terça-feira, 12 de maio de 2020

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRECE NO ESPIRITISMO[1]



Allan Kardec

Cada um é livre de encarar as coisas à sua maneira, e nós, que reclamamos esta liberdade para nós, não podemos recusá-la aos outros. Mas, do fato de uma opinião ser livre, não se segue que não se possa discuti-la, examinar o lado forte e o fraco, pesar suas vantagens e inconveniências.
Dizemos isto a propósito da negação da utilidade da prece, que algumas pessoas quereriam erigir em sistema, para disto fazerem a bandeira de uma escola dissidente. Essa opinião pode assim resumir-se:

Deus estabeleceu leis eternas, a que todos os seres estão submetidos; nada lhe podemos pedir e não temos de agradecer-lhe nenhum favor especial; portanto, é inútil orar.
Como a sorte dos Espíritos está traçada, é inútil orar por eles. Eles não podem mudar a ordem imutável das coisas; então é inútil pedir-lhes.
O Espiritismo é uma ciência puramente filosófica; não só não é uma religião, como não deve ter nenhum caráter religioso.
Toda prece dita nas reuniões tende a manter a superstição e a hipocrisia religiosa.

A questão da prece já foi discutida bastante, de modo que é inútil repetir aqui o que se sabe a respeito. Se o Espiritismo proclama a sua utilidade, não é por espírito de sistema, mas porque a observação permitiu constatar a sua eficácia e o modo de ação.
Desde que, pelas leis fluídicas, compreendemos o poder do pensamento, igualmente compreendemos o poder da prece, que é, ela também, um pensamento dirigido para um fim determinado.
Para algumas pessoas, a palavra prece só desperta a ideia de pedido; é grave erro. Em relação à Divindade é um ato de adoração, de humildade e de submissão, que não se pode recusar sem desconhecer o poder e a bondade do Criador. Negar a prece a Deus é reconhecer Deus como um fato, mas é recusar-se a lhe prestar homenagem; é, ainda, uma revolta do orgulho humano.
Em relação aos Espíritos, que mais não são que as almas de nossos irmãos, a prece é uma identificação de pensamentos, um testemunho de simpatia. Repeli-la é repelir a lembrança dos seres que nos são caros, porque essa lembrança simpática e benévola é, por si mesma, uma prece. Aliás, sabe-se que os que sofrem a reclamam com insistência, como um alívio às suas penas; se a pedem, é que dela necessitam. Recusá-la é recusar um copo d’água ao infeliz que está com sede.
Além da ação puramente moral, o Espiritismo nos mostra na prece um efeito de certo modo material, resultante da transmissão fluídica. Em certas moléstias sua eficácia é constatada pela experiência, conforme demonstra a teoria. Rejeitar a prece é, pois, privar-se de poderoso auxiliar para o alívio dos males corporais.
Vejamos agora qual seria o resultado dessa doutrina, e se ela tem alguma chance de prevalecer.
Todos os povos oram, dos selvagens aos homens civilizados; a isso são levados pelo instinto, e é o que os distingue dos animais. Sem dúvida oram de maneira mais ou menos racional, mas, enfim, oram. Os que, por ignorância ou presunção, não praticam a prece, formam no mundo insignificante minoria.
A prece é, pois, uma necessidade universal, independente das seitas e das nacionalidades. Depois da prece, se estávamos fracos, sentimo-nos mais fortes; se tristes, sentimo-nos mais consolados. Abolir a prece é privar o homem de seu mais poderoso apoio moral na adversidade. Pela prece ele eleva sua alma, entra em comunhão com Deus, identifica-se com o mundo espiritual, desmaterializa-se, condição essencial de sua felicidade futura; sem a prece, seus pensamentos ficam na Terra, ligam-se cada vez mais às coisas materiais. Daí um atraso no seu adiantamento.
Contestando um dogma, não nos pomos em oposição com a seita que o professa; negando a eficácia da prece, ferimos o sentimento íntimo da quase unanimidade dos homens. O Espiritismo deve as numerosas simpatias que encontra às aspirações do coração, e nas quais as consolações hauridas na prece entram com larga parte. Uma seita que se fundasse sobre a negação da prece, privar-se-ia do principal elemento de sucesso, a simpatia geral, porque, em vez de aquecer a alma, ela a congelaria; ao invés de elevá-la, ela a rebaixaria. Se o Espiritismo deve ganhar em influência, é aumentando a soma de satisfações que proporciona.
Aqueles que querem o novo no Espiritismo, seja a que preço for, para ligar seu nome a uma bandeira, que se esforcem para dar mais que ele; mas não é dando menos que o suplantarão. A árvore despojada de seus frutos saborosos e nutritivos será sempre menos atraente que a que deles está repleta. É em virtude do mesmo princípio que sempre temos dito aos adversários do Espiritismo:

O único meio de matá-lo é dar algo de melhor, de mais consolador, que explique mais e mais satisfaça. É o que ninguém ainda fez.

