terça-feira, 3 de novembro de 2020

SUPLEMENTO AO CAPÍTULO DAS PRECES DA IMITAÇÃO DO EVANGELHO (EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO) [1]

 


Allan Kardec

 

Vários assinantes lamentaram não ter encontrado, em nossa Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, uma prece especial da manhã e da noite, para uso habitual.

Faremos notar que as preces contidas nessa obra não constituem um formulário que, para ser completo, deveria encerrar um número bem maior. Elas fazem parte das comunicações dadas pelos Espíritos; nós as reunimos no capítulo consagrado ao exame da prece, como agregamos a cada um dos outros capítulos as comunicações que lhes diziam respeito. Omitindo intencionalmente as da manhã e da noite, quisemos evitar que nossa obra tivesse um caráter litúrgico, razão por que nos limitamos às que têm relação mais direta com o Espiritismo, de modo que cada um poderá encontrar as outras entre as de seu culto particular. Todavia, para anuir ao desejo que nos é expresso, damos a seguir a que nos parece responder melhor ao objetivo que se propõe. Contudo a faremos preceder de algumas observações, para que melhor se compreenda o seu alcance.

Na Imitação, no 274, ressaltamos a necessidade das preces inteligíveis. Aquele que ora sem compreender o que diz, habitua-se a ligar mais valor às palavras do que aos pensamentos; para ele as palavras é que são eficazes, mesmo que o coração em nada tome parte. Assim, muitos se julgam desobrigados depois de recitarem algumas palavras que os dispensam de se reformarem. É fazer da Divindade uma ideia estranha acreditar que ela se deixe pagar por palavras em vez de atos, que atestam uma melhora moral.

Eis, a respeito, a opinião de São Paulo:

Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro para aquele que fala; e ele, estrangeiro para mim. – Porque, se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. – E se tu bendisseres apenas em espírito, como dirá o indouto o amém depois da tua ação de graças? Visto que não entende o que dizes. – Porque tu, de fato, dás bem as graças, mas o outro não é edificado[2].

 

É impossível condenar de maneira mais formal e mais lógica o uso das preces ininteligíveis. É de admirar-se que se haja levado em tão pouca conta a autoridade de São Paulo sobre este ponto, quando, sobre outros, é tantas vezes invocada. Outro tanto se poderia dizer da maioria dos escritores sacros, considerados como luzes da Igreja, cujos preceitos estão longe de ser postos em prática.

Uma condição essencial da prece é, pois, segundo São Paulo, ser inteligível, a fim de que possa falar ao nosso espírito. Para isto não basta que seja dita em língua compreensível para aquele que ora; há preces em língua vulgar que não dizem muito mais ao pensamento do que se o fossem em língua estranha, e que, por isso mesmo, não vão ao coração; as raras ideias que encerram muitas vezes são abafadas pela superabundância de palavras e pelo misticismo da linguagem.

A principal qualidade da prece é ser clara, simples e concisa, sem fraseologia inútil, nem luxo de epítetos, que não passam de falsos adereços; cada palavra deve ter o seu alcance, despertar um pensamento, agitar uma fibra; numa palavra, deve fazer refletir; só com esta condição a prece pode atingir o seu objetivo, do contrário não passa de ruído. Observai, também, com que ar distraído e com que volubilidade elas são ditas na maior parte do tempo. Veem-se os lábios se movendo, mas, pela expressão da fisionomia e pelo tom da voz se reconhece um ato maquinal, puramente exterior, ao qual a alma fica indiferente. O mais perfeito modelo de concisão em matéria de prece é, indubitavelmente, a Oração dominical, verdadeira obra-prima de sublimidade na sua simplicidade; sob a mais restrita forma, ela resume todos os deveres do homem para com Deus, para consigo mesmo e para com o próximo. Contudo, em razão de sua própria brevidade, o sentido profundo, encerrado nas poucas palavras de que se compõe, escapa à maioria; os comentários feitos a respeito nem sempre estão presentes à memória, ou, mesmo, são desconhecidos pela maioria. Eis por que geralmente a dizem sem digerir o pensamento sobre as aplicações de cada uma de suas partes. Dizem-na como uma fórmula, cuja eficácia é proporcional ao número de vezes que é repetida. Ora, é quase sempre um dos números cabalísticos três, sete ou nove, tirados da antiga crença na virtude dos números, e ainda em uso nas operações de magia.

Pensai ou não no que dizeis, mas repeti a prece tantas vezes, que isto basta. Enquanto o Espiritismo repele expressamente toda eficácia atribuída às palavras, aos sinais e às fórmulas, a Igreja se intromete indevidamente ao acusá-lo de ressuscitar as velhas crenças supersticiosas.

