Allan Kardec
(Sociedade de Paris – Médium: Sr. Morin, em
sonambulismo espontâneo)
Um médico, que designaremos sob
o nome de doutor Claudius, conhecido de alguns dos nossos colegas, e cuja vida
tinha sido uma profissão de fé materialista, morreu há algum tempo de uma
afecção orgânica, que ele sabia incurável. Atraído, sem dúvida, pelo pensamento
dos que o haviam conhecido e que desejavam conhecer sua posição, manifestou-se
espontaneamente por intermédio do Sr. Morin, um dos médiuns da Sociedade, em
estado de sonambulismo espontâneo. Já várias vezes esse fenômeno se produziu
por esse médium e por outros adormecidos no sono espiritual.
O Espírito que assim se
manifesta apodera-se do médium, serve-se de seus órgãos como se ainda estivesse
vivo. Então não é mais uma fria comunicação escrita; é a expressão, a
pantomima, a inflexão de voz do indivíduo que se tem diante dos olhos.
Foi nestas condições que se
manifestou o doutor Claudius, sem ter sido evocado. Sua comunicação, que
publicamos textualmente a seguir, é instrutiva por várias razões,
principalmente quando descreve os sentimentos que o agitam; a dúvida ainda
constitui o seu tormento; a incerteza de sua situação o mergulha numa terrível
perplexidade, e aí está a sua punição. É um exemplo a mais que vem confirmar o
que se viu muitas vezes em casos semelhantes.
Após uma dissertação sobre outro
assunto, o médium absorvido se recolhe alguns instantes; depois, como se
despertasse penosamente, assim se exprime, falando a si mesmo:
Ah! Ainda um sistema! Que há de verdadeiro e de falso
na existência humana, na Criação, na criatura, no Criador? A coisa é? A matéria
é mesmo verdade? A Ciência é uma verdade? O saber, uma aquisição? A alma... a
alma existe?
O Criador, a Divindade, não é um mito? Mas, que digo
eu? Por que essas blasfêmias multiplicadas? Por que, em face da matéria, não
posso crer, ó meu Deus, não posso ver, sentir, compreender?
Matéria! Matéria! Mas sim, tudo é matéria. Tudo é
matéria! E, contudo, a invocação a Deus veio-me à boca! Por que, então, eu
disse: ó meu Deus? Por que esta palavra, já que tudo é matéria? Sou eu? Não é
um eco do meu pensamento, que ressoa e se escuta? Não são as últimas badaladas
do sino que eu tocava?
Matéria! Sim, a matéria existe, eu o sinto! A matéria
existe; eu a toquei! Mas! Nem tudo é matéria e, contudo... contudo tudo foi
auscultado, palpado, tocado, analisado, dissecado fibra a fibra, e nada! Nada
senão a carne, a matéria sempre que, desde o instante em que o grande movimento
se deteve, também parou! O movimento para, o ar não chega mais. Mas! Se tudo é
matéria, por que ela não mais se põe em movimento, desde que tudo o que existia
quando ela se agitava, existe ainda? E, contudo, ele não existe mais!
Mas se existo! Nem tudo acabou com o corpo! Na
verdade... estou mesmo morto? Entretanto, esse corrosivo que alimentei, que
cuidei com minhas mãos, não me perdoou! É verdade; estou morto! Mas esta doença
que vi nascer... crescer... tinha uma alma?
Ah! A dúvida! Sempre a dúvida! Em resposta a todas as
minhas secretas aspirações! Mas, se sou eu, ó meu Deus, se sou eu... ah! Fazei
que eu me reconheça! Fazei que vos pressinta! Porque, se sou eu, que longa
sucessão de blasfêmias! Que longa negação de vossa sabedoria, de vossa bondade,
de vossa justiça! Que imensa responsabilidade de orgulho assumi sobre minha
cabeça, ó meu Deus! Mas, se ainda tenho um eu, eu que nada queria
admitir fora do possível ao toque... Duvidei de vossa sabedoria, ó meu Deus! É
justo que eu duvide!... Sim, duvidei; a dúvida me persegue e me castiga.
