terça-feira, 31 de maio de 2022

ESTRANHA VIOLAÇÃO DE SEPULTURA[1] - (Estudo psicológico)

 

Allan Kardec

 

O Observateur, de Avesnes (20 de abril de 1867) relata o caso seguinte:

 

Há três semanas um operário de Louvroil, chamado Magnan, de 23 anos, teve a infelicidade de perder sua mulher, atingida por uma doença do peito. O profundo pesar que sentiu logo foi aumentado pela morte do filho, que não sobreviveu à mãe senão alguns dias. Magnan falava sem cessar da esposa, não querendo acreditar que ela o tivesse deixado para sempre e imaginando que não tardaria a voltar. Era em vão que seus amigos buscavam consolá-lo; ele os repelia a todos e se fechava em sua aflição.

Quinta-feira última, após muitas dificuldades, seus camaradas de oficina convenceram-no a acompanhar até a estrada de ferro um amigo comum, militar em licença que voltava ao seu regimento. Mas apenas chegado à estação, Magnan esquivou-se e voltou sozinho à cidade, ainda mais preocupado que de costume. Tomou num cabaré alguns copos de cerveja, que acabaram de o perturbar, e foi nessas disposições que entrou em casa, por volta das nove horas da noite. Achando-se só, o pensamento de que sua mulher não mais estava lá, o superexcitou ainda, e experimentou um desejo insuperável de a rever. Então tomou uma velha enxada e uma relha[2] em mau estado, e foi ao cemitério, onde, a despeito da obscuridade e da chuva torrencial que caía no momento, logo começou a tirar a terra que cobria sua cara defunta.

Somente depois de várias horas de trabalho sobre-humano conseguiu tirar o caixão da fossa. Só com as mãos e quebrando todas as unhas, arrancou a tampa; depois, tomando nos braços o corpo de sua pobre companheira, levou-o para casa e o pôs no leito. Seriam, então, três horas da manhã, aproximadamente. Depois de ter feito um bom fogo, descobriu o rosto da morta; em seguida, quase alegre, correu à casa da vizinha que a tinha amortalhado, para dizer que sua mulher voltara, como ele havia predito.

Sem dar a menor importância às palavras de Magnan, que, dizia ela, tinha visões, levantou-se e o acompanhou até a casa dele, a fim de o acalmar e fazê-lo deitar-se. Imagine-se a sua surpresa e o seu pavor, vendo o corpo exumado. O infeliz operário falava à morta como se ela pudesse escutá-lo e procurava com tocante tenacidade obter uma resposta, dando à sua voz uma doçura e toda a persuasão de que era capaz. Essa afeição além do túmulo oferecia um doloroso espetáculo.

Entretanto, a vizinha teve a presença de espírito de convencer o pobre alucinado a repor sua mulher no caixão, o que ele prometeu, vendo o silêncio obstinado daquela que julgava ter chamado à vida. Foi sob a fé de tal promessa que ela voltou para casa, mais morta do que viva.

Mas Magnan não se deu por vencido; foi despertar dois vizinhos, que se levantaram, como a primeira, para tentar tranquilizar o infortunado. Como ela, passado o primeiro momento de estupefação, eles o compeliram a levar a morta para o cemitério; e desta vez, sem hesitar, tomou a mulher nos braços e voltou a depositá-la no caixão de onde a havia tirado, recolocou-a na fossa e a recobriu com terra.

A mulher de Magnan estava enterrada há dezessete dias; não obstante, ainda se achava em perfeito estado de conservação, pois a expressão de seu rosto era exatamente a mesma do momento em que foi enterrada.

Quando interrogaram Magnan no dia seguinte, ele pareceu não se lembrar do que havia feito nem do que se tinha passado algumas horas antes. Apenas disse que acreditava ter visto sua mulher durante a noite. (Siècle, 29 de abril de 1867)

 

INSTRUÇÕES SOBRE O FATO PRECEDENTE

(Sociedade de Paris, 10 de maio de 1867 – Médium: Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo)

 

Os fatos se mostram em toda parte, e tudo quanto se produz parece ter uma direção especial, que leva aos estudos espirituais. Observai bem, e a cada instante vereis coisas que, à primeira vista, parecem anomalias na vida humana, e cuja causa procurariam inutilmente noutro lugar que não fosse na vida espiritual. Sem dúvida, para muita gente são apenas fatos curiosos, nos quais não pensam mais, tão logo virada a página; mas outros pensam mais seriamente; procuram uma explicação e, à força de ver a vida espiritual erguer-se diante deles, serão mesmo obrigados a reconhecer que somente aí está a solução do que não podem compreender. Vós, que conheceis a vida espiritual, examinai bem os detalhes do fato que acaba de vos ser lido, e vede se ela não se mostra com evidência.

