O pensador Jon Aizpúrua admite a
existência de muitos espiritismos, todos eles pretensamente fundamentados na
proposta original de Allan Kardec. Ele propõe que é tempo de assumirmos essa
realidade e que, só assim, criaremos condições para um debate fecundo e sério
no sentido de definir a verdadeira identidade da filosofia codificada e fundada
por Allan Kardec. Leia seu artigo, a seguir
Jon Aizpúrua – Múrcia, Espanha.
Nós, espíritas, costumamos falar de
"espiritismo" no singular, quando nos referimos à doutrina fundada,
sistematizada ou codificada por Allan Kardec no século XIX. Diz-se,
reiteradamente, que o "espiritismo é um só" e que a causa das
divergências que costumam aparecer e reaparecer em momentos diferentes deve ser
debitada às condições espirituais, intelectuais ou morais, particulares de cada
um de seus seguidores, sejam eles encarnados ou desencarnados, médiuns ou não, atribuindo-se
também um peso significativo à influência de tendências negativas derivadas do
orgulho, dos preconceitos ou das crenças provindas do dogmatismo ou do
fanatismo.
No entanto, estamos convencidos de
que seria muito mais adequado usar essa palavra no plural,
"espiritismos", se quisermos abrir os olhos para o que já é uma realidade
do que aconteceu e está acontecendo com a proposta kardecista, e não apenas
sucumbir aos nossos desejos. Deixaremos agora de lado, para efeito de nossa
exposição, os sincretismos, nos quais as crenças católicas e as tradições
africanas e indo-americanas se amalgamam com práticas mediúnicas exuberantes e
heterogêneas cujos participantes não hesitam em se apresentar como espíritas,
como fazem os membros de grupos que se constituíram em torno das opiniões ou
ensinamentos dos ditos Mestres ou entidades espirituais superiores e que
rejeitam ou subestimam explicitamente a orientação kardecista. E tampouco
trataremos do chamado “espiritualismo moderno”, muitas vezes indevidamente
denominado “espiritualismo anglo-saxão”, um de cujos traços distintivos é a
rejeição da tese reencarnacionista.
Por si sós, as menções anteriores
confirmam essa pluralidade de espiritismos a respeito da qual comentamos, mas a
nossa reflexão não vai exatamente nessa linha, mas quer chamar a atenção para
as numerosas e variadas modalidades apreciadas no movimento espírita mundial,
seja em grupos, sociedades, fraternidades, federações de âmbito nacional e
internacional; também em congressos ou em publicações ou nas declarações e
exposições de dirigentes, escritores, oradores ou médiuns, sem falar nas
práticas mediúnicas em que florescem diferentes critérios ou ocorrências,
tornando as diferenças abismais. A realidade objetiva é que instituições e
pessoas que, nuances à parte, reconhecem a obra de Kardec como sua referência
essencial, fazem leituras bastante díspares e às vezes antagônicas do mesmo
espiritismo e do pensamento de seu fundador.
Em nossa opinião, reconhecer e
assumir essa pluralidade já é questão de senso comum, porque os fatos
claramente o indicam. E parece-nos do maior interesse refletir sobre as causas
e as chaves das divergências que separam os espíritas. É evidente que não há
diferenças substanciais quanto ao reconhecimento e proclamação dos postulados
básicos que definem o espiritismo: Deus, espírito, sobrevivência, evolução,
reencarnação, causalidade espiritual, mediunidade, vida universal. No entanto,
existem, e muito profundas, no que se refere às concepções, explicações ou
interpretações desses princípios e suas derivações ou aplicações.
A primeira coisa que se deve fazer é
analisar se os ensinamentos de Kardec, fruto de suas pesquisas e as orientações
ditadas pelos Espíritos que o assessoraram, foram claros e explícitos o
suficiente para a resolução de todas as questões filosóficas, científicas,
éticas e materiais ou espirituais, que se propuseram a examinar seguindo um
esboço metodológico admirável. Neste ponto crucial, podemos encontrar a raiz
das divergências que deram origem aos vários espiritismos.
