Allan Kardec
Lê-se no France de 14 de setembro de 1866:
A fé robusta das
pessoas que, a despeito de tudo, acreditam em todas as maravilhas, tantas vezes
desmentidas, do Espiritismo, é, em verdade, admirável. Mostras-lhes o truque das mesas girantes, e elas creem;
desvendam-se-lhes as imposturas do armário dos Davenport, e elas creem mais
ainda; exibem-se-lhes todos os cordões, fazem-nas tocar a mentira com o dedo,
furam-lhe os olhos pela evidência do charlatanismo e sua crença apenas se torna
mais obstinada. Inexplicável necessidade do impossível! Credo quia absurdum.
O Messager franco-américain, de Nova
Iorque, fala de uma convenção dos adeptos do Espiritismo, que acaba de se
reunir em Providence (Rhode-Island). Homens e mulheres se distinguem por
semblantes do outro mundo; a palidez da pele, a emaciação do rosto, o profético
devaneio dos olhos, perdidos numa vaga oceânica, tais são, em geral, os sinais
exteriores do espírita. Acrescente-se que, contrariamente ao uso geral, as
mulheres cortam curtos os cabelos, à mal-content,
como se dizia outrora, ao passo que os homens têm uma cabeleira abundante,
absalônica, enérgica, descendo até as espáduas. Quando se faz comércio com os
Espíritos, há que se distinguir do comum dos mortais, da vil multidão.
Vários discursos,
muitos discursos foram pronunciados. Os oradores, sem mais preocupação com os
desmentidos da Ciência do que com os do senso comum, imperturbavelmente
lembraram a grande série, que cada um sabe de cor, dos fatos maravilhosos
atribuídos ao Espiritismo.
Sem querer fazer-se
passar por profetiza, a Srta. Susia Johnson declarou que previa estarem
próximos os tempos em que a grande maioria dos homens não mais se rebelará às
místicas revelações da religião nova. Apela com todos os seus votos para a
criação de numerosas escolas, onde as crianças de ambos os sexos sorverão,
desde a mais tenra idade, os ensinamentos do Espiritismo. Só faltava isto!
Sob o título de Sempre os espíritas! O Événement de 26 de agosto de 1866
publicou um longo artigo, do qual extraímos a seguinte passagem:
Fostes alguma vez a
uma reunião de espíritas, numa noite de ociosidade ou de curiosidade?
Geralmente, é um amigo que vos conduz. Sobe-se bastante – os Espíritos gostam
de aproximar-se do céu – para um pequeno apartamento já repleto. Entra-se às
cotoveladas.
Amontoam-se pessoas,
figuras bizarras, de gestos energúmenos. Sufoca-se nessa atmosfera,
comprime-se, inclina-se sobre as mesas onde médiuns, com os olhos no teto,
lápis na mão, escrevem as elucubrações que passam por lá. Há uma surpresa
inicial; procuram entre todas essas pessoas repousar o olhar; interrogam,
adivinham, analisam.
Velhas de olhos ávidos, jovens magros e
fatigados, a promiscuidade das classes e das idades, porteiras da vizinhança e
grandes damas do bairro, chita-da-índia e renda pura, poetisas do acaso e
profetizas de ocasião, alfaiates e laureados do Instituto confraternizam no
Espiritismo. Esperam, fazem girar as mesas, levantam-nas, leem em voz alta as
garatujas que Homero ou Dante ditaram aos médiuns sentados. Esses médiuns estão
imóveis, a mão sobre o papel, sonhando. De repente sua mão se agita, corre,
sacode violentamente, cobre as folhas num vai-e-vem e para bruscamente. Então
alguém, no silêncio, cita o nome do Espírito que acaba de ditar a mensagem e a
lê. Ah! Essas leituras!
Assim, ouvi Cervantes se queixar da demolição
do Teatro das Diversões Cômicas e Lamennais contar que Jean Journet era seu
amigo íntimo no além. A maior parte do tempo Lamennais comete erros de
ortografia e Cervantes não sabe uma palavra de espanhol. Outras vezes os
Espíritos tomam um pseudônimo angélico para deixar a seu público algum aforismo
à maneira de Pantagruel. Protestam. Respondem-lhes: Nós nos queixaremos ao
vosso cabeça de fila!
O médium que traçou
a frase torna-se sombrio e zangado, por estar em relação com Espíritos tão mal-educados. Perguntei a
que legião pertenciam esses mistificadores do outro mundo e me responderam
claramente: – São Espíritos gaiatos!
Sei de coisas mais
amáveis – por exemplo, o Espírito desenhista
que impulsionou a mão de Victorien Sardou, e o fez traçar a imagem da casa onde
Beethoven habita no além. Profusão
de folhagens ornamentais, entrelaçamentos de colcheias e semicolcheias, é um
trabalho de paciência que demandaria meses e que foi feito numa noite. Pelo
menos foi o que me afirmaram. Só o Sr. Sardou poderia convencer-me.
