Allan Kardec
(Paris, abril de 1866 – Médium: Sra. D...)
Há uma verdade incontestável:
Deus não altera nem suspende para ninguém
o curso das leis que regem o Universo. Sem isto a ordem da Natureza seria
incessantemente perturbada pelo capricho do primeiro que chegasse. É, pois,
certo que toda prece que não pudesse ser atendida senão por uma derrogação
destas leis ficaria sem efeito. Tal seria, por exemplo, a que tivesse por
objetivo a volta à vida de um homem realmente morto, ou o restabelecimento da
saúde se a desordem do organismo é irremediável.
Não é menos certo que nenhuma
atenção é dada aos pedidos fúteis ou inconsiderados. Mas ficai persuadidos de
que toda prece pura e desinteressada é ouvida e que é sempre levada em conta a
intenção, mesmo quando Deus, em sua sabedoria, julgasse a propósito não a
atender; é sobretudo então que deveis dar prova de humildade e de submissão à
sua vontade, dizendo a vós mesmos que melhor do que vós ele sabe o que vos pode
ser útil.
Há, sem dúvida, leis gerais a
que o homem está fatalmente submetido; mas é erro crer que as menores circunstâncias
da vida estejam fixadas de antemão de maneira irrevogável; se assim fosse, o
homem seria uma máquina sem iniciativa e, por conseguinte, sem
responsabilidade. O livre-arbítrio é uma das prerrogativas do homem; desde que
é livre para ir à direita ou à esquerda, de agir conforme as circunstâncias,
seus movimentos não são regulados como os de uma máquina. Conforme faz ou não faz
uma coisa e conforme a faz de uma maneira ou de outra, os acontecimentos que
disso dependem seguem um curso diferente; visto que são subordinados à decisão
do homem, não estão submetidos à fatalidade. Os que são fatais são os que são independentes
de sua vontade; mas, todas as vezes que o homem pode reagir em virtude de seu
livre-arbítrio, não há fatalidade.
O homem tem, pois, um círculo,
dentro do qual pode mover-se livremente. Esta liberdade de ação tem por limites
as leis da Natureza, que ninguém pode transpor; ou, melhor dizendo, esta liberdade,
na esfera da atividade em que se exerce, faz parte dessas leis; é necessária e
é por ela que o homem é chamado a concorrer para a marcha geral das coisas; e
como ele o faz livremente, tem o mérito do que fez de bem e o demérito do que
fez de mal, de sua indolência, de sua negligência, de sua inatividade. As
flutuações que sua vontade pode imprimir aos acontecimentos da vida de modo algum
perturbam a harmonia universal, pois essas mesmas flutuações faziam parte das
provas que incumbem ao homem na Terra.
No limite das coisas que dependem
da vontade do homem, Deus pode, pois, sem derrogar suas leis, anuir a uma
prece, quando é justa, e cuja realização pode ser útil; mas acontece muitas vezes
que ele julga a sua utilidade e a sua oportunidade de modo diverso que nós,
razão por que nem sempre aquiesce. Se lhe aprouver atendê-la, não é modificando
seus decretos soberanos que o fará, mas por meios que não saem da ordem geral,
se assim nos podemos exprimir. Os Espíritos, executores de sua vontade, são então
encarregados de provocar as circunstâncias que devem levar ao resultado
desejado. Quase sempre esse resultado requer o concurso de algum encarnado; é,
pois, esse concurso que os Espíritos preparam, inspirando os que devem nele
cooperar o pensamento de uma ação, incitando-os a ir a um ponto e não a um outro,
provocando encontros propícios que parecem devidos ao acaso. Ora, o acaso não
existe nem na assistência que se recebe, nem nas desgraças que se experimenta.
Nas aflições, a prece não só é
uma prova de confiança e de submissão à vontade de Deus, que a escuta, se for
pura e desinteressada, mas ainda tem por efeito, como sabeis, estabelecer uma
corrente fluídica que leva longe, no espaço, o pensamento do aflito, como o ar
leva os acentos de sua voz. Este pensamento repercute nos corações simpáticos
ao sofrimento e estes, por um movimento inconsciente e como atraídos por um
poder magnético, dirigem-se para o lugar onde sua presença pode ser útil. Deus,
que quer socorrer aquele que o implora, sem dúvida poderia fazê-lo por si mesmo,
instantaneamente, mas, como eu disse, ele
não faz milagres, e as coisas devem seguir seu curso natural; ele quer que
os homens pratiquem a caridade, socorrendo-se uns aos outros. Por seus mensageiros,
o lamento que encontra eco é levado até ele e lá os Espíritos bons insuflam um
pensamento benévolo. Embora provocado, este pensamento deixa ao homem toda a
sua liberdade, por isto mesmo que sua fonte é desconhecida; nada o constrange; ele
tem, por conseguinte, todo o mérito da espontaneidade, se ceder à voz íntima
que nele faz apelo ao sentimento do dever, e todo o demérito se resistir,
porque dominado por uma indiferença egoísta.
P. – Há casos, como num perigo iminente, em que a assistência
deve ser imediata. Como pode chegar em tempo hábil, se é preciso esperar a boa
vontade de um homem, e se essa boa vontade falta subitamente por força do
livre-arbítrio?
– Não deveis
esquecer que os anjos-da-guarda, os Espíritos protetores, cuja missão é velar
pelos que lhes são confiados, os seguem, a bem dizer, passo a passo. Não lhes
podem poupar as apreensões dos perigos, que fazem parte de suas provações; mas
se as consequências do perigo podem ser evitadas, como o previram antes, não
esperam o último momento para preparar o socorro. Se, por vezes, dirigem-se aos
homens de má vontade, é visando procurar despertar neles bons sentimentos, mas não
contam com eles.
Quando, numa posição crítica,
uma pessoa se acha, como que de propósito, para vos assistir, e exclamais que
“é a Providência que a envia”, dizeis uma verdade bem maior do que muitas vezes
supondes.
Se há casos prementes, outros
que o são menos exigem certo tempo para trazer um concurso de circunstâncias
favoráveis, sobretudo quando é preciso que os Espíritos triunfem, pela inspiração,
da apatia das pessoas cuja cooperação é necessária para o resultado a obter.
Essas demoras na realização do desejo são provas para a paciência e a
resignação; depois, quando chega a realização do que se desejou, é quase sempre
por um encadeamento de circunstâncias tão naturais que absolutamente nada
denuncia uma intervenção oculta, nada afeta a mais leve aparência de maravilhoso;
as coisas parecem arranjar-se por si mesmas.
Isto deve ser assim pelo duplo
motivo de que os meios de ação não se afastam das leis gerais e, em segundo
lugar, que se a assistência dos Espíritos fosse muito evidente, o homem se
fiaria neles e habituar-se-ia a não contar consigo mesmo. Essa assistência deve
ser compreendida por ele por pensamento, pelo senso moral, e não pelos sentidos
materiais; sua crença deve ser o resultado de sua fé e de sua confiança na
bondade de Deus. Infelizmente, porque não viu o dedo de Deus fazer um milagre
para ele, muitas vezes esquece aquele a quem deve sua salvação para glorificar
o acaso.
Um Espírito protetor
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