terça-feira, 6 de setembro de 2022

CARTA DE UM DEFUNTO AO SEU AMIGO SOBRE AS RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE OS ESPÍRITOS E AQUELES QUE ELES AMARAM NA TERRA[1]

 

Allan Kardec

 

Meu bem-amado, antes de tudo devo advertir-te que, das mil coisas que desejas aprender de mim e que eu teria tanto desejado poder dizer-te, ouso apenas comunicar-te uma só, pois não dependo absolutamente de mim mesmo. Como já te disse, minha vontade depende da vontade d’Aquele que é a suprema sabedoria. Minhas relações contigo não são baseadas senão no teu amor. Esta sabedoria, este amor personificados, muitas vezes nos impelem, a mim e aos meus mil vezes mil convivas de uma felicidade que se torna continuamente mais elevada e mais inebriante para os homens ainda mortais, e nos fazem entrar com eles em relações certamente agradáveis para nós, embora muitas vezes obscurecidas e nem sempre bastante puras e santas. Recebe de mim algumas noções acerca destas relações. Não sei como conseguirei fazer-te compreender esta grande verdade que, provavelmente, te surpreenderá muito, a despeito de sua realidade: é que nossa própria felicidade muitas vezes depende, relativamente, bem entendido, do estado moral daqueles que deixamos na Terra e com os quais entramos em relações diretas.

Seu sentimento religioso nos atrai; sua impiedade nos repele.

Nós nos regozijamos com suas puras e nobres alegrias, isto é, com suas alegrias espirituais desinteressadas. Seu amor contribui para a nossa felicidade; por isso sentimos, se não um sentimento semelhante ao sofrimento, ao menos uma diminuição de prazer, quando eles se deixam cobrir-se de sombras por sua sensualidade, seu egoísmo, suas paixões animais ou pela impureza de seus desejos.

Meu amigo, detém-te, eu te peço, ante esta expressão: cobrir-se de sombras.

Todo pensamento divino produz um raio de luz, que jorra do homem amante, e que não é visto nem compreendido senão pelas naturezas amantes e radiantes. Toda espécie de amor tem seu raio de luz, que lhe é particular. Esse raio, reunindo-se à auréola que circunda os santos, a torna ainda mais resplendente e mais agradável à vista. Do grau desta claridade e desta amenidade depende, muitas vezes, o grau de nossa própria felicidade, ou da felicidade que sentimos de nossa existência. Com a desaparição do amor, essa luz se desvanece, e com ela o elemento de felicidade daqueles que amamos. Um homem que se torna estranho ao amor se cobre de sombras, no sentido mais literal e mais positivo da palavra; torna-se mais material, por conseguinte mais elementar, mais terrestre, e as trevas da noite o cobrem com seu véu. A vida, ou o que para nós é a mesma coisa – o amor do homem – produz o grau de sua luz, sua pureza luminosa, sua identidade com a luz, a magnificência de sua natureza.

Só estas últimas qualidades tornam possíveis e íntimas as nossas relações com ele. A luz atrai a luz. É-nos impossível agir sobre as almas sombrias. Todas as naturezas não amantes nos parecem sombrias. A vida de cada mortal, sua verdadeira vida, é como o seu amor; sua luz se assemelha ao seu amor; de sua luz decorre a nossa comunicação com ele e a sua conosco. Nosso elemento é a luz, cujo segredo não é compreendido por nenhum mortal. Atraímos e somos atraídos por ela. Essa vestimenta, esse órgão, esse veículo, esse elemento, no qual reside a força primitiva, que tudo produz, a luz numa palavra, forma para nós o traço característico de todas as naturezas.

Nós clareamos na medida do nosso amor; somos reconhecidos por esta claridade, e somos atraídos por todas as naturezas amantes e radiantes como nós. Por efeito de um movimento imperceptível, dando uma certa direção aos nossos raios, podemos fazer nascer em naturezas que são simpáticas, ideias mais humanas, suscitar ações, sentimentos mais nobres e mais elevados; mas não temos o poder de forçar ou de dominar ninguém, nem de impor nossa vontade aos homens cuja vontade é absolutamente independente da nossa. O livre-arbítrio do homem nos é sagrado. É-nos impossível comunicar um só raio de nossa pura luz a um homem a quem falta sensibilidade. Ele não possui nenhum sentido, nenhum órgão para poder receber de nós a mínima coisa. Do grau de sensibilidade que possui um homem depende – Oh! Permite que te repita em cada uma de minhas cartas – sua aptidão para receber a luz, sua simpatia com todas as naturezas luminosas e com o seu protótipo primordial. Da ausência da luz nasce a incapacidade de se aproximar das fontes da luz, ao passo que milhares de naturezas luminosas podem ser atraídas por uma só natureza semelhante.