Pobre cérebro
humano! Como estas coisas são dolorosas para contar! Assim, não demos um passo
para o lado da Razão e da Verdade! Ou, no mínimo, o batalhão de preguiçosos
engrossa dia a dia, à medida que se avança! É formidável, é quase um exército.
Sabeis quantas possessas há atualmente
na França?
Mais de duas mil. As
possessas têm sua presidente, a Sra. B... Que, desde a idade de dois anos, vive
em contato direto com a Virgem. Duas mil! O Auvergne guardou seus milagres, as
Cevenas têm sempre os seus Camisards[2].
Os livros de Espiritismo, os tratados de misticismo têm sete, oito, dez
edições. O maravilhoso é mesmo a doença de um tempo que, nada tendo diante do
espírito para se satisfazer, refugia-se nas quimeras, como um estômago
debilitado e privado de carne, que se alimentasse de gengibre.
E o número dos
loucos aumenta! O delírio é como uma onda, que sobe. Que luz se há de buscar,
então, já que a eletricidade é insuficiente para destruir essas trevas?
Jules
Claretie
Realmente seria um erro
irritar-se com tais adversários, pois acreditam de boa-fé e muito ingenuamente
que têm o monopólio do bom-senso. O que é tão divertido quanto os singulares
retratos que fazem dos espíritas, é vê-los gemer dolorosamente por esses pobres
cérebros humanos, que não dão nenhum passo para o lado da razão e da verdade,
porque querem, custe o que custar, ter uma alma e acreditar no outro mundo, a
despeito da eloquência dos incrédulos para provar que isto não existe, para a
felicidade da Humanidade; são seus pesares à vista desses livros espíritas, que
se esgotam sem o concurso de anúncios, reclames e elogios pagos da imprensa; deste batalhão de preguiçosos da razão
que, coisa desesperadora! Engrossa diariamente e se torna tão formidável que é
quase um exército; que nada tendo diante do espírito para os satisfazer, são
bastante tolos para recusar a perspectiva do nada, que lhes oferecem para
encher o vazio. É realmente para desesperar ver esta pobre Humanidade, bastante
ilógica para não achar melhor o nada
em troca de alguma coisa, por preferir reviver
a morrer de vez.
Estas facécias, essas imagens
grotescas, mais divertidas que perigosas, e que seria pueril levar a sério, têm
seu lado instrutivo, razão por que citamos alguns exemplos. Outrora procuravam
combater o Espiritismo com argumentos, sem dúvida maus, pois não convenceram a
ninguém; mas, enfim, bem ou mal, tentavam discutir a coisa; homens de real
valor, oradores e escritores, exploraram o arsenal das objeções para o
combater.
Qual o resultado? Seus livros
foram esquecidos e o Espiritismo está de pé. Eis um fato. Hoje ainda há alguns
zombadores, do quilate dos que acabamos de citar, pouco preocupados com o valor
dos argumentos, para quem rir de tudo é uma necessidade, mas não mais se
discute. A polêmica adversa parece ter esgotado suas munições; os adversários
se contentam em lamentar o progresso do que chamam uma calamidade, como se
queixam do progresso de uma inundação que não se pode deter. Mas as armas
ofensivas para combater a doutrina não deram nenhum passo à frente, e se ainda
não acharam o fuzil engatilhado para o abater, não foi por não o terem
procurado.
Seria trabalho inútil refutar
coisas que se refutam por si mesmas. Às recriminações com que o jornal France faz preceder o burlesco retrato
que toma do jornal americano, só há uma coisa a responder. Se a fé dos
espíritas resiste à revelação dos truques e dos cordões do charlatanismo, é que
isto não é o Espiritismo; se, quanto mais divulgam as manobras fraudulentas,
mais redobra a fé, é que esgrimis para combater precisamente o que desaprova e
ele próprio combate; se não se abalam com vossas demonstrações, é que estais
por fora da questão; se quando feris, o Espiritismo não grita, é que feris na
periferia e então os zombadores não estão por vós. Desmascarando os abusos que
fazem de uma coisa, fortifica-se a própria coisa, como se fortalece a
verdadeira religião estigmatizando os seus abusos. Só os que vivem dos abusos
podem lastimar-se, tanto em Espiritismo quanto em religião.
Contradição mais estranha! Os
que pregam a igualdade social veem, sob o império das crenças espíritas, os
preconceitos de castas se apagarem, as fileiras extremas se reaproximarem, o
grande e o pequeno se darem as mãos fraternalmente, e riem! Na verdade, lendo
estas coisas, pergunta-se de que lado está a aberração.
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