quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

HÁ UM SÓ OU SÃO MUITOS OS ESPIRITISMOS?[1]

 

 

O pensador Jon Aizpúrua admite a existência de muitos espiritismos, todos eles pretensamente fundamentados na proposta original de Allan Kardec. Ele propõe que é tempo de assumirmos essa realidade e que, só assim, criaremos condições para um debate fecundo e sério no sentido de definir a verdadeira identidade da filosofia codificada e fundada por Allan Kardec. Leia seu artigo, a seguir

Jon Aizpúrua – Múrcia, Espanha.

Nós, espíritas, costumamos falar de "espiritismo" no singular, quando nos referimos à doutrina fundada, sistematizada ou codificada por Allan Kardec no século XIX. Diz-se, reiteradamente, que o "espiritismo é um só" e que a causa das divergências que costumam aparecer e reaparecer em momentos diferentes deve ser debitada às condições espirituais, intelectuais ou morais, particulares de cada um de seus seguidores, sejam eles encarnados ou desencarnados, médiuns ou não, atribuindo-se também um peso significativo à influência de tendências negativas derivadas do orgulho, dos preconceitos ou das crenças provindas do dogmatismo ou do fanatismo.

No entanto, estamos convencidos de que seria muito mais adequado usar essa palavra no plural, "espiritismos", se quisermos abrir os olhos para o que já é uma realidade do que aconteceu e está acontecendo com a proposta kardecista, e não apenas sucumbir aos nossos desejos. Deixaremos agora de lado, para efeito de nossa exposição, os sincretismos, nos quais as crenças católicas e as tradições africanas e indo-americanas se amalgamam com práticas mediúnicas exuberantes e heterogêneas cujos participantes não hesitam em se apresentar como espíritas, como fazem os membros de grupos que se constituíram em torno das opiniões ou ensinamentos dos ditos Mestres ou entidades espirituais superiores e que rejeitam ou subestimam explicitamente a orientação kardecista. E tampouco trataremos do chamado “espiritualismo moderno”, muitas vezes indevidamente denominado “espiritualismo anglo-saxão”, um de cujos traços distintivos é a rejeição da tese reencarnacionista.

Por si sós, as menções anteriores confirmam essa pluralidade de espiritismos a respeito da qual comentamos, mas a nossa reflexão não vai exatamente nessa linha, mas quer chamar a atenção para as numerosas e variadas modalidades apreciadas no movimento espírita mundial, seja em grupos, sociedades, fraternidades, federações de âmbito nacional e internacional; também em congressos ou em publicações ou nas declarações e exposições de dirigentes, escritores, oradores ou médiuns, sem falar nas práticas mediúnicas em que florescem diferentes critérios ou ocorrências, tornando as diferenças abismais. A realidade objetiva é que instituições e pessoas que, nuances à parte, reconhecem a obra de Kardec como sua referência essencial, fazem leituras bastante díspares e às vezes antagônicas do mesmo espiritismo e do pensamento de seu fundador.

Em nossa opinião, reconhecer e assumir essa pluralidade já é questão de senso comum, porque os fatos claramente o indicam. E parece-nos do maior interesse refletir sobre as causas e as chaves das divergências que separam os espíritas. É evidente que não há diferenças substanciais quanto ao reconhecimento e proclamação dos postulados básicos que definem o espiritismo: Deus, espírito, sobrevivência, evolução, reencarnação, causalidade espiritual, mediunidade, vida universal. No entanto, existem, e muito profundas, no que se refere às concepções, explicações ou interpretações desses princípios e suas derivações ou aplicações.

A primeira coisa que se deve fazer é analisar se os ensinamentos de Kardec, fruto de suas pesquisas e as orientações ditadas pelos Espíritos que o assessoraram, foram claros e explícitos o suficiente para a resolução de todas as questões filosóficas, científicas, éticas e materiais ou espirituais, que se propuseram a examinar seguindo um esboço metodológico admirável. Neste ponto crucial, podemos encontrar a raiz das divergências que deram origem aos vários espiritismos.

Convém lembrar que Kardec advertia com insistência que o espiritismo deveria avançar com o progresso e retificar-se no que estivesse errado, e é como se procede quando se trata de uma doutrina filosófica e científica de consequências morais, sobre a qual sentenciou que “seu verdadeiro caráter é o de ciência e não religião”. Sobre assuntos muito diversos, ele esclareceu que havia formulado algumas teorias hipotéticas sujeitas a aguardar sua confirmação no futuro, sob pena de serem descartadas. Infelizmente, essas definições, que nos parecem claras e precisas, são, no entanto, ignoradas, ou mal interpretadas, submetidas a um processo de ressemantização[2] para que não digam o que dizem e não signifiquem o que realmente significam.