O Homem-Jesus, resplandecente de luz e de amor, foi o ponto luminoso que atraía incessantemente para ele legiões de anjos. Naturezas sombrias, egoístas, atraem para si Espíritos sombrios, grosseiros, privados de luz, malévolos e, ademais, são envenenados por eles, ao passo que as almas amantes se tornam ainda mais puras e mais amantes, por seu contato com os Espíritos bons e amantes.

Jacob adormecido, cheio de sentimentos piedosos, vê os anjos do Senhor chegarem a ele em multidão, e a sombria alma de Judas Iscariotes dá ao chefe dos Espíritos sombrios o direito, direi mesmo o poder, de penetrarem na sombria atmosfera de sua natureza odienta. Os Espíritos radiosos são abundantes onde se encontra um Elíseo; legiões de Espíritos sombrios pululam entre as almas sombrias.

Meu bem-amado, medita bem no que acabo de dizer-te. Encontrarás numerosas aplicações para isto nos livros bíblicos, que encerram verdades ainda intactas, bem como instruções da mais alta importância concernentes às relações que existem entre os mortais e os imortais, entre o mundo material e o mundo dos Espíritos.

Não depende senão de ti encontrar-te sob a influência benéfica dos Espíritos amantes ou de os afastar de ti; podes conservá-los junto a ti, ou forçá-los a te deixar. Depende de ti tornar-me mais ou menos feliz.

Agora deves compreender que todo ser amante torna-se mais feliz quando encontra um ser tão amante quanto ele; que o mais feliz e o mais puro dos seres torna-se menos feliz, quando encontra uma diminuição de amor naquele que ama; que o amor abre o coração ao amor, e que a ausência deste sentimento torna mais difícil, por vezes até impossível, o acesso de toda comunicação íntima.

Se desejas que eu já desfrute da felicidade suprema, que me torne ainda mais feliz, torna-te melhor ainda. Por isto tu me tornarás mais radioso e poderás simpatizar mais com todas as naturezas radiosas e imortais. Elas se apressarão a vir junto a ti; sua luz reunir-se-á à tua e a tua à delas; a sua presença tornar-te-á mais puro, mais irradiante, mais vivaz e, o que te parecerá difícil acreditar, mas não o é por isto menos positivo, elas mesmas, por efeito de tua luz, a que irradiará de ti, elas se tornarão mais luminosas, mais vivazes, mais felizes de sua existência e, por efeito de teu amor, ainda mais amantes.

Meu bem-amado, existem relações imperecíveis entre o que chamais os mundos visível e invisível, uma comunhão incessante entre os habitantes da Terra e os do Céu que sabem amar, uma ação benéfica recíproca de cada um desses mundos sobre o outro.

Meditando e analisando esta ideia com cuidado, reconhecerás cada vez mais a sua verdade, sua urgência e sua santidade.

Não te esqueças, irmão da Terra: vives visivelmente num mundo que ainda é invisível para ti!

Não o esqueças! No mundo dos Espíritos amantes, alegrar-se-ão por teu crescimento em amor puro e desinteressado.

Nós nos encontramos junto de ti, quando nos julgas bem longe. Jamais um ser amante se acha só e isolado.

A luz do amor rompe as trevas do mundo material, para entrar num mundo menos material.

Os Espíritos amantes e luminosos acham-se sempre na vizinhança do amor e da luz.

Estas palavras do Cristo são literalmente verdadeiras:

Onde duas ou três pessoas estiverem reunidas em meu nome, aí estarei com elas.

