sexta-feira, 21 de abril de 2023

LIÇÕES DO CURA D’ARS [1]

 


Sandra Borba Pereira − março/2023

 

Nunca a arte de ouvir foi tão valorizada como nesses dias de solidão em meio à multidão, isolamento social provocado pela pandemia, graves problemas de saúde mental, superficialidade nas relações afetivas, indiferença, dentre outras razões.

Ouvir com atenção, indulgência, compaixão e empatia tornou-se qualidade rara e necessária no campo das relações sociais. Todos precisamos dessa escuta sensível: qualquer faixa etária, gênero, situação cultural, perfil psicológico.  É que ser ouvido faz parte das necessidades humanas básicas.

Em elucidativo texto intitulado Escutatória, disponível na internet, o autor Rubem Alves afirma a dificuldade humana de escutar o outro, por várias razões: não saber fazer silêncio interior, indiferença, pressa, desinteresse, falta de humildade para reconhecer o diferente…

No silêncio interior estão nossos medos e isso nos atordoa.

Escutar é, pois, uma atitude de descoberta do nosso humano e do humano do outro.

Um dos maiores escutadores do ser humano foi, no século XIX, um pároco da aldeia francesa, Ars. Um testemunho extraordinário da capacidade de ouvir, consolar, esclarecer e orientar o próximo.

 

Da Infância ao Sacerdócio

João Maria Batista Vianney, o Cura d’Ars,  nasceu em Dardilly,  uma pequena aldeia ao norte de Lyon, distante uns 10 km, a 8 de maio de 1786, filho de Mateus Vianney e Maria Beluse, cristãos fervorosos.

Desde pequenino, demonstrava vocação religiosa e se recolhia para orar, longe das outras crianças. Por ter nascido numa aldeia onde se falava um dialeto local, teve dificuldades no aprendizado da língua francesa a que teve acesso, a partir dos 13 anos.

Em 1809, foi convocado para o exército, mas adoeceu por duas vezes. Esse fato o fez desertar para viver nas montanhas por 14 meses. Seu pai foi obrigado a pagar pesada multa e seu irmão mais novo teve que se alistar em seu lugar. Desapareceria depois, na Alemanha, e esse fato o atormentou durante toda a vida.

Aos 20 anos, começou sua formação para o sacerdócio junto ao Padre Balley que procura minimizar suas dificuldades com a  língua francesa e o domínio do latim. Possuía memória fraca e por isso criou fama de ignorante. Frequentou Seminários em Verrière e Lyon, sempre contando com a ajuda do Padre Balley que lhe ensinava Teologia, francês e latim. Foi, enfim, aprovado em 1814.

Somente aos 29 anos foi ordenado sacerdote e se tornou coadjutor do Padre Balley, que viria a desencarnar em 1817.

Vianney foi, então, enviado, em 1818, para uma paróquia diminuta, de apenas 230 habitantes: Ars.

 

Atuação em Ars

Ao chegar em Ars, começou a dar à casa paroquial o seu perfil: só o necessário. Ali, passaria 40 anos e se tornaria o maior fenômeno da prática da confissão da Igreja Católica, na França.

Antes dessa fama de confessor, conquistara os paroquianos com seu jeito simples, simpático e afetuoso. Visitava-os, cotidianamente, dava assistência aos doentes e necessitados, tratava a todos com gentileza, organizou escolas para moças e depois para rapazes, construiu uma igreja para Santa  Filomena, mártir romana,  criou grupo de senhoras e se tornou evangelizador dos pequeninos.

Procurava tornar atraentes as comemorações religiosas como Corpus Christi, incluindo a arte.

Era médium e alguns fenômenos de efeitos físicos ocorreram com sua presença, na primeira metade da década de 1820.

Com o passar dos anos, Ars principiou a receber peregrinos de Lyon e de outros lugares, chegando o Cura a passar de doze a quinze horas no confessionário.

Milhares de pessoas o procuravam para se confessar e saíam consoladas e impressionadas com a intuição do confessor, que parecia perceber a problemática de cada um. Aliava firmeza e suavidade evocando sempre o amor do Bom Deus.

A aldeia precisou criar infraestrutura de hospedagem e alimentação para os peregrinos, que vinham de muito longe, dada a fama do Cura, a partir de 1840, que já era chamado de O Santo de Ars.

Vianney tinha crises existenciais, se achava incompetente para a tarefa, mas a oração diária, três horas pela manhã cedo, e o desejo de servir ao próximo o fizeram ser amado por todos.

Desejava sair de Ars, mas seus superiores não permitiam e, quando se recolheu, certa feita, em sua aldeia, em 1843, exausto, jovens dessa aldeia foram visitá-lo prestando-lhe solidariedade. Voltou uma semana depois, recebido em festa pela multidão.

 

Uma vida dedicada a servir e a ouvir.

Afirmam alguns, que com ele conviveram, que muitas vezes ele chorava com os que iam se confessar e que tocava o fundo do coração das criaturas que o buscavam. Terapeuta inato, dialogava sobre as razões de viver que as criaturas deveriam buscar e sobre o amor do Bom Deus.

Foi envelhecendo e ficando doente, após décadas de serviço. Em 1859, recebeu os sacramentos e ao ser indagado se estava cansado, respondeu: Oh, não. Choro pensando na grande bondade de Nosso Senhor em vir visitar-nos nos últimos momentos.

Em 4 de agosto de 1859, diria sua colaboradora Catarina, deixaria o cansado corpo físico calmo e sereno.

 

Exemplos

O Cura d’Ars é um extraordinário exemplo de superação e desejo de servir. Reconhecia suas deficiências intelectuais, mas a fé e uma firme vontade lhe proporcionaram uma força incrível no serviço ao próximo.

O cuidado com os necessitados, o visitar cotidianamente os paroquianos, a preocupação com todas as faixas etárias, a disponibilidade para atender às multidões carentes, a disciplina da oração e da pregação,  a visão social da importância da educação para  homens e mulheres, a busca de metodologias mais agradáveis para conquistar o público para a temática religiosa, a confiança no amor e amparo divinos são alguns dos legados desse sacerdote que, por ser considerado ignorante, foi enviado para a pequena Ars. Não haviam percebido suas qualidades de devotado servidor do Cristo.

Tornar-se-ia padroeiro dos sacerdotes e foi canonizado em 31 de maio de 1925, pelo Papa Pio XI.

Em O Evangelho Segundo o Espiritismo encontramos, no capítulo VIII, item 20, a mensagem intitulada Bem-aventurados os que têm fechados os olhos, revelando toda sua humildade e submissão à vontade de Deus.

Em dias de tanta solidão entre as criaturas, o exemplo do Cura d’Ars nos convida a sairmos da indiferença diante do outro, ao mergulho interior que nos proporciona a condição de ouvir para ser útil, à luta constante pela superação das nossas próprias fragilidades.

 

 

 

Referências:

§  MARCON, Maria Helena. Os Expoentes da Codificação Espírita. Curitiba: FEP, 2020. cap. João Maria Vianney, o cura d’Ars.

§  JOULIN, Marc. João Maria Vianney – Cura d’Ars: patrono dos sacerdotes. São Paulo: Paulinas, 1998.

§  https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2020-08/sao-joao-maria-vianney-cura-ars , Acesso em 6.1.2023.


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