Mesmo assim, deve-se admitir que, em certos pontos, o ilustre pensador francês não foi suficientemente explícito, incorreu em ambiguidades e contradições, e não conseguiu ir além dos moldes da teologia cristã ou das noções científicas vigentes em seu tempo. Assim, alguns espíritas usam suas opiniões para sustentar as suas próprias, enquanto outros, com as mesmas citações, sustentam conceitos muito diferentes.

Muitos espíritos, a maioria aliás, em contradição com o projeto kardecista, assumem o espiritismo como religião, ou mesmo como “A” religião. Eles assumem que nas obras básicas de codificação tudo é dito e que tudo o que é dito é absolutamente verdadeiro, indiscutível e intocável. Eles consideram que a missão do espiritismo é o restabelecimento do "cristianismo primitivo ou original" e, por conseguinte, a evangelização representa a síntese da tarefa a ser realizada no mundo. E se formos para a linguagem que eles usam, é tão mística, adocicada, piegas e conservadora, que supera a de qualquer uma das muitas congregações evangélicas que competem para ganhar seguidores em todos os lugares. Quantas vezes lemos ou ouvimos, para nosso espanto, que os representantes do espiritualismo cristão se apresentam como "os trabalhadores de Jesus" e que o seu trabalho consiste em "conduzir mais ovelhas ao rebanho do Senhor"! Aliás, a cada dia uma concepção desnaturada de Jesus, que eles dizem "nem homem nem Deus", ganha mais força nesse movimento, confirmando que adotaram a tese roustainguista do Jesus fluídico e se afastaram do ensino kardecista, no que diz com a condição humana, inteiramente natural a Jesus.

Aqueles de nós que se definem como espíritas laicos, livres-pensadores, não religiosos, humanistas, universalistas, racionalistas, pluralistas, progressivos e progressistas, pensam de forma diferente. Expressamo-nos com uma linguagem bem distinta, concebendo diferentes caminhos e objetivos para o projeto kardecista, e, portanto, estamos situados em outro espiritismo. Não pretendemos ter a verdade, que por definição é impossível de ser detida ou apreendida em termos definitivos ou absolutos. Na melhor das hipóteses, seria a nossa verdade. Com humildade reconhecemos as nossas limitações, mal compensadas pela vocação que nos impulsiona ao estudo, o uso da razão, a dúvida e a procura do conhecimento mais do que a crença, e o exercício do direito inalienável à liberdade de pensamento, de consciência e de expressão, livre de ideias supersticiosas provenientes da cultura do pecado ou da culpa. Não temos vocação de ovelha, preferimos sentir-nos como águias que estendem as suas majestosas asas para voar livremente às alturas e ver novos e mais amplos horizontes.

Estabelecer essas precisões relativamente aos limites que nos separam dentro do movimento espírita não apenas implica em reconhecer uma realidade por todos conhecida, como também de que isso pode ser assumido com espírito sereno, com disposição para o diálogo e para o estabelecimento e consolidação de um clima fraterno nas relações que hão de primar entre os espíritas, respeitando o que cada um, conforme seu livre arbítrio, entenda ou aceite.

Com frequência, costuma-se apontar que “entre os espíritas há mais o que nos una do que nos separe”, e isso é correto se estamos nos referindo aos postulados centrais da doutrina espírita, os que constituem seu núcleo duro, mas, como temos dito, assim não é quando se trata de definir o espiritismo e abordá-lo em todas as suas implicações e análises de cada um desses princípios e a complexidade de suas consequências.

Há espaços e momentos adequados para os vários espiritismos comunicarem, dialogarem e partilharem conhecimentos e experiências. Um diálogo sem desqualificações e independentemente da pretensão de querer converter alguém. Quem sabe se um diálogo assim praticado poderia resultar em um benefício significativo para a compreensão e difusão do Espiritismo, este, no singular e com maiúscula.



[1] Artigo publicado na revista Evolución, n. 12, de dezembro/2021, órgão do Movimento de Cultura Espírita CIMA, de Caracas, Venezuela, tradução de Milton Medran Moreira

[2] Ato ou efeito de dar ou adquirir um novo sentido.

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