Também é indubitavelmente certo que podemos afligir o Espírito de Deus por nosso egoísmo, e o alegrar por nosso verdadeiro amor, conforme o sentido profundo destas palavras: O que ligardes na Terra será ligado no Céu; o que desligardes na Terra será também desligado no Céu. Desligais pelo egoísmo, ligais pela caridade, isto é, pelo amor. Aproximai-vos e afastai-vos de nós.

Nada é mais claramente compreendido no Céu do que o amor dos que amam na Terra.

Nada é mais atraente para os Espíritos bem aventurados pertencentes a todos os graus de perfeição, do que o amor dos filhos da Terra.

Vós, que ainda sois chamados mortais, pelo amor podeis fazer descer o Céu sobre a Terra.

Poderíeis entrar conosco, bem-aventurados, numa comunhão infinitamente mais íntima do que podeis supor, se vossas almas se abrissem à nossa influência pelos impulsos do coração.

Muitas vezes estou junto a ti, meu bem-amado! Gosto de me encontrar na tua esfera de luz.

Permite-me dirigir-te ainda algumas palavras de confiança.

Quando te aborreces, a luz que irradia de ti, no momento em que pensas naqueles que tu amas ou nos que sofrem, se obscurece e, então, sou forçado a afastar-me de ti, pois nenhum Espírito amante pode suportar as trevas da cólera. Ainda recentemente tive que te deixar. Eu, a bem dizer, te perdi de vista e me dirigi para um outro amigo, ou antes, a luz de seu amor atraiu-me para ele. Ele orava, derramando lágrimas por uma família benfazeja, momentaneamente caída na maior miséria e que ele não estava em condições de socorrer. Oh! Como seu corpo terrestre já me parecia luminoso; foi como se uma claridade deslumbrante o inundasse.

Nosso Senhor aproximou-se dele e um raio de seu espírito caiu nessa luz. Que felicidade para mim poder mergulhar nesta auréola e, retemperado por esta luz, estar em estado de inspirar à sua alma a esperança de um socorro próximo! Pareceu-me ouvir uma voz do fundo de sua alma, dizer-lhe:

Nada temas! Crê! Desfrutarás a alegria de poder aliviar aqueles por quem acabas de pedir a Deus.

Levantou-se inundado de alegria depois da prece. No mesmo instante, fui atraído para um outro ser radioso, também em prece...

Era a nobre alma de uma virgem, que orava e dizia:

Senhor! Ensina-me a fazer o bem segundo a tua vontade.

Pude e ousei inspirar-lhe a seguinte ideia:

Não farei bem mandando a esse homem caridoso, que conheço, um pouco de dinheiro, para que o empregue ainda hoje em benefício de alguma família pobre?

Ela apegou-se a esta ideia com uma alegria infantil; recebeu-a como teria recebido um anjo descido do céu. Essa alma piedosa e caridosa reuniu uma soma considerável; depois escreveu uma cartinha muito afetuosa, dirigida àquele por quem acabava de orar, e que recebeu, assim como o dinheiro, apenas uma hora depois de sua prece, vertendo lágrimas de alegria e cheio de um profundo reconhecimento a Deus!

Eu o segui, desfrutando eu mesmo uma felicidade suprema e alegrando-me em sua luz. Ele chegou à porta da pobre família.

Deus terá piedade de nós? perguntou a piedosa esposa a seu piedoso marido.

− Sim, ele terá piedade de nós, como tivemos piedade dos outros.

Ouvindo essa resposta do marido, aquele que tinha orado encheu-se de alegria; abriu a porta e, sufocado por sua ternura, mal pôde pronunciar estas palavras:

Sim, ele terá piedade de vós, como vós mesmos tivestes piedade dos pobres; eis uma prova da misericórdia de Deus. O Senhor vê os justos e ouve as suas súplicas.

Com que viva luz brilharam todos os assistentes, quando, depois de ter lido a cartinha, erguêramos os olhos e os braços para o céu! Massas de Espíritos se apressaram a chegar de todos os lados. Como nos alegramos! Como nos abraçamos!

Como todos louvamos a Deus e o bendissemos! Como todos nos tornamos mais perfeitos, mais amantes!

