Zaria Gorvett - BBC Future - 15 agosto 2020
Tudo começou com uma cabra. O
desafortunado animal nasceu na Holanda na primavera de 1939 – e suas
perspectivas não eram nada boas. Não tinha uma das patas da frente, e a outra
era deformada. Ou seja, se locomover seria mais difícil. Mas, quando tinha três
meses, a cabra foi adotada por um instituto veterinário e se mudou para um
campo gramado. Lá, desenvolveu rapidamente seu estilo próprio (e peculiar) de
se locomover. Ela se apoiava nas patas traseiras para erguer o corpo e pulava –
o resultado era algo entre o salto de uma lebre e um canguru.
Infelizmente, a cabra se
envolveu em um acidente e morreu quando tinha um ano. Mas havia algo
surpreendente escondido em seu esqueleto.
Durante séculos, os cientistas
acreditaram que nossos ossos cresciam de maneira previsível, de acordo com as
instruções genéticas herdadas de nossos pais.
Mas quando um especialista em
anatomia holandês investigou o esqueleto dessa cabra, descobriu que seus ossos
haviam começado a se adaptar. Os ossos do quadril e das patas eram mais grossos
do que o esperado – e estavam anormalmente angulados, para permitir uma postura
mais ereta. Da mesma forma, os ossos do tornozelo estavam esticados. Em outras
palavras, a estrutura óssea da cabra começou a se parecer muito com a dos
animais que saltam.
Hoje se sabe que nossos
esqueletos são surpreendentemente maleáveis.
Embora os esqueletos em
exposição nos museus possam dar a impressão contrária, os ossos sob a nossa
pele estão muito vivos – são rosados pelo fluxo sanguíneo, e estão em processo
de destruição e reconstrução constante. Portanto, embora o esqueleto de cada
indivíduo se desenvolva de acordo com as instruções genéticas em seu DNA, ele
pode se adaptar de acordo com as pressões que cada pessoa enfrenta na vida.
Esta constatação levou a uma
disciplina conhecida como "osteobiografia" – literalmente,
"biografia dos ossos" – que permite analisar um esqueleto para
descobrir como o dono vivia. E se baseia no fato de que certas atividades, como
andar sobre duas pernas, deixam uma marca, como ossos do quadril mais
resistentes.
E estudos recentes parecem não
deixar dúvida de que a vida moderna está tendo um impacto em nossos ossos. Há
vários exemplos – como a aparição de uma protuberância na base do crânio de
algumas pessoas, a percepção de que nossas mandíbulas estão ficando menores e a
constatação de que os cotovelos de jovens alemães estão mais estreitos do que
nunca.
Um bom exemplo de osteobiografia
é o mistério dos “homens fortes” de Guam e das Ilhas Marianas. Tudo começou com
a descoberta de um esqueleto masculino na ilha de Tinian, a 2.560 km a leste
das Filipinas, no Oceano Pacífico, em 1924.
Os restos mortais, datados do
século 17 ou 18, eram gigantescos. E sugeriam que se tratava de um homem
extraordinariamente forte e alto.
A descoberta alimentava as
lendas locais sobre antigos governantes de proporções enormes, capazes de
feitos heroicos. Não foi à toa que os arqueólogos chamaram o esqueleto de
Taotao Tagga – "homem de Tagga" – em referência ao famoso líder
mitológico da ilha, Taga, que era conhecido por sua força sobre-humana.
À medida que outras sepulturas
foram descobertas, ficou claro que o homem de Tagga não era uma exceção. Tinian
e as ilhas vizinhas haviam abrigado, de fato, uma população de homens
extraordinariamente fortes. Mas de onde vinha essa força?
Por acaso, os restos mortais
destes homens costumavam ser encontrados ao lado da resposta. No caso de Tagga,
ele havia sido enterrado entre 12 imponentes pilares esculpidos em pedra, que
originalmente teriam sustentado sua casa.
Um exame mais detalhado do seu
esqueleto e dos outros revelou características ósseas semelhantes à da
população do arquipélago de Tonga, no Pacífico Sul, onde as pessoas fazem
muitos trabalhos braçais e construções em pedra.
A maior casa na ilha tinha
pilares de 5 metros de altura, e cada um pesava quase 13 toneladas –
aproximadamente o mesmo que dois elefantes africanos adultos.
Não se tratava então de uma
misteriosa etnia de gigantes musculosos. Aqueles homens desenvolveram seus
imponentes corpos trabalhando duro.
Se usarem no futuro uma técnica
similar para analisar como as pessoas viviam em 2020, os cientistas também vão
encontrar mudanças em nossos esqueletos que refletem nossos estilos de vida.
