terça-feira, 4 de janeiro de 2022

EMANCIPAÇÃO DAS MULHERES NOS ESTADOS UNIDOS[1]

 

Allan Kardec

 

Mandam dizer de Nova Iorque que no número das petições recentemente dirigidas ao presidente dos Estados Unidos, encontra-se uma que levantou mais uma vez a questão da admissibilidade das mulheres aos empregos públicos. A senhorita Françoise Lord, de Nova Iorque, pediu para ser enviada como consulesa ao estrangeiro. O presidente levou seu pedido em consideração, e ela espera que o Senado lhe seja favorável. O sentimento público não se mostra tão hostil a essa inovação quanto se poderia supor, e vários jornais defendem a pretensão da senhorita Lord.

(Siècle, 5 de abril de 1867)

 

No distrito comandado pelo general Shéridan, formado pelos estados da Louisiana e do Texas, as listas eleitorais foram abertas, e a população branca ou de cor começou a se inscrever, sem levantar objeção a respeito da ingerência da autoridade militar em todo este caso. Apesar dos esforços dos legisladores de Washington, a população do norte guarda uma grande parte de seus preconceitos contra os negros. Com a maioria de 35 votos contrários, a Câmara dos Deputados de Nova Jérsei lhes recusou o gozo dos direitos políticos e o Senado do Estado associou-se a esse voto, que é objeto dos mais vivos ataques em toda a imprensa republicana. Em compensação, um dos estados do Oeste, o Wisconsin, deu o direito de sufrágio às mulheres de mais de vinte e um anos. Este princípio novo faz seu caminho nos Estados Unidos, e não faltam jornalistas para aprovar a galanteria política dos senadores do Wisconsin. Fazendo alusão a um romance célebre, um orador de uma reunião popular perguntou:

Como recusaríamos capacidade política à Sra. Beecher-Stowe[2], quando a reconhecemos no pai Tomás?

(Grande Moniteur, 9 de maio de 1867)

 

A Câmara dos Comuns da Inglaterra também se ocupou desta questão em sua sessão de 20 de maio último, sobre proposição de um de seus membros. Lê-se no relato do Morning-Post:

Sobre a cláusula 4, o Sr. Mill pede que se suprima a palavra homem e que se insira a palavra pessoa.

Diz ele: Meu objetivo é admitir a liberdade eleitoral a uma parte muito grande da população, atualmente excluída do seio da constituição, isto é, as mulheres. Não vejo por que as senhoras não casadas, maiores, e as viúvas não teriam voz na eleição dos membros do Parlamento.

Talvez digam que as mulheres já têm bastante poder, mas sustento que se elas obtivessem os direitos civis, que proponho se lhes conceda, elevaríamos a sua condição e as desembaraçaríamos de um obstáculo que hoje impede a expansão de suas faculdades.

Confesso que as mulheres já possuem um grande poder social, mas não em demasia, e não são crianças mimadas, como geralmente se supõe. Aliás, seja qual for o seu poder, quero que seja responsável, e lhes darei o meio de fazer conhecer suas necessidades e seus sentimentos.

O Sr. Lang – A proposição é, segundo ele, insustentável, e está convencido de que a grande maioria das próprias mulheres a rejeitaria.

Sir John Bowyer pensa de outro modo. As mulheres agora podem ser vigilantes diretoras dos povos, e ele não vê por que não votariam para os membros do Parlamento. O ilustre baronete cita o caso da Srta. Burdetts Coutts, para mostrar que a propriedade das mulheres, embora imposta como a dos homens, não está de modo algum representada.

Procedeu-se à votação: a emenda foi rejeitada por 196 votos contra 73, e foi ordenado que a palavra homem fará parte da cláusula.

 

O jornal Liberté, de 24 de maio, faz acompanhar o relato das seguintes e judiciosas reflexões:

Será que as mulheres não são admitidas a ter assento e votar nas assembleias de acionistas, da mesma maneira que os homens?

Se fosse certo, como pretendeu o honrado Sr. Lang, que as mulheres recusassem o direito que o Sr. Stuart Mill propõe se lhes reconheça, não seria razão para que ele não lhes fosse atribuído, já que lhes pertence legitimamente. As que tivessem repugnância de o exercer, estariam livres para não votar, salvo, mais tarde, a reconsiderar, quando o uso as tivesse feito mudar de opinião.

