Sandra Borba Pereira − março/2023
Nunca a arte de ouvir foi tão
valorizada como nesses dias de solidão em meio à multidão, isolamento social
provocado pela pandemia, graves problemas de saúde mental, superficialidade nas
relações afetivas, indiferença, dentre outras razões.
Ouvir com atenção, indulgência,
compaixão e empatia tornou-se qualidade rara e necessária no campo das relações
sociais. Todos precisamos dessa escuta sensível: qualquer faixa etária, gênero,
situação cultural, perfil psicológico. É
que ser ouvido faz parte das necessidades humanas básicas.
Em elucidativo texto intitulado
Escutatória, disponível na internet, o autor Rubem Alves afirma a dificuldade
humana de escutar o outro, por várias razões: não saber fazer silêncio
interior, indiferença, pressa, desinteresse, falta de humildade para reconhecer
o diferente…
No silêncio interior estão
nossos medos e isso nos atordoa.
Escutar é, pois, uma atitude de
descoberta do nosso humano e do humano do outro.
Um dos maiores escutadores do
ser humano foi, no século XIX, um pároco da aldeia francesa, Ars. Um testemunho
extraordinário da capacidade de ouvir, consolar, esclarecer e orientar o
próximo.
Da Infância ao Sacerdócio
João
Maria Batista Vianney, o Cura d’Ars,
nasceu em Dardilly, uma pequena
aldeia ao norte de Lyon, distante uns 10 km, a 8 de maio de 1786, filho de
Mateus Vianney e Maria Beluse, cristãos fervorosos.
Desde pequenino, demonstrava
vocação religiosa e se recolhia para orar, longe das outras crianças. Por ter
nascido numa aldeia onde se falava um dialeto local, teve dificuldades no
aprendizado da língua francesa a que teve acesso, a partir dos 13 anos.
Em 1809, foi convocado para o
exército, mas adoeceu por duas vezes. Esse fato o fez desertar para viver nas
montanhas por 14 meses. Seu pai foi obrigado a pagar pesada multa e seu irmão
mais novo teve que se alistar em seu lugar. Desapareceria depois, na Alemanha,
e esse fato o atormentou durante toda a vida.
Aos 20 anos, começou sua
formação para o sacerdócio junto ao Padre Balley que procura minimizar suas
dificuldades com a língua francesa e o domínio
do latim. Possuía memória fraca e por isso criou fama de ignorante. Frequentou
Seminários em Verrière e Lyon, sempre contando com a ajuda do Padre Balley que
lhe ensinava Teologia, francês e latim. Foi, enfim, aprovado em 1814.
Somente aos 29 anos foi ordenado
sacerdote e se tornou coadjutor do Padre Balley, que viria a desencarnar em
1817.
Vianney foi, então, enviado, em
1818, para uma paróquia diminuta, de apenas 230 habitantes: Ars.
Atuação em Ars
Ao chegar em Ars, começou a dar
à casa paroquial o seu perfil: só o necessário. Ali, passaria 40 anos e se
tornaria o maior fenômeno da prática da confissão da Igreja Católica, na
França.
Antes dessa fama de confessor,
conquistara os paroquianos com seu jeito simples, simpático e afetuoso.
Visitava-os, cotidianamente, dava assistência aos doentes e necessitados,
tratava a todos com gentileza, organizou escolas para moças e depois para
rapazes, construiu uma igreja para Santa
Filomena, mártir romana, criou
grupo de senhoras e se tornou evangelizador dos pequeninos.
Procurava tornar atraentes as
comemorações religiosas como Corpus Christi, incluindo a arte.
Era médium e alguns fenômenos de
efeitos físicos ocorreram com sua presença, na primeira metade da década de
1820.
Com o passar dos anos, Ars
principiou a receber peregrinos de Lyon e de outros lugares, chegando o Cura a
passar de doze a quinze horas no confessionário.
Milhares de pessoas o procuravam
para se confessar e saíam consoladas e impressionadas com a intuição do
confessor, que parecia perceber a problemática de cada um. Aliava firmeza e
suavidade evocando sempre o amor do Bom Deus.
A aldeia precisou criar
infraestrutura de hospedagem e alimentação para os peregrinos, que vinham de
muito longe, dada a fama do Cura, a partir de 1840, que já era chamado de O
Santo de Ars.
Vianney tinha crises
existenciais, se achava incompetente para a tarefa, mas a oração diária, três
horas pela manhã cedo, e o desejo de servir ao próximo o fizeram ser amado por
todos.
Desejava sair de Ars, mas seus
superiores não permitiam e, quando se recolheu, certa feita, em sua aldeia, em
1843, exausto, jovens dessa aldeia foram visitá-lo prestando-lhe solidariedade.
Voltou uma semana depois, recebido em festa pela multidão.
Uma vida dedicada a servir e a ouvir.
Afirmam alguns, que com ele
conviveram, que muitas vezes ele chorava com os que iam se confessar e que
tocava o fundo do coração das criaturas que o buscavam. Terapeuta inato,
dialogava sobre as razões de viver que as criaturas deveriam buscar e sobre o
amor do Bom Deus.
Foi envelhecendo e ficando
doente, após décadas de serviço. Em 1859, recebeu os sacramentos e ao ser
indagado se estava cansado, respondeu: Oh, não. Choro pensando na grande
bondade de Nosso Senhor em vir visitar-nos nos últimos momentos.
Em 4 de agosto de 1859, diria
sua colaboradora Catarina, deixaria o cansado corpo físico calmo e sereno.
Exemplos
O Cura d’Ars é um extraordinário
exemplo de superação e desejo de servir. Reconhecia suas deficiências
intelectuais, mas a fé e uma firme vontade lhe proporcionaram uma força
incrível no serviço ao próximo.
O cuidado com os necessitados, o
visitar cotidianamente os paroquianos, a preocupação com todas as faixas
etárias, a disponibilidade para atender às multidões carentes, a disciplina da
oração e da pregação, a visão social da
importância da educação para homens e
mulheres, a busca de metodologias mais agradáveis para conquistar o público
para a temática religiosa, a confiança no amor e amparo divinos são alguns dos
legados desse sacerdote que, por ser considerado ignorante, foi enviado para a
pequena Ars. Não haviam percebido suas qualidades de devotado servidor do
Cristo.
Tornar-se-ia padroeiro dos
sacerdotes e foi canonizado em 31 de maio de 1925, pelo Papa Pio XI.
Em O Evangelho Segundo o
Espiritismo encontramos, no capítulo VIII, item 20, a mensagem intitulada
Bem-aventurados os que têm fechados os olhos, revelando toda sua humildade e
submissão à vontade de Deus.
Em dias de tanta solidão entre
as criaturas, o exemplo do Cura d’Ars nos convida a sairmos da indiferença
diante do outro, ao mergulho interior que nos proporciona a condição de ouvir
para ser útil, à luta constante pela superação das nossas próprias
fragilidades.
Referências:
§ MARCON, Maria Helena. Os Expoentes da Codificação Espírita.
Curitiba: FEP, 2020. cap. João Maria Vianney, o cura d’Ars.
§ JOULIN, Marc. João Maria Vianney – Cura d’Ars:
patrono dos sacerdotes. São Paulo: Paulinas, 1998.
§ https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2020-08/sao-joao-maria-vianney-cura-ars , Acesso em 6.1.2023.
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