terça-feira, 9 de março de 2021

RETRATO FÍSICO DOS ESPÍRITAS[1]

 

Allan Kardec

 

Lê-se no France de 14 de setembro de 1866:

 

A fé robusta das pessoas que, a despeito de tudo, acreditam em todas as maravilhas, tantas vezes desmentidas, do Espiritismo, é, em verdade, admirável. Mostras-lhes o truque das mesas girantes, e elas creem; desvendam-se-lhes as imposturas do armário dos Davenport, e elas creem mais ainda; exibem-se-lhes todos os cordões, fazem-nas tocar a mentira com o dedo, furam-lhe os olhos pela evidência do charlatanismo e sua crença apenas se torna mais obstinada. Inexplicável necessidade do impossível! Credo quia absurdum.

O Messager franco-américain, de Nova Iorque, fala de uma convenção dos adeptos do Espiritismo, que acaba de se reunir em Providence (Rhode-Island). Homens e mulheres se distinguem por semblantes do outro mundo; a palidez da pele, a emaciação do rosto, o profético devaneio dos olhos, perdidos numa vaga oceânica, tais são, em geral, os sinais exteriores do espírita. Acrescente-se que, contrariamente ao uso geral, as mulheres cortam curtos os cabelos, à mal-content, como se dizia outrora, ao passo que os homens têm uma cabeleira abundante, absalônica, enérgica, descendo até as espáduas. Quando se faz comércio com os Espíritos, há que se distinguir do comum dos mortais, da vil multidão.

Vários discursos, muitos discursos foram pronunciados. Os oradores, sem mais preocupação com os desmentidos da Ciência do que com os do senso comum, imperturbavelmente lembraram a grande série, que cada um sabe de cor, dos fatos maravilhosos atribuídos ao Espiritismo.

Sem querer fazer-se passar por profetiza, a Srta. Susia Johnson declarou que previa estarem próximos os tempos em que a grande maioria dos homens não mais se rebelará às místicas revelações da religião nova. Apela com todos os seus votos para a criação de numerosas escolas, onde as crianças de ambos os sexos sorverão, desde a mais tenra idade, os ensinamentos do Espiritismo. Só faltava isto!

 

Sob o título de Sempre os espíritas! O Événement de 26 de agosto de 1866 publicou um longo artigo, do qual extraímos a seguinte passagem:

 

Fostes alguma vez a uma reunião de espíritas, numa noite de ociosidade ou de curiosidade? Geralmente, é um amigo que vos conduz. Sobe-se bastante – os Espíritos gostam de aproximar-se do céu – para um pequeno apartamento já repleto. Entra-se às cotoveladas.

Amontoam-se pessoas, figuras bizarras, de gestos energúmenos. Sufoca-se nessa atmosfera, comprime-se, inclina-se sobre as mesas onde médiuns, com os olhos no teto, lápis na mão, escrevem as elucubrações que passam por lá. Há uma surpresa inicial; procuram entre todas essas pessoas repousar o olhar; interrogam, adivinham, analisam.

 Velhas de olhos ávidos, jovens magros e fatigados, a promiscuidade das classes e das idades, porteiras da vizinhança e grandes damas do bairro, chita-da-índia e renda pura, poetisas do acaso e profetizas de ocasião, alfaiates e laureados do Instituto confraternizam no Espiritismo. Esperam, fazem girar as mesas, levantam-nas, leem em voz alta as garatujas que Homero ou Dante ditaram aos médiuns sentados. Esses médiuns estão imóveis, a mão sobre o papel, sonhando. De repente sua mão se agita, corre, sacode violentamente, cobre as folhas num vai-e-vem e para bruscamente. Então alguém, no silêncio, cita o nome do Espírito que acaba de ditar a mensagem e a lê. Ah! Essas leituras!

 Assim, ouvi Cervantes se queixar da demolição do Teatro das Diversões Cômicas e Lamennais contar que Jean Journet era seu amigo íntimo no além. A maior parte do tempo Lamennais comete erros de ortografia e Cervantes não sabe uma palavra de espanhol. Outras vezes os Espíritos tomam um pseudônimo angélico para deixar a seu público algum aforismo à maneira de Pantagruel. Protestam. Respondem-lhes: Nós nos queixaremos ao vosso cabeça de fila!

O médium que traçou a frase torna-se sombrio e zangado, por estar em relação com Espíritos tão mal-educados. Perguntei a que legião pertenciam esses mistificadores do outro mundo e me responderam claramente: – São Espíritos gaiatos!

Sei de coisas mais amáveis – por exemplo, o Espírito desenhista que impulsionou a mão de Victorien Sardou, e o fez traçar a imagem da casa onde Beethoven habita no além. Profusão de folhagens ornamentais, entrelaçamentos de colcheias e semicolcheias, é um trabalho de paciência que demandaria meses e que foi feito numa noite. Pelo menos foi o que me afirmaram. Só o Sr. Sardou poderia convencer-me.