"Sou clínico-geral há 20
anos e, apenas na última década, observei que cada vez mais pacientes têm esse
aumento no crânio", diz David Shahar, pesquisador da Universidade de
Sunshine Coast, na Austrália.
O nódulo ósseo em questão,
também conhecido como "protuberância occipital externa", é encontrado
na parte inferior do crânio, logo acima do pescoço. Se você tiver um, é
provável que consiga senti-lo com os dedos – ou, se for careca, pode até ser
visível.
Até recentemente, esse tipo de
protuberância era extremamente raro. Em 1885, quando o nódulo ósseo foi
investigado pela primeira vez, o renomado cientista francês Paul Broca achou
tão esquisito que sequer tinha um termo científico para tal.
Mas Shahar decidiu investigar.
Com a ajuda de um colega, ele analisou mais de mil radiografias de crânios de
indivíduos entre 18 e 86 anos – mediu eventuais protuberâncias e observou a
postura de cada um deles.
O que os cientistas descobriram
foi impressionante. A protuberância era muito mais comum do que eles imaginavam
– principalmente entre os mais jovens. A pesquisa mostrou que uma em cada
quatro pessoas entre 18 e 30 anos tinha o nódulo ósseo.
Shahar acredita que a presença
cada vez maior desta protuberância se deve à tecnologia, particularmente à
nossa obsessão por smartphones e tablets.
Pescoço tecnológico
Quando nos debruçamos sobre
esses dispositivos, erguemos o pescoço e inclinamos a cabeça para frente. E
isso é problemático, uma vez que a nossa cabeça pesa em média cerca de 4,5 kg –
quase o mesmo que uma melancia grande.
Quando estamos sentados com a
postura ereta, a cabeça está em equilíbrio sobre a parte superior da nossa
coluna vertebral. Mas, à medida que nos inclinamos para usar o celular, nosso
pescoço precisa fazer um esforço maior. Os médicos chamam a dor associada a
esse esforço de "text neck" (também conhecida como síndrome do
pescoço de texto ou do pescoço tecnológico).
Shahar diz acreditar que os
nódulos se formam porque a postura curvada gera uma pressão extra no local onde
os músculos do pescoço se ligam ao crânio. E o corpo reage criando uma nova
camada de osso, que ajuda o crânio a lidar com esta pressão extra e a
distribuir o peso.
Uma das maiores surpresas para
Shahar foi o tamanho das protuberâncias. Os nódulos maiores mediam cerca de 30
mm.
Evidentemente, a má postura não
é uma invenção do século 21. Mas então por que nossos antepassados não
desenvolveram protuberâncias no crânio ao se curvar para ler livros? Uma
possível explicação é que passamos muito mais tempo inclinados sobre nossos
smartphones, do que uma pessoa passaria lendo.
Por exemplo, em 1973 os americanos
liam em média cerca de duas horas por dia. Hoje, no entanto, passamos quase o
dobro desse tempo no celular.
Curiosamente, os homens fortes
das ilhas Mariana também tinham protuberâncias no crânio.
Acredita-se que seus nódulos
ósseos tenham se desenvolvido por uma razão semelhante – para suportar o peso
sobre os músculos do ombro e do pescoço. Esses homens teriam carregado muito
peso, por meio de bastões sobre os ombros.
Shahar acredita que as
protuberâncias modernas nunca desaparecerão. E, na visão dele, vão ficar cada
vez maiores. Segundo ele, é raro que causem complicações por si só. Se houver
algum problema, provavelmente será causado por outras maneiras como o corpo
compensa nossa postura curvada.
Na Alemanha, cientistas fizeram
outra descoberta surpreendente: nossos cotovelos estão encolhendo. Christiane
Scheffler, antropóloga da Universidade de Potsdam, estudava medidas corporais
de crianças em idade escolar quando observou essa tendência.
Para medir exatamente o quanto
seus esqueletos haviam mudado ao longo do tempo, Scheffler analisou quão forte
(ou “ossudas”) as crianças eram entre 1999 e 2009. Para tal, calculou seu
Índice de Estrutura, que é como a estatura se compara à largura dos cotovelos. Em
seguida, comparou os resultados com um estudo similar realizado 10 anos antes.
A conclusão foi que os esqueletos das crianças estavam se tornando cada vez
mais frágeis. Scheffler pensou, a princípio, que a explicação poderia ser
genética, mas é difícil de ver como o DNA de uma população pode mudar tanto em
apenas 10 anos.
A segunda hipótese era que as
crianças poderiam estar sofrendo de má nutrição, mas isso não é um problema na
Alemanha.
