragem e a resignação.

Um dia, num de seus giros, encontrou uma jovem viúva, mãe de várias crianças que, após a morte do marido, a quem adorava, perdida de desespero e vendo-se sem recursos, perdeu a razão completamente. Atraído pela simpatia para essa grande dor, procurou ver essa infeliz mulher, a fim de julgar se o seu estado era irremediável. A miséria em que a encontrou redobrou sua compaixão; mas, como também fosse pobre, só lhe podia dar consolo.

Eu a vi várias vezes, disse ele a um de nossos colegas da Sociedade de Paris, que o conhecia e tinha ido vê-lo; um dia eu lhe disse, em tom de persuasão, que aquele que ela lamentava não estava perdido para sempre; que estava perto dela, embora não o visse, e que eu podia, se ela quisesse, fazê-la conversar com ele. A estas palavras, seu rosto pareceu alegrar-se; um raio de esperança brilhou em seus olhos apagados. – “Não me enganareis?” perguntou ela; “Ah! se isto pudesse ser verdade!”

Sendo bom médium escrevente, obtive na sessão uma curta comunicação de seu marido, que lhe causou doce satisfação. Vim vê-la várias vezes, e de cada vez seu marido conversava com ela por meu intermédio; ela o interrogava e ele respondia de maneira a não lhe deixar qualquer dúvida sobre a sua presença, porque lhe falava de coisas que eu mesmo ignorava; encorajava-a, exortava-a à resignação e lhe garantia que um dia iriam encontrar-se.

Pouco a pouco, sob o império dessa doce emoção e desses pensamentos consoladores, a calma voltou à sua alma, a razão lhe voltava a olhos vistos e, ao cabo de alguns meses, estava completamente curada e pôde entregar-se ao trabalho, que devia alimentá-la e aos filhos.

Essa cura fez grande sensação entre os camponeses do vilarejo. Assim, tudo ia bem; agradeci a Deus por me haver permitido arrancar essa infeliz da opressão do desespero; também agradeci aos Espíritos bons por sua assistência, pois todo o mundo sabia que essa cura tinha sido produzida pelo Espiritismo, com o que eu me regozijava. Mas eu tinha o cuidado de lhes dizer que nisso nada havia de sobrenatural, explicando-lhes o melhor que podia os princípios da sublime Doutrina, que dá tanta consolação e já fez tão grande número de pessoas felizes.

Esta cura inesperada inquietou vivamente o padre do lugar; ele visitou a viúva, que tinha abandonado completamente, desde a sua moléstia. Dela ficou sabendo como e por quem ela e os filhos foram curados; que agora tinha a certeza de não estar separada do marido; que a alegria que sentia, a confiança que isto lhe dava na bondade de Deus, a fé de que estava animada tinham sido a principal causa de seu restabelecimento.

Ai! Todo o bem no qual eu pusera tanta perseverança em produzir ia ser destruído; o cura fez vir a infeliz viúva à paróquia; começou por lançar a dúvida em sua alma; depois fez que ela acreditasse que era um demônio, que eu não operava senão em seu nome, que ela agora estava em seu poder; e agiu tão bem que a pobre mulher, que ainda carecia dos maiores cuidados, fragilizada por tantas emoções, recaiu num estado pior do que da primeira vez. Hoje por toda parte só vê diabos, demônios e o inferno. Sua loucura é completa e devem conduzi-la a um hospício de alienados.

 

O que havia causado a primeira loucura daquela mulher? O desespero. O que lhe havia restituído a razão? As consolações do Espiritismo. O que a fez recair numa loucura incurável? O fanatismo, o medo do diabo e do inferno. Este fato dispensa qualquer comentário. Como se vê, o clero fez mal em pretender, como tem feito em muitos escritos e sermões, que o Espiritismo leva à loucura, quando, com justiça, se lhe pode devolver o argumento. Aliás, aí estão as estatísticas oficiais para provar que a exaltação das ideias religiosas entra em parte notável nos casos de loucura. Antes de lançar a pedra em alguém, seria prudente ver se ela não poderá cair sobre si mesmo.

Que impressão esse fato deve produzir na população daquele vilarejo? Certamente não será em favor da causa sustentada pelo Sr. cura, porque o resultado material está sob os olhos. Se ele pensa em recrutar partidários pela crença no diabo, engana-se redondamente, e é triste ver a Igreja fazer dessa crença uma pedra angular da fé[2].



[1] Revista Espírita – Fevereiro/1869 – Allan Kardec

[2] Vide A Gênese segundo o Espiritismo, capítulo XVII, 27

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