Todas as religiões antigas e pagãs tiveram sua língua sagrada, língua misteriosa, inteligível apenas aos iniciados, mas cujo sentido verdadeiro era oculto ao vulgo, que a respeitava tanto mais quanto menos a compreendia. Isto podia ser aceito na época da infância intelectual das massas; mas hoje, que estão espiritualmente emancipadas, as línguas místicas não têm mais razão de ser e constituem um anacronismo; querem ver tão claro nas coisas da religião quanto nas da vida civil; não se pede mais para crer e orar, mas se quer saber por que se crê e o que se pede orando.

O latim, de uso habitual nos primeiros tempos do Cristianismo, tornou-se para a Igreja a língua sagrada, e é por um resquício do antigo prestígio ligado a essas línguas, que a maioria dos que não o sabem recitam a oração dominical nessa língua, em vez de na sua própria. Dir-se-ia que ligam a isto tanto mais virtude quanto menos a compreendem. Por certo, não foi essa a intenção de Jesus quando a ditou, e tal não foi, igualmente, a de São Paulo, quando disse:

 

Se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera.

 

Ainda se, por falta de inteligência, o coração orasse sempre, haveria apenas um mal menor; infelizmente, muitas vezes o coração não ora mais que o espírito. Se o coração realmente orasse, não se veria tanta gente, entre os que rezam muito, aproveitar tão pouco, não ser nem mais benevolente, nem mais caridosa, nem menos maledicente para com o próximo.

Feita esta ressalva, diremos que a melhor prece da manhã e da noite é, sem sombra de dúvida, a Oração dominical, dita com inteligência, de coração e não de lábios. Mas, para suprir o vácuo que a sua concisão deixa no pensamento, a ela acrescentamos, a conselho e com a assistência dos Espíritos bons, um desenvolvimento a cada proposição.

Conforme as circunstâncias e o tempo disponível, pode, pois, dizer-se a Oração dominical simples ou com os comentários. Também se podem acrescentar algumas das preces contidas na Imitação do Evangelho, tomadas entre as que não tenham um objetivo especial, por exemplo: a prece aos anjos-da-guarda e aos Espíritos protetores, no 293; aquela para afastar os Espíritos maus, no 297; para as pessoas que nos foram afeiçoadas, no 358; para as almas sofredoras que pedem preces, no 360, etc. Fique entendido que é sem prejuízo das preces especiais do culto ao qual se pertence por convicção, e ao qual o Espiritismo não manda renunciar.

Aos que nos pedem uma linha de conduta a seguir no que concerne às preces cotidianas, aconselhamos cada um a fazer sua própria coletânea, apropriada às circunstâncias em que se encontram, para si, para outrem ou para os que deixaram a Terra; de desenvolvê-las ou restringi-las, conforme a oportunidade.

Uma vez por semana, por exemplo, no domingo, pode-se consagrar a elas um tempo mais longo e dizer todas, seja em particular, seja em comum, se houver lugar, acrescentando algumas passagens da Imitação do Evangelho e a de algumas boas instruções, ditadas pelos Espíritos. Isto se dirige mais especialmente às pessoas repelidas pela Igreja por causa do Espiritismo, as quais se sentem, por isto mesmo, mais necessitadas de se unirem a Deus pelo pensamento.

Mas, salvo este caso, nada impede que os crentes, nos dias consagrados às cerimônias de seu culto, ali digam algumas das preces relacionadas com as crenças espíritas, ao mesmo tempo em que profere as suas. Isto não pode senão contribuir para elevar sua alma a Deus pela união do pensamento e das palavras. O Espiritismo é uma fé íntima; está no coração, e não nos atos exteriores; não impõe nenhuma que seja susceptível de escandalizar os que não partilham dessa crença; ao contrário, recomenda a sua abstenção, por espírito de caridade e de tolerância.

Em consideração e como aplicação das ideias precedentes, damos a seguir a Oração dominical desenvolvida. Se algumas pessoas julgassem que não era aqui o lugar para um documento desta natureza, nós lhes lembraríamos de que nossa Revista não é somente uma compilação de fatos, e que seu campo de ação abrange tudo quanto possa ajudar o desenvolvimento moral. Houve um tempo em que os casos de manifestações eram os únicos a interessar os leitores; mas hoje, que o objetivo sério e moralizador do Espiritismo é compreendido e apreciado, a maioria dos adeptos ali procura mais o que toca o coração do que o que agrada o espírito. É, pois, a estes, que nos dirigimos nesta circunstância. Por esta publicação, sabemos ser agradável a um grande número, se não a todos. Só isto nos moveu, se outras considerações, sobre as quais devemos guardar silêncio, não nos tivessem determinado a fazê-lo neste momento, e não em outro.



[1] Revista Espírita – Agosto/1864 – Allan Kardec.

[2] São Paulo, 1a Epístola aos Coríntios, capítulo 14, versículos, 11, 14, 16 e 17.

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