Os Langs, que fazem questão de manter os olhos fechados, acham monstruoso que as mulheres votem, mas muito natural e perfeitamente simples que elas reinem!

Ó inconsequência humana! Ó contradição social!

A.     Fagnan

 

Tratamos da questão da emancipação das mulheres no artigo intitulado: As mulheres têm alma? Publicado na Revista de janeiro de 1866, ao qual enviamos o leitor, para não nos repetirmos aqui. As considerações seguintes servirão para o completar.

Numa época em que os privilégios, resquícios de outra época e de outros costumes, caem diante do princípio da igualdade de direitos de toda criatura humana, não é de duvidar que os da mulher não tardassem a ser reconhecidos, e que, em futuro próximo, a lei não a tratará mais como menor. Até o presente, o reconhecimento desses direitos é considerado como uma concessão da força à fraqueza, razão por que é regateada com tanta parcimônia. Ora, como tudo quanto é concedido facultativamente pode ser retirado, esse reconhecimento só será definitivo e imprescritível quando não mais for subordinado ao capricho do mais forte, mas fundado num princípio que ninguém possa contestar.

Os privilégios de raças têm sua origem na abstração que os homens geralmente fazem do princípio espiritual, para considerar apenas o ser material exterior. Da força ou da fraqueza constitucional de uns, de uma diferença de cor em outros, do nascimento na opulência ou na miséria, da filiação consanguínea nobre ou plebeia, concluíram por uma superioridade ou uma inferioridade natural. Foi sobre este dado que estabeleceram suas leis sociais e os privilégios de raças. Deste ponto de vista circunscrito, são consequentes consigo mesmos, porquanto, não considerando senão a vida material, certas classes parecem pertencer, e realmente pertencem, a raças diferentes.

Mas se se tomar seu ponto de vista do ser espiritual, do ser essencial e progressivo, numa palavra, do Espírito, preexistente e sobrevivente a tudo, cujo corpo não passa de um invólucro temporário, variando, como a roupa, de forma e de cor; se, além disso, do estudo dos seres espirituais ressalta a prova de que esses seres são de natureza e de origem idênticas, que seu destino é o mesmo, que todos partem do mesmo ponto e tendem para o mesmo objetivo; que a vida corporal não passa de um incidente, uma das fases da vida do Espírito, necessária ao seu adiantamento intelectual e moral; que em vista desse avanço o Espírito pode sucessivamente revestir envoltórios diversos, nascer em posições diferentes, chega-se à consequência capital da igualdade de natureza e, a partir daí, à igualdade dos direitos sociais de todas as criaturas humanas e à abolição dos privilégios de raças. Eis o que ensina o Espiritismo.

Vós que negais a existência do Espírito para considerar apenas o homem corporal, a perpetuidade do ser inteligente para só encarar a vida presente, repudiais o único princípio sobre o qual é fundada, com razão, a igualdade de direitos que reclamais para vós mesmos e para os vossos semelhantes.

Aplicando este princípio à posição social da mulher, diremos que de todas as doutrinas filosóficas e religiosas, o Espiritismo é a única que estabelece seus direitos sobre a própria Natureza, provando a identidade do ser espiritual nos dois sexos. Desde que a mulher não pertence a uma criação distinta; que o Espírito pode nascer à vontade homem ou mulher, conforme o gênero de provas a que quer submeter-se para seu adiantamento; que a diferença não está senão no invólucro exterior, que modifica suas aptidões, da identidade na natureza do ser, deve-se concluir, necessariamente, pela igualdade dos direitos. Isto decorre, não de uma simples teoria, mas da observação dos fatos e do conhecimento das leis que regem o mundo espiritual. Encontrando os direitos da mulher uma consagração na Doutrina Espírita, fundada nas leis da Natureza, daí resulta que a propagação dessa doutrina apressará sua emancipação e lhe dará, de maneira estável, a posição social que lhe pertence. Se todas as mulheres compreendessem as consequências do Espiritismo, todas seriam espíritas, porque aí encontrariam o mais poderoso argumento que pudessem invocar.

