Allan Kardec
Vários assinantes lamentaram não
ter encontrado, em nossa Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, uma prece
especial da manhã e da noite, para uso habitual.
Faremos notar que as preces
contidas nessa obra não constituem um formulário que, para ser completo,
deveria encerrar um número bem maior. Elas fazem parte das comunicações dadas pelos
Espíritos; nós as reunimos no capítulo consagrado ao exame da prece, como
agregamos a cada um dos outros capítulos as comunicações que lhes diziam
respeito. Omitindo intencionalmente as da manhã e da noite, quisemos evitar que
nossa obra tivesse um caráter litúrgico, razão por que nos limitamos às que têm
relação mais direta com o Espiritismo, de modo que cada um poderá encontrar as
outras entre as de seu culto particular. Todavia, para anuir ao desejo que nos
é expresso, damos a seguir a que nos parece responder melhor ao objetivo que se
propõe. Contudo a faremos preceder de algumas observações, para que melhor se
compreenda o seu alcance.
Na Imitação, no 274, ressaltamos
a necessidade das preces inteligíveis. Aquele que ora sem compreender o que
diz, habitua-se a ligar mais valor às palavras do que aos pensamentos; para ele
as palavras é que são eficazes, mesmo que o coração em nada tome parte. Assim,
muitos se julgam desobrigados depois de recitarem algumas palavras que os
dispensam de se reformarem. É fazer da Divindade uma ideia estranha acreditar
que ela se deixe pagar por palavras em vez de atos, que atestam uma melhora
moral.
Eis, a respeito, a opinião de
São Paulo:
Se
eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro para aquele que
fala; e ele, estrangeiro para mim. – Porque, se eu orar em outra língua, o meu
espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. – E se tu bendisseres
apenas em espírito, como dirá o indouto o amém depois da tua ação de graças? Visto
que não entende o que dizes. – Porque tu, de fato, dás bem as graças, mas o
outro não é edificado[2].
É impossível condenar de maneira
mais formal e mais lógica o uso das preces ininteligíveis. É de admirar-se que
se haja levado em tão pouca conta a autoridade de São Paulo sobre este ponto,
quando, sobre outros, é tantas vezes invocada. Outro tanto se poderia dizer da
maioria dos escritores sacros, considerados como luzes da Igreja, cujos
preceitos estão longe de ser postos em prática.
Uma condição essencial da prece
é, pois, segundo São Paulo, ser inteligível, a fim de que possa falar ao nosso
espírito. Para isto não basta que seja dita em língua compreensível para aquele
que ora; há preces em língua vulgar que não dizem muito mais ao pensamento do
que se o fossem em língua estranha, e que, por isso mesmo, não vão ao coração;
as raras ideias que encerram muitas vezes são abafadas pela superabundância de
palavras e pelo misticismo da linguagem.
A principal qualidade da prece é
ser clara, simples e concisa, sem fraseologia inútil, nem luxo de epítetos, que
não passam de falsos adereços; cada palavra deve ter o seu alcance, despertar
um pensamento, agitar uma fibra; numa palavra, deve fazer refletir; só com esta
condição a prece pode atingir o seu objetivo, do contrário não passa de ruído.
Observai, também, com que ar distraído e com que volubilidade elas são ditas na
maior parte do tempo. Veem-se os lábios se movendo, mas, pela expressão da
fisionomia e pelo tom da voz se reconhece um ato maquinal, puramente exterior,
ao qual a alma fica indiferente. O mais perfeito modelo de concisão em matéria
de prece é, indubitavelmente, a Oração dominical, verdadeira obra-prima de
sublimidade na sua simplicidade; sob a mais restrita forma, ela resume todos os
deveres do homem para com Deus, para consigo mesmo e para com o próximo.
Contudo, em razão de sua própria brevidade, o sentido profundo, encerrado nas
poucas palavras de que se compõe, escapa à maioria; os comentários feitos a
respeito nem sempre estão presentes à memória, ou, mesmo, são desconhecidos
pela maioria. Eis por que geralmente a dizem sem digerir o pensamento sobre as
aplicações de cada uma de suas partes. Dizem-na como uma fórmula, cuja eficácia
é proporcional ao número de vezes que é repetida. Ora, é quase sempre um dos números
cabalísticos três, sete ou nove, tirados da antiga crença na virtude dos
números, e ainda em uso nas operações de magia.
Pensai ou não no que dizeis, mas
repeti a prece tantas vezes, que isto basta. Enquanto o Espiritismo repele
expressamente toda eficácia atribuída às palavras, aos sinais e às fórmulas, a
Igreja se intromete indevidamente ao acusá-lo de ressuscitar as velhas crenças
supersticiosas.
