sexta-feira, 6 de agosto de 2021

O ABORTO PODE SER CONSIDERADO LIVRE-ARBÍTRIO?[1]

 

Fernanda Oliveira

 

Há, sim, a inconsciência prodigiosa

Que guarda pequeninas ocorrências

De todas as vividas existências

Do Espírito que sofre, luta e goza.

 

Ela é a registradora misteriosa

Do subjetivismo das essências,

Consciência de todas as consciências,

Fora de toda a sensação nervosa.

 

Câmara da memória independente

Arquiva tudo rigorosamente

Sem massas cerebrais organizadas,

 

Que o neurônio oblitera por momentos,

Mas que é o conjunto dos conhecimentos

Das nossas vidas estratificadas.

 

A Subconsciência - Augusto dos Anjos[2]

   

O livre-arbítrio é a capacidade que o ser humano tem de determinar a própria conduta, porque pode pensar e agir. Todos os seres possuem aptidão para progredir em virtude da sua liberdade de escolha, e cada um responde pelas consequências diretas e naturais dessas escolhas. O direito natural de liberdade está atrelado ao de responsabilidade, ou seja, quanto mais livre é o indivíduo, mais responsável ele deve ser. A responsabilidade produz o amadurecimento do ser ao longo das experiências vividas nos planos material e Espiritual.

A liberdade nos é concedida para que possamos ter uma visão mais lúcida de nós mesmos e das demais pessoas, de forma a discernir que papel devemos exercer na sociedade, quais são os nossos limites e possibilidades. Segundo Leon Denis no livro O Problema do ser, do destino e da dor[3]:

O livre-arbítrio é, pois, a expansão da personalidade e da consciência. Para sermos livres é necessário querer sê-lo e fazer esforço para vir a sê-lo, libertando-nos da escravidão da ignorância e das paixões baixas, substituindo o império das sensações e dos instintos pelo da razão.

Todo Espírito encarnado ou desencarnado possui capacidade e aptidão para o exercício de diferentes atos; cada um tem a faculdade de escolher livremente a sua dinâmica de vida. Vidas são feitas de tempo, cada direção tomada é escolhida com base em algum conhecimento. Somos livres para seguir nossos valores e intuição e apostar no que o coração indica.

Segundo a definição do Dicionário Online de Português[4], aborto é a interrupção voluntária ou provocada de uma gravidez; o próprio feto expelido ou retirado antes do tempo normal; feticídio; interrupção intencional da gravidez da qual resulta a morte do feto. O aborto é um tema complexo que, muitas vezes, passa por crivos morais, ideológicos e religiosos e em muitos casos não é recebido pela ótica da saúde publica. É cercado de acusações íntimas, tornando-se um assunto difícil e delicado, com muitas nuances, divergências e discordâncias.

A cultura funciona para preservar e dar continuidade a um povo, é feita pelas pessoas e está sempre em transformação. A Revolução Agrícola modificou a forma de ser e viver dos indivíduos. Deixamos de ser nômades, sem habitação fixa e mudando sempre para sermos sedentários com residência fixa e cultivo dos próprios alimentos. A partir desse sedentarismo, construímos relações mais efetivas e afetivas com os nossos semelhantes, e a partir daí surge a família e as funções referentes aos papéis desempenhados dentro dela.

Quando o ser humano é reduzido a determinado papel retiramos a sua humanidade e o transformamos em objeto. Desde cedo as meninas são ensinadas a serem mães, divulgam uma ideia romântica e irreal da maternidade, mas toda mãe é um ser humano, um Espírito imperfeito em busca de evolução, e não alguém com superpoderes ou amor incondicional e infinito. A vida é feita de escolhas diárias, não precisamos problematizar tudo, pois não existe uma regra geral a ser seguida. Cada ser humano é um ser único, incomparável, nem melhor ou pior. Pessoas são diversas. São muitas as imposições criadas em nossa sociedade condicionando a mulher a assumir formas que agradam os outros, precisamos romper com uma visão única. A verdadeira consciência social é aquela que quer para os outros a mesma dignidade que quer para si. Não podemos florear toda gravidez, algumas são fruto de agressão, abusos, ignorância e muita dor. É necessário pensar além do senso comum, mulheres de classe privilegiadas pagam por procedimentos seguros, enquanto mulheres pobres ficam com danos graves à saúde ou morrem. O Ministério da Saúde registra 250 mil internações em decorrência de complicações no aborto.