Tu, em breve brilharás outra vez; eu pude e ousei chegar junto a ti; tu tinhas feito três coisas que me conferiam o direito de aproximar-me de ti e de te alegrar. Tinhas derramado lágrimas de vergonha por tua cólera; tinhas refletido, ficando seriamente enternecido pelos meios de poder dominar-te; tinhas pedido sincero perdão àquele a quem a tua exaltação havia ofendido, e buscavas de que maneira poderias compensá-lo, proporcionando-lhe alguma satisfação. Essa preocupação restituiu a calma ao teu coração, a alegria aos teus olhos, a luz ao teu corpo.

Podes julgar, por este exemplo, se estamos sempre bem instruídos do que fazem os amigos que deixamos na Terra, e quanto nos interessamos por seu estado moral. Agora também deves compreender a solidariedade que existe entre o mundo visível e o mundo invisível, e que depende de vós proporcionar-nos alegrias ou aflições.

Oh! Meu bem-amado, se te pudesses compenetrar desta grande verdade, que um amor nobre e puro encontra em si mesmo a sua mais bela recompensa; que os gozos mais puros, o gozo de Deus, não são senão o produto de um sentimento mais depurado, apressar-te-ias em te depurar de tudo o que é egoísmo.

Doravante, jamais poderei escrever-te sem voltar a este assunto. Nada tem preço sem o amor. Só ele possui o golpe de vista claro, justo, penetrante, para distinguir o que merece ser estudado, o que é eminentemente verdadeiro, divino, imperecível. Em cada ser mortal e imortal, animado de um amor puro, nós vemos, com um inexprimível sentimento de prazer, refletir-se o próprio Deus, como vedes o Sol brilhar em cada gota de água pura. Todos os que amam, na Terra como no Céu, não fazem senão um pelo sentimento. É do grau do amor que depende o grau de nossa perfeição e de nossa felicidade interior e exterior. É o teu amor que regula tuas relações com os Espíritos que deixaram a Terra, tua comunicação com eles, a influência que podem exercer sobre ti e sua ligação íntima com o teu Espírito.

Escrevendo-te isto, um sentimento de previsão, que jamais engana, ensina-me que neste momento te achas em excelente disposição moral, pois que meditas uma obra de caridade.

Cada uma de tuas ações, de teus pensamentos, traz um cunho particular, instantaneamente compreendido e apreciado por todos os Espíritos desencarnados. Que Deus venha em teu auxílio!

 

Escrevi-te isto em,

16 de dezembro de 1798

 

Seria supérfluo ressaltar a importância destas cartas de Lavater que, por toda parte, excitaram o mais vivo interesse. Elas atestam, de sua parte, não só o conhecimento dos princípios fundamentais do Espiritismo, mas uma justa apreciação de suas consequências morais. Apenas sobre alguns pontos parece ter tido idéias um pouco diferentes do que hoje sabemos, mas a causa dessas divergências que, aliás, prendem-se mais à forma do que ao fundo, é explicada na comunicação seguinte, por ele dada na Sociedade de Paris. Nós não as levantaremos, porque cada um as terá compreendido; o essencial era constatar que, muito antes do aparecimento oficial do Espiritismo, homens, cuja alta inteligência não poderia ser posta em dúvida, dele tiveram a intuição. Se não empregaram a palavra, é que esta não existia.

Não obstante, chamaremos a atenção sobre um ponto, que poderia parecer estranho: é a teoria segundo a qual a felicidade dos Espíritos estaria subordinada à pureza dos sentimentos dos encarnados, e se acharia alterada pela mais leve imperfeição destes.

Se assim fosse, considerando o que são os homens, não haveria Espíritos realmente felizes, e a felicidade verdadeira não existiria no outro mundo, como não existe na Terra. Os Espíritos devem sofrer tanto menos as imperfeições dos homens, quanto mais o sabem perfectíveis. Para eles os homens imperfeitos são como crianças, cuja educação não está feita, e na qual têm missão de trabalhar, eles que igualmente passaram pela fileira da imperfeição. Mas se se puser de lado o que o princípio desenvolvido nesta carta pode ter de muito absoluto, não se pode deixar de reconhecer um sentido muito profundo, uma admirável penetração das leis que regem as relações do mundo visível e do mundo invisível, e as nuanças que caracterizam o grau de adiantamento dos Espíritos encarnados ou desencarnados.

            Allan Kardec



[1] Revista Espírita – Maio/1868 – Allan Kardec

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