Allan Kardec
Um dos nossos correspondentes de Sens nos transmitiu as
observações seguintes, sobre a qualificação de partido, dada ao
Espiritismo, a propósito de nosso artigo do mês
de julho sobre o mesmo assunto.
Num artigo do último número da Revista, intitulado: O partido
espírita, dizeis que, uma vez que assim nomeiam o Espiritismo, ele o
aceita. Mas deve aceitá-lo?
Isto talvez mereça um exame sério.
Todas as religiões, assim como o Espiritismo, não
ensinam que todos os homens são irmãos, que são todos filhos de um pai comum,
que é Deus? Ora, deveria haver partidos entre os filhos de Deus? Não é uma
ofensa ao Criador? Porque é próprio dos
partidos armar os homens uns contra os outros; e pode a imaginação conceber maior
crime que armar os filhos de Deus uns contra os outros?
Tais são, senhor, as reflexões que julguei dever
submeter à vossa apreciação. Talvez fosse oportuno submetê-las, também, à dos
benevolentes Espíritos que guiam os trabalhos[2]
do Espiritismo, a fim de conhecer a sua opinião. Essa questão talvez seja mais
grave do que parece à primeira vista. De minha parte, repugnar-me-ia pertencer
a um partido. Creio que o Espiritismo deve considerar os partidos como uma
ofensa a Deus.
Estamos perfeitamente de acordo
com o nosso honrado correspondente, cuja intenção só podemos louvar.
Contudo, cremos que seus
escrúpulos são um pouco exagerados no caso de que se trata, sem dúvida por não
ter examinado suficientemente a questão.
A palavra partido
implica, por sua etimologia, a ideia de divisão, de cisão e, por conseguinte, a
de luta, de agressão, de violência, de intolerância, de ódio, de animosidade,
de vingança, coisas todas contrárias ao espírito do Espiritismo. Não tendo o
Espiritismo nenhum desses caracteres, pois que os repudia, por suas tendências
mesmas, não é um partido na acepção vulgar da palavra, e nosso correspondente
tem muitíssima razão para repelir a qualificação deste ponto de vista.
Mas ao nome de partido se
liga também a ideia de uma força, física ou moral, bastante forte para pesar na
balança, bastante preponderante para que se possa contar com ela; aplicando-o
ao Espiritismo, pouco ou nada conhecido, é dar-lhe um ato de notória
existência, uma posição entre as opiniões, constatar a sua importância e, como
consequência, provocar o seu exame, o que ele não cessa de pedir. Sob esse
aspecto, devia repudiar tanto menos essa qualificação, embora fazendo reservas
sobre o sentido a ligar a isto, quanto, partida do alto, ela dava um desmentido
oficial aos que pretendem que o Espiritismo seja um mito sem consistência, que
se gabavam de o haver enterrado vinte vezes. Foi possível julgar do alcance
desta palavra pelo ardor desajeitado com o qual certos órgãos da imprensa dela
se apoderam para transformá-la num espantalho.
É por esta consideração, e neste
sentido, que dissemos que o Espiritismo aceita o título de partido, já
que lhe dão, porque era engrandecê-lo aos olhos do público; mas não tivemos em
vista fazê-lo perder sua qualidade essencial, a de doutrina filosófica
moralizadora, que faz sua glória e a sua força. Longe de nós, pois, o
pensamento de transformar em partidários os adeptos de uma doutrina de
paz, de tolerância, de caridade e de fraternidade. A palavra partido,
aliás, nem sempre implica a ideia de luta, de sentimentos hostis; não se diz: o
partido da paz? O partido das pessoas honestas? O Espiritismo já provou, e
provará sempre, que pertence a esta categoria.
Quanto ao mais, faça o que
fizer, o Espiritismo não pode deixar de ser um partido. Com efeito, que é um
partido, abstração feita da ideia de luta? É uma opinião que não é partilhada
senão por uma parte da população. Mas essa qualificação só é dada às
opiniões que contam um número de aderentes bastante considerável para chamar a
atenção e representar um papel. Ora, não sendo ainda de todos, a opinião
espírita é, necessariamente, um partido em relação às opiniões contrárias, que
o combatem, até que os tenha unido a todos. Em virtude de seus princípios, ele
não é agressivo; não se impõe; não subjuga; não pede para si senão a liberdade
de pensar à sua maneira, seja; mas, desde que é atacado, tratado como pária,
deve defender-se e reivindicar para si o que é de direito comum; ele o deve, é
seu dever, sob pena de ser acusado de renegar sua causa, que é a de todos os
seus irmãos em crença, que não poderia abandonar sem cobardia. Entra, pois,
forçosamente na luta, por maior repugnância que experimente; não é inimigo de
ninguém, é verdade, mas tem inimigos que procuram esmagá-lo; é por sua firmeza,
por sua perseverança e por sua coragem que se lhes imporá; suas armas são
completamente diversas das dos adversários, também é verdade; mas não deixa de
ser para eles, e apesar deles, um partido, pois não lhe teriam dado este título
se não o tivessem julgado bastante forte para os contrabalançar.
Tais são os motivos pelos quais
julgamos que o Espiritismo podia aceitar a qualificação de partido, que lhe era
dado por seus antagonistas, sem que o tenha tomado por si mesmo, porque era aceitar
o repto que lhe era lançado. Pensamos que o podia, sem repudiar os seus
princípios.
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