O pensamento da emancipação da mulher neste momento germina num grande número de cérebros, porque estamos numa época em que fermentam as ideias de renovação social e em que as mulheres, tanto quanto os homens, sofrem a influência do sopro progressivo que agita o mundo. Depois de se terem ocupado muito de si mesmos, os homens começam a compreender que seria justo fazer algo por elas, afrouxar um pouco os laços da tutela sob os quais as mantêm. Devemos felicitar tanto mais os Estados Unidos pela iniciativa que tomam a este respeito, porque foram mais longe concedendo uma posição legal e de direito comum a toda uma raça da Humanidade.

Mas da igualdade dos direitos seria abusivo concluir pela igualdade de atribuições. Deus dotou cada ser de um organismo apropriado ao papel que deve desempenhar na Natureza. O da mulher é traçado por sua organização, e não é o menos importante. Há, pois, atribuições bem caracterizadas, conferidas a cada sexo pela própria Natureza, e essas atribuições implicam deveres especiais que os sexos não poderiam cumprir eficazmente saindo de seu papel. Há uns em cada sexo, como de um sexo a outro; a constituição física determina aptidões especiais; seja qual for sua constituição, todos os homens certamente têm os mesmos direitos, mas é evidente, por exemplo, que aquele que não está organizado para o canto não poderia tornar-se um cantor.

Ninguém lhe pode tirar o direito de cantar, mas esse direito é incapaz de lhe dar as qualidades que lhe faltam. Se, pois, a Natureza deu à mulher músculos mais fracos do que ao homem, é que ela não foi chamada aos mesmos exercícios; se sua voz tem outro timbre, é que não está destinada a produzir as mesmas impressões.

Ora, é para temer, e é o que ocorrerá, que na febre de emancipação que a atormenta, a mulher se julgue apta a preencher todas as atribuições do homem e que, caindo num excesso contrário, depois de ter tido muito pouco, queira ter em demasia.

Tal resultado é inevitável, mas absolutamente não é para assustar.

Se as mulheres têm direitos incontestáveis, a Natureza tem os seus, que jamais perde. Em breve elas se cansarão dos papéis que não são os seus. Deixai-as, pois, que reconheçam pela experiência sua insuficiência nas coisas às quais a Providência não as requisitou; ensaios infrutíferos as reconduzirão forçosamente ao caminho que lhes é traçado, caminho que pode e deve ser ampliado, mas que não pode ser desviado sem prejuízo para elas próprias, abalando a influência toda especial que elas devem exercer. Reconhecerão que só terão a perder na troca, porque a mulher de atitudes muito viris jamais terá a graça e o encanto que constituem a força daquela que sabe ficar mulher. Uma mulher que se faz homem abdica de sua verdadeira realeza; olham-na como um fenômeno.

Depois de lidos os dois artigos acima na Sociedade de Paris, foi proposta aos Espíritos, como assunto de estudo, a seguinte questão:

Que influência deve ter o Espiritismo sobre a condição da mulher?

Como todas as comunicações obtidas concluíssem no mesmo sentido, referir-nos-emos à seguinte, por ser a mais desenvolvida:

 

(Sociedade de Paris, 10 de maio de 1867 – Médium: Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo – Dissertação verbal)

Em todos os tempos os homens têm sido orgulhosos; é um vício constitucional, inerente à sua natureza. O homem – falo do sexo – o homem, forte pelo desenvolvimento de seus músculos, pelas concepções um tanto ousadas de seus pensamentos, não levou em conta a fraqueza a que se faz alusão nas santas Escrituras, fraqueza que fez a desgraça de toda a sua descendência. Julgou-se forte e serviu-se da mulher, não como de uma companheira, de uma família, mas dela se servindo do ponto de vista puramente bestial, transformando-a num animal bastante agradável e acostumando-a a manter respeitosa distância do senhor. Mas como Deus não quis que uma metade da Humanidade fosse dependente da outra, não fez duas criações distintas: uma para estar constantemente a serviço da outra. Quis que todas as suas criaturas pudessem participar do banquete da vida e do infinito na mesma proporção.

