Allan Kardec
“O Quarterly Journal of
Psychological Medicine publica um relatório muito curioso sobre uma menina
que substituiu a língua falada em seu redor por uma série de nomes e verbos,
formando todo um idioma, do qual se serve e que não se consegue desacostumá-la.
A criança tem agora quase
cinco anos. Até a idade de três anos ficou sem falar e não sabia pronunciar
senão as palavras ‘papá’ e ‘mamã’. Quando se aproximou dos quatro anos, sua
língua se desatou de repente, e hoje fala com toda a facilidade e a
volubilidade de sua idade. Mas de tudo quanto diz, só as duas palavras ‘papá’ e
‘mamã’, que aprendeu primeiro, foram tiradas da língua inglesa. Todas as outras
brotaram de seu pequeno cérebro e de seus lábios, e não têm mesmo nenhuma
relação com esta corruptela de palavras de que se servem as crianças que com
ela brincam habitualmente.
Em seu dicionário, Gaan
significa God (Deus); migno-migno, water (água); odo, to
send for ou take away (mandar, retirar), conforme é colocada; gar, horse
(cavalo).
Um dia, diz o Dr. Hum,
começou a chover. Fizeram a menina entrar e lhe proibiram de sair enquanto a
chuva não cessasse. Ela postou-se à janela e disse:
Gaan odo migno-migno, feu odo. (Deus, retire a chuva; traga o fogo do sol).
A palavra feu
aplicada no mesmo sentido que na língua a que pertenço me chocou. Soube que a
criança jamais tinha ouvido falar francês, coisa muito singular, e que seria
interessante constatar bem, porque a criança havia tomado diversas palavras à
língua francesa, tais como ‘tout’, ‘moi’ e a negação ‘ne... pas.’
A menina tem um irmão,
cerca de dezoito meses mais velho que ela. Ela lhe ensinou a sua língua, sem
tomar nenhuma das palavras de que ele se serve.
Seus pais estão muito desolados
com esse pequeno fenômeno; muitas vezes tentaram ensinar-lhe inglês, dar-lhe o
nome inglês das coisas que ela designa de outro modo em seu idioma: a isso ela
se recusa terminantemente. Tentaram afastá-la das crianças de sua idade e de só
colocá-la em contato com pessoas idosas, falando inglês e nada conhecendo de
seu pequeno jargão. Era de esperar que uma criança que se mostrava tão ávida
por comunicar seus pensamentos quanto por inventar uma língua nova, procurasse
aprender o inglês quando se achasse entre pessoas que só falavam essa língua.
Mas não deu resultado.
Tão logo se acha com
pessoas que não tem o hábito de ver, põe-se a lhes ensinar a sua língua e, ao
menos momentaneamente, os pais renunciaram a tirar-lhe esse hábito.
Tendo sido o fato discutido na Sociedade
Espírita de Paris, um Espírito deu a sua explicação na comunicação
seguinte:
(Sociedade de
Paris, 9 de outubro de 1868 – Médium: Sr. Nivard)
O fenômeno da pequena inglesa, falando uma língua
desconhecida para os que a rodeiam, e se recusando a servir-se da deles, é o
fato mais extraordinário que se produziu desde muitos séculos.
Fatos surpreendentes ocorreram em todos os tempos, em
todas as épocas, que causaram admiração aos homens, mas tinham semelhantes ou
similares. Certamente isto não os explica, mas eram vistos com menos surpresa.
Este de que tratamos é, talvez, o único em seu gênero. A explicação que se lhe
pode dar não é mais fácil nem mais difícil que as outras, mas sua singularidade
é impressionante: eis o essencial.
Eu disse impressionante; não é bem a causa, mas a razão
do fenômeno. Ele choca de espanto: é por isto que se produziu. Hoje que o
progresso faz um certo caminho, não se contentarão em falar do fato, como se
fala da chuva e do bom tempo; querem lhe procurar a causa. Os médicos nada têm
a ver com isto; a fisiologia é estranha a essa singularidade; se a criança
fosse muda, ou não pudesse articular algumas palavras senão com dificuldade,
que não seriam compreendidas devido à insuficiência de seus órgãos vocais, os sábios
diriam que isto decorre das más disposições fisiológicas, e que, fazendo
desaparecerem essas más disposições, deixariam à criança o livre uso da
palavra. Mas tal não é o caso aqui; a criança, ao contrário, é loquaz,
tagarela, fala facilmente, chama as coisas à sua maneira, exprime-as do modo
que lhe convém e vai mais longe: ensina sua língua às suas camaradas, quando
está provado que não lhe podem ensinar sua língua materna e que não quer mesmo
a isto se sujeitar.
A Psicologia é, pois, a única ciência na qual se deve
buscar a explicação desse fato. A razão, o fim especial, eu acabo de dizer: era
preciso impressionar os Espíritos e provocar suas pesquisas. Quanto à causa,
tentarei vo-la dizer.
O Espírito encarnado no corpo dessa menina conheceu a língua,
ou melhor, as línguas de que fala, pois faz uma mistura.
Essa mistura, contudo, é feita conscientemente e
constitui uma língua, cujas diversas expressões são tomadas das que esse
Espírito conheceu em outras encarnações. Em sua última existência ele tivera a ideia
de criar uma língua universal, a fim de permitir aos homens de todas as nações
entender-se e assim aumentar a facilidade das relações e o progresso humano.
Para tanto, ele tinha começado a compor essa língua, que se constituía de
fragmentos de várias das que conhecia e mais gostava. A língua inglesa lhe era
desconhecida; tinha ouvido ingleses falar, mas achava sua língua desagradável e
a detestava. Uma vez na erraticidade, o objetivo que se tinha proposto em vida
aí continuou; pôs-se à tarefa e compôs um vocabulário que lhe é particular.
Encarnou-se entre os ingleses, com o desprezo que tinha por sua língua, e com a
firme determinação de não a falar. Tomou posse de um corpo, cujo organismo
flexível lhe permite manter a palavra. Os laços que o prendem a esse corpo são
bastante elásticos para o manter num estado de semidesprendimento, que lhe
deixa a lembrança bastante distinta de seu passado e o sustenta em sua
resolução. Por outro lado, é ajudado por seu guia espiritual, que vela para que
o fenômeno se produza com regularidade e perseverança, a fim de chamar a
atenção dos homens. Aliás, o Espírito encarnado estava consentindo na produção
do fato. Ao mesmo tempo que exibe o desprazer pela língua inglesa, cumpre a
missão de provocar as pesquisas psicológicas.
L. Nivard, pai
Observação – Se esta explicação não pode ser
demonstrada, pelo menos tem a seu favor a racionalidade e a probabilidade. Um
inglês, que não admite o princípio da pluralidade das existências, e que não
tinha conhecimento da comunicação acima, arrastado pela lógica irresistível,
disse, falando desse caso, que ele não poderia explicar-se senão pela
reencarnação, se fosse certo que a gente poderia reviver na Terra.
Eis, pois um fenômeno que, por sua própria estranheza,
cativando a atenção, provoca a ideia da reencarnação, como a única razão
plausível que se lhe possa dar. Antes que este princípio estivesse na ordem do
dia, ter-se-ia simplesmente achado o fato bizarro e, sem dúvida, em tempos mais
recuados, teriam olhado essa menina como enfeitiçada. Nós nem mesmo
afirmaríamos que hoje não fosse esta a opinião de certas pessoas.
O que não é menos digno de nota é que este fato se produz
precisamente num país ainda refratário à ideia da reencarnação, mas à qual será
arrastado pela força das coisas.
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