Todas as religiões antigas e
pagãs tiveram sua língua sagrada, língua misteriosa, inteligível apenas aos
iniciados, mas cujo sentido verdadeiro era oculto ao vulgo, que a respeitava
tanto mais quanto menos a compreendia. Isto podia ser aceito na época da infância
intelectual das massas; mas hoje, que estão espiritualmente emancipadas, as
línguas místicas não têm mais razão de ser e constituem um anacronismo; querem
ver tão claro nas coisas da religião quanto nas da vida civil; não se pede mais
para crer e orar, mas se quer saber por que se crê e o que se pede orando.
O latim, de uso habitual nos
primeiros tempos do Cristianismo, tornou-se para a Igreja a língua sagrada, e é
por um resquício do antigo prestígio ligado a essas línguas, que a maioria dos
que não o sabem recitam a oração dominical nessa língua, em vez de na sua
própria. Dir-se-ia que ligam a isto tanto mais virtude quanto menos a
compreendem. Por certo, não foi essa a intenção de Jesus quando a ditou, e tal
não foi, igualmente, a de São Paulo, quando disse:
Se
eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica
infrutífera.
Ainda se, por falta de inteligência,
o coração orasse sempre, haveria apenas um mal menor; infelizmente, muitas
vezes o coração não ora mais que o espírito. Se o coração realmente orasse, não
se veria tanta gente, entre os que rezam muito, aproveitar tão pouco, não ser
nem mais benevolente, nem mais caridosa, nem menos maledicente para com o
próximo.
Feita esta ressalva, diremos que
a melhor prece da manhã e da noite é, sem sombra de dúvida, a Oração dominical,
dita com inteligência, de coração e não de lábios. Mas, para suprir o vácuo que
a sua concisão deixa no pensamento, a ela acrescentamos, a conselho e com a
assistência dos Espíritos bons, um desenvolvimento a cada proposição.
Conforme as circunstâncias e o
tempo disponível, pode, pois, dizer-se a Oração dominical simples ou com os comentários.
Também se podem acrescentar algumas das preces contidas na Imitação do
Evangelho, tomadas entre as que não tenham um objetivo especial, por exemplo: a
prece aos anjos-da-guarda e aos Espíritos protetores, no 293; aquela para
afastar os Espíritos maus, no 297; para as pessoas que nos foram afeiçoadas, no
358; para as almas sofredoras que pedem preces, no 360, etc. Fique entendido
que é sem prejuízo das preces especiais do culto ao qual se pertence por
convicção, e ao qual o Espiritismo não manda renunciar.
Aos que nos pedem uma linha de
conduta a seguir no que concerne às preces cotidianas, aconselhamos cada um a
fazer sua própria coletânea, apropriada às circunstâncias em que se encontram,
para si, para outrem ou para os que deixaram a Terra; de desenvolvê-las ou restringi-las,
conforme a oportunidade.
Uma vez por semana, por exemplo,
no domingo, pode-se consagrar a elas um tempo mais longo e dizer todas, seja em
particular, seja em comum, se houver lugar, acrescentando algumas passagens da
Imitação do Evangelho e a de algumas boas instruções, ditadas pelos Espíritos.
Isto se dirige mais especialmente às pessoas repelidas pela Igreja por causa do
Espiritismo, as quais se sentem, por isto mesmo, mais necessitadas de se unirem
a Deus pelo pensamento.
Mas, salvo este caso, nada
impede que os crentes, nos dias consagrados às cerimônias de seu culto, ali
digam algumas das preces relacionadas com as crenças espíritas, ao mesmo tempo
em que profere as suas. Isto não pode senão contribuir para elevar sua alma a
Deus pela união do pensamento e das palavras. O Espiritismo é uma fé íntima;
está no coração, e não nos atos exteriores; não impõe nenhuma que seja
susceptível de escandalizar os que não partilham dessa crença; ao contrário,
recomenda a sua abstenção, por espírito de caridade e de tolerância.
Em consideração e como aplicação
das ideias precedentes, damos a seguir a Oração dominical desenvolvida. Se algumas
pessoas julgassem que não era aqui o lugar para um documento desta natureza,
nós lhes lembraríamos de que nossa Revista não é somente uma compilação de
fatos, e que seu campo de ação abrange tudo quanto possa ajudar o
desenvolvimento moral. Houve um tempo em que os casos de manifestações eram os
únicos a interessar os leitores; mas hoje, que o objetivo sério e moralizador
do Espiritismo é compreendido e apreciado, a maioria dos adeptos ali procura
mais o que toca o coração do que o que agrada o espírito. É, pois, a estes, que
nos dirigimos nesta circunstância. Por esta publicação, sabemos ser agradável a
um grande número, se não a todos. Só isto nos moveu, se outras considerações,
sobre as quais devemos guardar silêncio, não nos tivessem determinado a fazê-lo
neste momento, e não em outro.
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