Convém lembrar que Kardec advertia
com insistência que o espiritismo deveria avançar com o progresso e
retificar-se no que estivesse errado, e é como se procede quando se trata de
uma doutrina filosófica e científica de consequências morais, sobre a qual
sentenciou que “seu verdadeiro caráter é o de ciência e não religião”. Sobre
assuntos muito diversos, ele esclareceu que havia formulado algumas teorias
hipotéticas sujeitas a aguardar sua confirmação no futuro, sob pena de serem
descartadas. Infelizmente, essas definições, que nos parecem claras e precisas,
são, no entanto, ignoradas, ou mal interpretadas, submetidas a um processo de
ressemantização[2]
para que não digam o que dizem e não signifiquem o que realmente significam.
Mesmo assim, deve-se admitir que, em
certos pontos, o ilustre pensador francês não foi suficientemente explícito,
incorreu em ambiguidades e contradições, e não conseguiu ir além dos moldes da
teologia cristã ou das noções científicas vigentes em seu tempo. Assim, alguns
espíritas usam suas opiniões para sustentar as suas próprias, enquanto outros,
com as mesmas citações, sustentam conceitos muito diferentes.
Muitos espíritos, a maioria aliás, em
contradição com o projeto kardecista, assumem o espiritismo como religião, ou
mesmo como “A” religião. Eles assumem que nas obras básicas de codificação tudo
é dito e que tudo o que é dito é absolutamente verdadeiro, indiscutível e
intocável. Eles consideram que a missão do espiritismo é o restabelecimento do
"cristianismo primitivo ou original" e, por conseguinte, a
evangelização representa a síntese da tarefa a ser realizada no mundo. E se
formos para a linguagem que eles usam, é tão mística, adocicada, piegas e
conservadora, que supera a de qualquer uma das muitas congregações evangélicas
que competem para ganhar seguidores em todos os lugares. Quantas vezes lemos ou
ouvimos, para nosso espanto, que os representantes do espiritualismo cristão se
apresentam como "os trabalhadores de Jesus" e que o seu trabalho
consiste em "conduzir mais ovelhas ao rebanho do Senhor"! Aliás, a
cada dia uma concepção desnaturada de Jesus, que eles dizem "nem homem nem
Deus", ganha mais força nesse movimento, confirmando que adotaram a tese
roustainguista do Jesus fluídico e se afastaram do ensino kardecista, no que
diz com a condição humana, inteiramente natural a Jesus.
Aqueles de nós que se definem como
espíritas laicos, livres-pensadores, não religiosos, humanistas,
universalistas, racionalistas, pluralistas, progressivos e progressistas,
pensam de forma diferente. Expressamo-nos com uma linguagem bem distinta,
concebendo diferentes caminhos e objetivos para o projeto kardecista, e,
portanto, estamos situados em outro espiritismo. Não pretendemos ter a verdade,
que por definição é impossível de ser detida ou apreendida em termos
definitivos ou absolutos. Na melhor das hipóteses, seria a nossa verdade. Com
humildade reconhecemos as nossas limitações, mal compensadas pela vocação que
nos impulsiona ao estudo, o uso da razão, a dúvida e a procura do conhecimento
mais do que a crença, e o exercício do direito inalienável à liberdade de
pensamento, de consciência e de expressão, livre de ideias supersticiosas
provenientes da cultura do pecado ou da culpa. Não temos vocação de ovelha,
preferimos sentir-nos como águias que estendem as suas majestosas asas para
voar livremente às alturas e ver novos e mais amplos horizontes.
Estabelecer essas precisões
relativamente aos limites que nos separam dentro do movimento espírita não
apenas implica em reconhecer uma realidade por todos conhecida, como também de
que isso pode ser assumido com espírito sereno, com disposição para o diálogo e
para o estabelecimento e consolidação de um clima fraterno nas relações que hão
de primar entre os espíritas, respeitando o que cada um, conforme seu livre
arbítrio, entenda ou aceite.
Com frequência, costuma-se apontar
que “entre os espíritas há mais o que nos una do que nos separe”, e isso é
correto se estamos nos referindo aos postulados centrais da doutrina espírita,
os que constituem seu núcleo duro, mas, como temos dito, assim não é quando se
trata de definir o espiritismo e abordá-lo em todas as suas implicações e
análises de cada um desses princípios e a complexidade de suas consequências.
Há espaços e momentos adequados para
os vários espiritismos comunicarem, dialogarem e partilharem conhecimentos e
experiências. Um diálogo sem desqualificações e independentemente da pretensão
de querer converter alguém. Quem sabe se um diálogo assim praticado poderia
resultar em um benefício significativo para a compreensão e difusão do
Espiritismo, este, no singular e com maiúscula.
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