Pode-se, pois, considerar a rejeição da prece, por parte de alguns crentes nas manifestações espíritas, como uma opinião isolada que pode ligar algumas individualidades, mas que jamais ligará a maioria. Seria erro imputar tal doutrina ao Espiritismo, pois ele ensina exatamente o contrário.
Nas reuniões espíritas, a prece predispõe ao recolhimento, à gravidade, condição indispensável, como se sabe, para as comunicações sérias. Significa dizer que devem ser transformadas em assembleias religiosas? Absolutamente. O sentimento religioso não é sinônimo de sectário de uma religião; deve-se mesmo evitar o que poderia dar às reuniões este último caráter. É com esse objetivo que temos desaprovado constantemente as preces e os símbolos litúrgicos de um culto qualquer. Não se deve esquecer que o Espiritismo tem em vista a aproximação das diversas comunhões; já não é raro ver nessas reuniões confraternizarem representantes de diferentes cultos, razão por que nenhum deve arrogar-se a supremacia. Que cada um em particular ore como entender; é um direito de consciência; mas numa assembleia fundada sobre o princípio da caridade, deve-se abster de tudo quanto pudesse ferir as susceptibilidades e contribuísse para manter um antagonismo que, ao contrário, é preciso esforçar-se para fazer desaparecer. Preces especiais no Espiritismo não constituem um culto distinto, desde que não sejam impostas e cada um seja livre de dizer as que lhe convém; mas elas têm a vantagem de servir para todos e não chocar ninguém.
O mesmo princípio de tolerância e respeito pelas convicções alheias nos leva a dizer que toda pessoa razoável, que uma circunstância conduz ao templo de um culto de cujas crenças não partilha, deve abster-se de todo sinal exterior que pudesse escandalizar os assistentes; que ela deve, em caso de necessidade, sacrificar aos usos de pura forma, que em nada podem comprometer sua consciência. Que Deus seja adorado num templo de uma maneira mais ou menos lógica: isto não é motivo para escandalizar os que acham boa essa maneira.
Dissemos que o Espiritismo, dando ao homem uma certa soma de satisfações e provando um certo número de verdades, não poderia ser substituído senão por alguma coisa que desse mais e provasse mais que ele. Vejamos se isto é possível.
O que dá autoridade à doutrina é o fato de seus princípios não resultarem de uma ideia preconcebida ou de uma opinião pessoal; todos, sem exceção, resultam da observação dos fatos; só pelos fatos é que o Espiritismo chegou a conhecer a situação e as atribuições dos Espíritos, assim como as leis, ou melhor, uma parte das leis que regem suas relações com o mundo visível; isto é um ponto capital. Continuando a nos apoiar na observação, fazemos filosofia experimental e não especulativa. Para combater as teorias do Espiritismo, não basta, pois, dizer que são falsas: é preciso opor-lhe fatos, cuja solução ele fosse impotente para dar. E mesmo neste caso ele se manterá sempre no nível, porque será contrário à sua essência obstinar-se numa ideia falsa, e sempre se esforçará por preencher as lacunas que possam apresentar-se, pois não tem a pretensão de ter chegado ao apogeu da verdade absoluta. Esta maneira de encarar o Espiritismo não é nova; pode-se vê-la em todos os tempos, formulada em nossas obras. Desde que o Espiritismo não se declara estacionário nem imutável, assimilará todas as verdades que forem demonstradas, venham de onde vierem, ainda que de seus antagonistas, e jamais ficará na retaguarda do progresso real. Assimilará essas verdades, dizemos, mas apenas quando forem claramente demonstradas, e não porque agradaria a alguém dá-las como tais, quer por seus desejos pessoais, quer como produto de sua imaginação.
Estabelecido este ponto, o Espiritismo apenas perderia se se deixasse distanciar de uma doutrina que desse mais que ele; nada teria a temer das que dessem menos e restringissem o que constitui sua força e sua principal atração.
Se o Espiritismo ainda não disse tudo, há, não obstante, uma certa soma de verdades adquiridas pela observação e que constituem a opinião da imensa maioria dos adeptos; e se essas verdades hoje passaram ao estado de fé, para nos servirmos de uma expressão empregada ironicamente por alguns, não foi por nós, nem por ninguém, nem mesmo por nossos Espíritos instrutores que assim foram postas e, menos ainda, impostas, mas pela adesão de todo o mundo, pois cada um é livre de constatá-las.
Se, pois, se formasse uma seita em oposição às ideias consagradas pela experiência e geralmente admitidas em princípio, não poderia conquistar as simpatias da maioria, cujas convicções chocasse. Sua existência efêmera extinguir-se-ia com seu fundador, talvez mesmo antes ou, pelo menos, com os poucos adeptos que tivesse podido reunir. Suponhamos o Espiritismo dividido em dez, em vinte seitas: a que tiver a supremacia e mais vitalidade será naturalmente a que dará maior soma de satisfações morais, que encherá o maior número de vazios da alma, que se fundará nas provas mais positivas, e que melhor se porá em uníssono com a opinião geral.
Ora, tomando como ponto de partida todos esses princípios na observação dos fatos, o Espiritismo não pode ser derrubado por uma teoria; mantendo-se constantemente no nível das ideias progressistas, não poderá ser ultrapassado; apoiando-se no sentimento da maioria, satisfaz as aspirações do maior número; fundado sobre essas bases, é imperecível, porque aí está a sua força.
Aí também está a causa do insucesso das tentativas feitas para lhe interporem obstáculos. No caso do Espiritismo há ideias profundamente antipáticas à opinião geral e esta as repele instintivamente. Construir sobre tais ideias, como ponto de apoio, um edifício ou esperanças quaisquer, é pendurar-se desastradamente em galhos podres. Eis a que estão reduzidos os que, não tendo podido derrubar o Espiritismo pela força, tentam derrubá-lo por si mesmo.




[1] Revista Espírita – Janeiro/1866 – Allan Kardec

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