Oh! É preferível mil mortes à dúvida em que vivo! Vejo,
encontro antigos amigos... e, contudo, todos morreram antes! Méry, meu pobre
louco! Mas não seria eu o louco? O epíteto de louco se adapta à sua
personalidade? Vejamos, então. O que é a loucura?
A loucura! A loucura! Decididamente, a loucura é
universal! Todos os homens são loucos num grau maior ou menor, mas sua loucura,
a dele, não era sabedoria ao lado de minha própria loucura? Para ele, os
sonhos, as imagens, as aspirações do além, mas, é justiça! Conhecia eu esse
desconhecido, que a mim se apresenta inopinadamente? Não, não, o nada não
existe, porque se existisse, esta encarnação de negação, de crimes, de infâmia,
não me torturaria assim! Vejo, mas vejo tarde demais, todo o mal que fiz!
Vendo-o hoje, e reparando-o pouco a pouco, talvez um dia eu seja digno de ver e
de fazer o bem!
Sistemas! Sistemas orgulhosos, produtos de cérebros
humanos, eis para onde nos conduzis! Num, é a divindade; noutro, a divindade
material e sensual; noutro ainda, o nada, nada! Nada, divindade material,
divindade espiritual são palavras? Oh! Eu peço para ver, meu Deus! E se eu
existo, se vós existis, concedei-me o favor que vos peço; aceitai minha prece,
porque vos peço, ó meu Deus, que me façais ver se eu existo, se eu sou! (Estas
últimas palavras foram ditas com uma inflexão dilacerante).
Observação – Se o Sr. Claudius perseverou até o fim
na sua incredulidade, não foram os meios de se esclarecer que lhe faltaram.
Como médico, tinha necessariamente o espírito culto, a inteligência
desenvolvida, um saber acima do vulgo e, no entanto, isto não lhe bastou. Em
suas minuciosas investigações da natureza morta e da natureza viva, não
entreviu Deus, não entreviu a alma!
Vendo os efeitos, não soube remontar à causa! Ou, melhor
dizendo, tinha concebido uma causa à sua maneira, e seu orgulho de sábio o
impedia de confessar a si mesmo, sobretudo de confessar à face do mundo que
podia se ter-se enganado. Circunstância digna de nota, morreu de um mal
orgânico que sabia, por sua própria ciência, ser incurável. Esse
mal, que ele tratava, era uma advertência permanente; a dor que lhe causava era
uma voz que lhe gritava incessantemente para pensar no futuro. Entretanto, nada
pôde triunfar de sua obstinação; fechou os olhos até o último momento.
Será que esse homem jamais teria podido tornar-se espírita?
Certamente não. Nem fatos, nem raciocínios teriam podido
vencer uma opinião preconcebida, e da qual estava decidido a não se desviar.
Ele era desses homens que não querem render-se à evidência, porque neles a
incredulidade é inata, como a crença em outros. O sentido pelo qual um
dia poderão assimilar os princípios espirituais ainda não despontou; são para a
espiritualidade quais cegos de nascença para a luz: não a compreendem.
Assim, não basta a inteligência para conduzir pelo caminho da
verdade; ela é como o cavalo que nos carrega, e que segue a rota na qual o
lançaram. Se esta rota conduz a um atoleiro, ele aí precipita o cavaleiro; mas,
ao mesmo tempo, lhe dá os meios de se reerguer.
Tendo o Sr. Claudius morrido voluntariamente como cego
espiritual, não é de admirar que não tenha visto a luz imediatamente; que não
se reconheça num mundo que não quis estudar; que, morto com a ideia do nada,
duvide da própria existência, incerteza pungente que constitui o seu tormento.
Caiu no precipício para onde o impeliu o seu corcel. Mas pode levantar-se desta
queda, e já parece entrever um clarão que, se o seguir, o conduzirá ao porto. É
em seus louváveis esforços que deve ser sustentado pela prece. Quando uma vez
tiver gozado dos benefícios da luz espiritual, terá horror às trevas do
materialismo; e se um dia voltar à Terra, será com intuições e aspirações muito
diversas das que tinha em sua última existência.
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