Quando é mais significativo cativar uma crença, um dogma, um achismo e tornar-se escravo de padrões impostos, do que o respeitar a escolha de um ser humano, demonstramos a perda da capacidade de empatia e compaixão. Fala-se muito em empatia, colocar-se no lugar do outro é uma construção intelectual, moral e ética.

É imperioso superar crenças, dogmas religiosos ou sociais e superstições difundidas ao longo do tempo que terminam por impedir que cada indivíduo desenvolva com seu livre-arbítrio a sua personalidade e as suas competências.

A Justiça Divina se faz pelo tribunal da consciência, dotado de livre arbítrio, ou seja, da liberdade de escolha, é o Espírito o construtor de seu destino. Somos julgados por nosso próprio julgamento. Nossos sofrimentos são resultados de nossas condutas errôneas e indevidas no mundo terreno: “a cada um segundo as suas obras”. Deus espera que cada um faça a sua parte de acordo com as suas possibilidades.

O Espiritismo é a doutrina da liberdade de escolhas, da responsabilidade pessoal, da atitude autônoma diante da vida. As dificuldades, tribulações, dores enfrentadas na existência fazem parte de superação do Espírito que busca ganhar o domínio de si mesmo.

Não podemos julgar sem conhecer os fatos envolvidos nas escolhas das outras pessoas; não podemos ter uma opinião absoluta e concreta. Não sabemos como já erramos em outras vivências, a transformação vem no caminhar com erros e acertos, e não estamos aqui para julgar, ofender e humilhar as escolhas alheias.

A Doutrina Espírita elucida que há crime sempre que a lei de Deus é descumprida. Apesar disso, em O Livro Dos Espíritos[5], acautela-se que se deve sacrificar o ser que ainda não existe e não sacrificar o que já existe, quando a mãe está em risco de vida. Então, o princípio não é absoluto. É preciso respeitar as escolhas, cada indivíduo tem seu próprio caminho. O aborto pode ser um ato imediatista de ignorância e da incapacidade do ser encarnado de pensar e conhecer além de sua experiência e vivência; pode ser uma escolha que sabote um potencial de evolução Espiritual ou moral, comprometendo o próprio desenvolvimento pessoal. Mas é também uma proibição que acaba fazendo com que outras práticas coloquem em risco a vida de mulheres e meninas. As estatísticas dos países onde o aborto é legalizado mostram que o número de abortos diminuiu; quando uma mulher aborta, há a necessidade de uma vida insatisfeita. Pode ser que a mulher optou por essa escolha por não ter acesso a métodos contraceptivos, informação e instrução sobre saúde sexual, que ela tenha sofrido violência ou abuso. Se o aborto é descriminalizado, essa mulher confia nos profissionais de saúde e consegue ter conhecimento para prevenir um segundo aborto. Essa mulher passa ter informação e aprendizado, vira fonte de informação para outras mulheres e para a comunidade onde vive, mudando a cultura local.

A liberdade de escolher é atributo fundamental da alma humana, base de sua moral. O desenvolvimento do livre-arbítrio segue o da inteligência. O saber traz discernimento para as responsabilidades diárias.

Vamos caminhando buscando pautar nossas escolhas na seara do bem, procurando o caminho da paz e do amor.

 

Fonte: Blog Letra Espírita

 

Referências:

FIGUEIREDO, Paulo Henrique de. Autonomia, a história jamais contada do Espiritismo. São Paulo: Feal, 2019.

SAMPAIO, Lucas. Nem céu nem inferno - As leis da alma segundo o Espiritismo. São Paulo: Feal,

2020. GONÇALVES, Marli. Feminismo no Cotidiano. São Paulo: Editora Contexto, 2019.

KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Catanduva: Editora Boa Nova, 2005.

KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo: noções elementares do mundo invisível, pelas manifestações dos Espíritos. 52. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005.



[2] XAVIER, Francisco Cândido. Parnaso de Além-túmulo: poesias mediúnicas. 17. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004.

[3] DENIS, Léon. O problema do ser, do destino e da dor: os testemunhos, os fatos, as leis. 28. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005.

[4] ABORTO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Disponível em: . Acesso em: 20 de maio de 2021.

[5] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Capivari: EME, 2019.

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