A terceira explicação possível
era que a juventude de hoje é muito mais sedentária.
Para descobrir, Scheffler conduziu
um novo estudo – em parceria com alguns colegas desta vez – em que analisou os
hábitos diários das crianças, que também usaram um contador de passos durante
uma semana. Os cientistas encontraram uma forte correlação entre a robustez dos
esqueletos das crianças e o quanto caminhavam por dia.
É sabido que toda vez que usamos
nossos músculos, ajudamos a aumentar a massa dos ossos que os sustentam. "Se
você usa os músculos repetidamente, isso gera mais tecido ósseo, que se traduz
em ossos mais densos e com maior circunferência", explica Scheffler.
Além disso, os cotovelos
encolhidos das crianças parecem uma adaptação direta à vida moderna, já que não
faz sentido cultivar ossos dos quais você não precisa.
Mas havia outra questão
intrigante no resultado o estudo: caminhar era o único tipo de exercício que
parecia ter algum impacto. Scheffler acredita que isso se deve ao fato de que
mesmo as crianças mais atléticas dedicam muito pouco tempo à prática de
exercícios físicos. "Não ajuda que sua mãe te leve de carro para praticar
uma ou duas horas de exercício por semana", diz ela.
E, embora não tenha sido
estudado, é provável que a mesma regra se aplique aos adultos: não basta
simplesmente ir à academia duas vezes por semana sem também caminhar longas
distâncias. "Porque nossa evolução indica que podemos caminhar quase 30 km
por dia."
A última surpresa escondida em
nossos ossos pode ter centenas de anos, mas foi descoberta recentemente.
Em 2011, Noreen von
Cramon-Taubadel, pesquisadora da Universidade Estadual de Nova York, nos EUA,
estava estudando crânios. Como antropóloga, ela queria saber se era possível
deduzir de onde um crânio vem apenas observando seu formato. Para isso, ela
mediu cuidadosamente crânios encontrados em museus de diferentes países para
compará-los. E descobriu que o formato da mandíbula não dependia tanto da
genética, mas se a pessoa havia crescido em uma comunidade agrícola ou de
caçadores-coletores.
Cramon-Taubadel acredita que o
segredo da diferença nas mandíbulas está no quanto mastigamos à medida que
crescemos. “Se você pensar na ortodontia, a razão pela qual o tratamento é
feito em adolescentes, é porque seus ossos ainda estão crescendo", diz
ela. "Os ossos ainda são maleáveis nessa idade e respondem a diferentes
pressões."
Nas sociedades agrícolas, a
comida é mais macia e pode ser ingerida sem necessidade de mastigar muito. E
mastigar menos resulta em músculos mais fracos, o que significa que nossas
mandíbulas não se desenvolvem de forma tão robusta.
É possível que a amamentação
seja outro fator importante, uma vez que sua duração varia muito – e determina
quando as crianças começam a mastigar alimentos mais sólidos.
Cramon-Taubadel afirma que o
impacto da mastigação na mandíbula é bastante sutil a olho nu. É mais provável
que se apresente nos dentes. "Especialmente nas populações
pós-industriais, é muito mais provável que haja problemas dentários – como
dentes tortos ou desalinhados por falta de espaço" acrescenta.
"As pesquisas mostram que
adotar uma dieta um pouco mais dura biomecanicamente, principalmente no caso de
crianças, pode ser útil para neutralizar parte do desequilíbrio entre a maneira
como nossos dentes crescem e se desenvolvem".
Mas esta história tem uma
reviravolta inesperada.
A mudanças nas nossas mandíbulas
e dentes parecem ter tido um efeito inesperado e positivo na maneira como
falamos. Um estudo recente mostrou que, à medida que as sociedades descobriram
a agricultura no período neolítico, há cerca de 12 mil anos, as mudanças na
mandíbula podem ter permitido pronunciar novos sons, como de "v" e
"f".
Naquela época, os incisivos
superiores (dentes superiores da frente) se encontravam exatamente sobre os
inferiores, em vez de cobri-los como atualmente.
Para ter uma ideia de como era a
mandíbula no período neolítico, empurre sua mandíbula inferior para frente, até
os dentes inferiores tocarem os superiores, e tente dizer “filé” ou
"Veneza".
O que será que os arqueólogos do
futuro vão encontrar quando examinarem nossos esqueletos de dentro de suas
naves espaciais?
Se não tomarmos cuidado, nossos
ossos podem revelar uma alimentação pouco saudável, níveis impressionantes de
sedentarismo e uma dependência mórbida da tecnologia.
Talvez seja melhor ser cremado.
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