Não penseis que os estudos que fazeis sobre esses assuntos de atualidade e outros sejam perdidos para as massas, porque, até agora, eles quase só vão aos espíritas, aos que já se acham convencidos? Não. Primeiro, ficai certos de que os escritos espíritas vão além dos adeptos; há pessoas muito interessadas na questão para não se manterem a par de tudo o que fazeis e da marcha da Doutrina. Sem que o pareça, a sociedade, que é o centro onde se elaboram os trabalhos, é um ponto de mira, e as soluções sábias e racionais que dela saem fazem refletir mais do que pensais. Mas dia virá em que esses mesmos escritos serão lidos, comentados, analisados publicamente; neles colherão a mancheias os elementos sobre os quais devem assentar-se as novas ideias, porque aí encontrarão a verdade. Ainda uma vez, ficai convencidos de que nada do que fazeis está perdido, mesmo para o presente, e com mais forte razão para o futuro.

Tudo é assunto de instrução para o homem que reflete. No fato que vos ocupa, vedes um homem possuindo suas faculdades intelectuais, suas forças materiais, e que parece, por um momento, completamente despojado das primeiras; pratica um ato que, à primeira vista, parece insensato. Pois bem! Aí está um grande ensinamento.

Isto aconteceu? perguntarão algumas pessoas. O homem estava em estado de sonambulismo natural, ou sonhou? O Espírito da mulher estava implicado nisto? Tais as perguntas que podem ser feitas a este respeito. Ora! O Espírito da sra. Magnan esteve muito nesse negócio, e muito mais do que podiam supor os próprios espíritas.

Se se seguir o homem com atenção desde o momento da morte de sua mulher, ver-se-á que ele muda pouco a pouco; desde as primeiras horas da partida da esposa, vê-se o seu Espírito tomar uma direção, que se acentua cada vez mais, para chegar ao ato de loucura da exumação do cadáver. Há neste ato outra coisa além do pesar; e, como ensina O Livro dos Espíritos, como o ensinam todas as comunicações: não é na vida presente, é no passado que se deve buscar a causa. Não estamos aqui senão para realizar uma missão ou pagar uma dívida; no primeiro caso, realiza-se uma tarefa voluntária; no segundo, fazei a contrapartida dos sofrimentos que experimentais e tereis a causa desses sofrimentos.

Quando a mulher morreu, lá ficou em Espírito, e como a união dos fluidos espirituais e dos do corpo era difícil de romper, em razão da inferioridade do Espírito, foi-lhe preciso certo tempo para retomar sua liberdade de ação, um novo trabalho para a assimilação dos fluidos; depois, quando ela estava em condições, apoderou-se do corpo do homem e o possuiu. Eis, pois, aqui um verdadeiro caso de possessão.

O homem não é mais ele, e notai: não é mais ele senão quando vem a noite. Seria preciso entrar em longas explicações para vos fazer compreender a causa desta singularidade; mas, em duas palavras: a mistura de certos fluidos, como em química a de certos gases, não pode suportar o brilho da luz. Daí porque certos fenômenos espontâneos ocorrem mais vezes à noite do que de dia.

Ela possui este homem; leva-o a fazer o que ela quer; é ela quem o conduz ao cemitério para o obrigar a fazer um trabalho sobre-humano e fazê-lo sofrer. E, no dia seguinte, quando perguntam ao homem o que se passou, ele fica estupefato e só se lembra de ter sonhado com a esposa. O sonho era realidade; ela tinha prometido voltar e voltou; ela voltará e o arrastará.

Numa outra existência, foi cometido um crime; o que queria vingar-se deixou o primeiro encarnar-se e escolheu uma existência que, pondo-o em relação com ele, lhe permitia realizar sua vingança. Perguntareis por que essa permissão? Mas Deus nada concede que não seja justo e lógico. Um quer se vingar; é preciso que tenha, como prova, ocasião de dominar seu desejo de vingança, e o outro deve sofrer a prova e pagar o que fez sofrer o primeiro. Aqui o caso é o mesmo; apenas, não estando terminados os fenômenos, não se estende mais por muito tempo: ainda existirá outra coisa.



[1] Revista Espírita – Janeiro/1868 – Allan Kardec

[2] Arado ou similar, peça que, posicionada à frente das aivecas, perfura e levanta o solo. Peça de ferro que reforça externamente as rodas do carro de boi.

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