terça-feira, 27 de dezembro de 2022

O PARTIDO ESPÍRITA – 2[1]

 


Allan Kardec

 

Um dos nossos correspondentes de Sens nos transmitiu as observações seguintes, sobre a qualificação de partido, dada ao Espiritismo, a propósito de nosso artigo do mês de julho sobre o mesmo assunto.

Num artigo do último número da Revista, intitulado: O partido espírita, dizeis que, uma vez que assim nomeiam o Espiritismo, ele o aceita. Mas deve aceitá-lo?

Isto talvez mereça um exame sério.

Todas as religiões, assim como o Espiritismo, não ensinam que todos os homens são irmãos, que são todos filhos de um pai comum, que é Deus? Ora, deveria haver partidos entre os filhos de Deus? Não é uma ofensa ao Criador?   Porque é próprio dos partidos armar os homens uns contra os outros; e pode a imaginação conceber maior crime que armar os filhos de Deus uns contra os outros?

Tais são, senhor, as reflexões que julguei dever submeter à vossa apreciação. Talvez fosse oportuno submetê-las, também, à dos benevolentes Espíritos que guiam os trabalhos[2] do Espiritismo, a fim de conhecer a sua opinião. Essa questão talvez seja mais grave do que parece à primeira vista. De minha parte, repugnar-me-ia pertencer a um partido. Creio que o Espiritismo deve considerar os partidos como uma ofensa a Deus.

 

Estamos perfeitamente de acordo com o nosso honrado correspondente, cuja intenção só podemos louvar.

Contudo, cremos que seus escrúpulos são um pouco exagerados no caso de que se trata, sem dúvida por não ter examinado suficientemente a questão.

A palavra partido implica, por sua etimologia, a ideia de divisão, de cisão e, por conseguinte, a de luta, de agressão, de violência, de intolerância, de ódio, de animosidade, de vingança, coisas todas contrárias ao espírito do Espiritismo. Não tendo o Espiritismo nenhum desses caracteres, pois que os repudia, por suas tendências mesmas, não é um partido na acepção vulgar da palavra, e nosso correspondente tem muitíssima razão para repelir a qualificação deste ponto de vista.

Mas ao nome de partido se liga também a ideia de uma força, física ou moral, bastante forte para pesar na balança, bastante preponderante para que se possa contar com ela; aplicando-o ao Espiritismo, pouco ou nada conhecido, é dar-lhe um ato de notória existência, uma posição entre as opiniões, constatar a sua importância e, como consequência, provocar o seu exame, o que ele não cessa de pedir. Sob esse aspecto, devia repudiar tanto menos essa qualificação, embora fazendo reservas sobre o sentido a ligar a isto, quanto, partida do alto, ela dava um desmentido oficial aos que pretendem que o Espiritismo seja um mito sem consistência, que se gabavam de o haver enterrado vinte vezes. Foi possível julgar do alcance desta palavra pelo ardor desajeitado com o qual certos órgãos da imprensa dela se apoderam para transformá-la num espantalho.

É por esta consideração, e neste sentido, que dissemos que o Espiritismo aceita o título de partido, já que lhe dão, porque era engrandecê-lo aos olhos do público; mas não tivemos em vista fazê-lo perder sua qualidade essencial, a de doutrina filosófica moralizadora, que faz sua glória e a sua força. Longe de nós, pois, o pensamento de transformar em partidários os adeptos de uma doutrina de paz, de tolerância, de caridade e de fraternidade. A palavra partido, aliás, nem sempre implica a ideia de luta, de sentimentos hostis; não se diz: o partido da paz? O partido das pessoas honestas? O Espiritismo já provou, e provará sempre, que pertence a esta categoria.

Quanto ao mais, faça o que fizer, o Espiritismo não pode deixar de ser um partido. Com efeito, que é um partido, abstração feita da ideia de luta? É uma opinião que não é partilhada senão por uma parte da população. Mas essa qualificação só é dada às opiniões que contam um número de aderentes bastante considerável para chamar a atenção e representar um papel. Ora, não sendo ainda de todos, a opinião espírita é, necessariamente, um partido em relação às opiniões contrárias, que o combatem, até que os tenha unido a todos. Em virtude de seus princípios, ele não é agressivo; não se impõe; não subjuga; não pede para si senão a liberdade de pensar à sua maneira, seja; mas, desde que é atacado, tratado como pária, deve defender-se e reivindicar para si o que é de direito comum; ele o deve, é seu dever, sob pena de ser acusado de renegar sua causa, que é a de todos os seus irmãos em crença, que não poderia abandonar sem cobardia. Entra, pois, forçosamente na luta, por maior repugnância que experimente; não é inimigo de ninguém, é verdade, mas tem inimigos que procuram esmagá-lo; é por sua firmeza, por sua perseverança e por sua coragem que se lhes imporá; suas armas são completamente diversas das dos adversários, também é verdade; mas não deixa de ser para eles, e apesar deles, um partido, pois não lhe teriam dado este título se não o tivessem julgado bastante forte para os contrabalançar.

Tais são os motivos pelos quais julgamos que o Espiritismo podia aceitar a qualificação de partido, que lhe era dado por seus antagonistas, sem que o tenha tomado por si mesmo, porque era aceitar o repto que lhe era lançado. Pensamos que o podia, sem repudiar os seus princípios.



[1] Revista Espírita – Agosto/1868 – Allan Kardec

[2] Publicado em brochura separada. Preço: 15 c.; pelo correio: 20 c.

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