Nesses cérebros, por tanto tempo mantidos afastados de toda ciência como impróprios a receber os benefícios da instrução, Deus fez nascer, como contrapeso, astúcias que põem em xeque as forças do homem. A mulher é fraca, o homem é forte, concebe-se; mas a mulher é astuciosa e a ciência contra a astúcia nem sempre triunfa. Se fosse a verdadeira ciência, ela a venceria; mas é uma ciência falsa e incompleta, e a mulher facilmente encontra o seu calcanhar de Aquiles. Provocada pela posição que lhe era dada, a mulher desenvolveu o germe que sentia em si; a necessidade de sair do seu aviltamento lhe deu o desejo de romper suas cadeias. Segui sua marcha; tomai-a desde a era cristã e observai-a: vê-la-eis cada vez mais dominante, mas ela não consumiu toda a sua força; conservou-a para tempos mais oportunos e aproxima-se a época em que chegará a sua vez de a exibir. Aliás, a geração que se ergue traz em seus flancos a mudança que nos é anunciada desde muito tempo, e a mulher atual quer ter, na sociedade, um lugar igual ao do homem.

Observai bem; olhai os interiores e vede quanto a mulher tende a libertar-se do jugo; ela reina como senhora, por vezes como déspota. Vós a tivestes vergada por muito tempo; ela se empertiga como uma mola comprimida que se distende, pois começa a compreender que é chegada a sua hora.

Pobres homens! Se refletísseis que os Espíritos não têm sexo; que aquele que hoje é homem pode ser mulher amanhã; que escolhem indiferentemente, e por vezes de preferência, o sexo feminino, antes deveríeis regozijar-vos que vos afligir com a emancipação da mulher, e admiti-la no banquete da inteligência, abrindo-lhe de par em par todas as portas da Ciência, porque ela tem concepções mais finas, mais suaves, toques mais delicados que os do homem. Por que a mulher não poderia ser médica? Não é chamada naturalmente a prodigalizar cuidados aos doentes, e não os daria com mais inteligência se tivesse os conhecimentos necessários? Não há casos em que, quando se trata de pessoas de seu sexo, seria preferível uma médica? Muitas mulheres não têm dado provas de sua aptidão por certas ciências? Da finura de seu tato nos negócios? Por que, então, os homens reservariam para si o monopólio, senão por medo de vê-las ganhar em superioridade? Sem falar das profissões especiais, a primeira profissão da mulher não é a de mãe de família? Ora, a mãe instruída é mais apta para dirigir a instrução e a educação de seus filhos; ao mesmo tempo que alimenta o corpo, pode desenvolver o coração e o espírito. Sendo a primeira infância necessariamente confiada aos cuidados da mulher, quando esta for instruída a regeneração social terá dado um passo imenso, e é o que será feito.

A igualdade do homem e da mulher teria ainda outro resultado. Ser senhor, ser forte, é muito bom; mas é, também, assumir grande responsabilidade. Partilhando o fardo dos negócios da família com uma companheira capaz, esclarecida, naturalmente devotada aos interesses comuns, o homem alivia a sua carga e diminui sua responsabilidade, ao passo que a mulher, estando sob tutela e, por isto mesmo, num estado de submissão forçada, não tem voto na matéria senão quando o homem houver por bem condescender em lhe dar.

Diz-se que as mulheres são muito tagarelas e muito frívolas; mas, de quem a falta, senão dos homens que não lhes permitem a reflexão? Dai-lhes o alimento do espírito, e elas falarão menos; meditarão e refletirão. Acusai-as de frivolidade? Mas o que é que elas têm a fazer? Falo sobretudo da mulher do mundo. Nada, absolutamente nada. Em que ela pode ocupar-se? Se reflete e transcreve seus pensamentos, tratam-na ironicamente de mulher pedante. Se cultiva as ciências ou as artes, seus trabalhos não são levados em consideração, salvo raríssimas exceções e, contudo, como o homem, ela precisa de emulação. Lisonjear um artista é dar-lhe tom e coragem; mas, para a mulher, isto realmente não vale a pena! Então lhes resta o domínio da frivolidade, no qual elas podem estimular-se entre si.

Que o homem destrua as barreiras que seu amor-próprio opõe à emancipação da mulher e logo a verá alçar o seu voo, com grande vantagem para a sociedade. Ficai sabendo que a mulher, como todos vós, tem a centelha divina, porque a mulher é vós, como vós sois a mulher.



[1] Revista Espírita – junho/1867 – Allan Kardec

[2] Escritora do famoso livro “A Cabana do Pai Tomás”.

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