Pobre cérebro humano! Como estas coisas são dolorosas para contar! Assim, não demos um passo para o lado da Razão e da Verdade! Ou, no mínimo, o batalhão de preguiçosos engrossa dia a dia, à medida que se avança! É formidável, é quase um exército. Sabeis quantas possessas há atualmente na França?

Mais de duas mil. As possessas têm sua presidente, a Sra. B... Que, desde a idade de dois anos, vive em contato direto com a Virgem. Duas mil! O Auvergne guardou seus milagres, as Cevenas têm sempre os seus Camisards[2]. Os livros de Espiritismo, os tratados de misticismo têm sete, oito, dez edições. O maravilhoso é mesmo a doença de um tempo que, nada tendo diante do espírito para se satisfazer, refugia-se nas quimeras, como um estômago debilitado e privado de carne, que se alimentasse de gengibre.

E o número dos loucos aumenta! O delírio é como uma onda, que sobe. Que luz se há de buscar, então, já que a eletricidade é insuficiente para destruir essas trevas?

Jules Claretie

 

Realmente seria um erro irritar-se com tais adversários, pois acreditam de boa-fé e muito ingenuamente que têm o monopólio do bom-senso. O que é tão divertido quanto os singulares retratos que fazem dos espíritas, é vê-los gemer dolorosamente por esses pobres cérebros humanos, que não dão nenhum passo para o lado da razão e da verdade, porque querem, custe o que custar, ter uma alma e acreditar no outro mundo, a despeito da eloquência dos incrédulos para provar que isto não existe, para a felicidade da Humanidade; são seus pesares à vista desses livros espíritas, que se esgotam sem o concurso de anúncios, reclames e elogios pagos da imprensa; deste batalhão de preguiçosos da razão que, coisa desesperadora! Engrossa diariamente e se torna tão formidável que é quase um exército; que nada tendo diante do espírito para os satisfazer, são bastante tolos para recusar a perspectiva do nada, que lhes oferecem para encher o vazio. É realmente para desesperar ver esta pobre Humanidade, bastante ilógica para não achar melhor o nada em troca de alguma coisa, por preferir reviver a morrer de vez.

Estas facécias, essas imagens grotescas, mais divertidas que perigosas, e que seria pueril levar a sério, têm seu lado instrutivo, razão por que citamos alguns exemplos. Outrora procuravam combater o Espiritismo com argumentos, sem dúvida maus, pois não convenceram a ninguém; mas, enfim, bem ou mal, tentavam discutir a coisa; homens de real valor, oradores e escritores, exploraram o arsenal das objeções para o combater.

Qual o resultado? Seus livros foram esquecidos e o Espiritismo está de pé. Eis um fato. Hoje ainda há alguns zombadores, do quilate dos que acabamos de citar, pouco preocupados com o valor dos argumentos, para quem rir de tudo é uma necessidade, mas não mais se discute. A polêmica adversa parece ter esgotado suas munições; os adversários se contentam em lamentar o progresso do que chamam uma calamidade, como se queixam do progresso de uma inundação que não se pode deter. Mas as armas ofensivas para combater a doutrina não deram nenhum passo à frente, e se ainda não acharam o fuzil engatilhado para o abater, não foi por não o terem procurado.

Seria trabalho inútil refutar coisas que se refutam por si mesmas. Às recriminações com que o jornal France faz preceder o burlesco retrato que toma do jornal americano, só há uma coisa a responder. Se a fé dos espíritas resiste à revelação dos truques e dos cordões do charlatanismo, é que isto não é o Espiritismo; se, quanto mais divulgam as manobras fraudulentas, mais redobra a fé, é que esgrimis para combater precisamente o que desaprova e ele próprio combate; se não se abalam com vossas demonstrações, é que estais por fora da questão; se quando feris, o Espiritismo não grita, é que feris na periferia e então os zombadores não estão por vós. Desmascarando os abusos que fazem de uma coisa, fortifica-se a própria coisa, como se fortalece a verdadeira religião estigmatizando os seus abusos. Só os que vivem dos abusos podem lastimar-se, tanto em Espiritismo quanto em religião.

Contradição mais estranha! Os que pregam a igualdade social veem, sob o império das crenças espíritas, os preconceitos de castas se apagarem, as fileiras extremas se reaproximarem, o grande e o pequeno se darem as mãos fraternalmente, e riem! Na verdade, lendo estas coisas, pergunta-se de que lado está a aberração.



[1] Revista Espírita – Janeiro/1867 – Allan Kardec

[2] N. do T.: Grifo nosso. Calvinistas das Cevenas (Cevennes) que se rebelaram durante as perseguições que se seguiram à revogação do Edito de Nantes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário