Allan Kardec
Cada um é livre de encarar as
coisas à sua maneira, e nós, que reclamamos esta liberdade para nós, não
podemos recusá-la aos outros. Mas, do fato de uma opinião ser livre, não se
segue que não se possa discuti-la, examinar o lado forte e o fraco, pesar suas
vantagens e inconveniências.
Dizemos isto a propósito da
negação da utilidade da prece, que algumas pessoas quereriam erigir em sistema,
para disto fazerem a bandeira de uma escola dissidente. Essa opinião pode assim
resumir-se:
Deus estabeleceu
leis eternas, a que todos os seres estão submetidos; nada lhe podemos pedir e
não temos de agradecer-lhe nenhum favor especial; portanto, é inútil orar.
Como a sorte dos
Espíritos está traçada, é inútil orar por eles. Eles não podem mudar a ordem
imutável das coisas; então é inútil pedir-lhes.
O Espiritismo é uma
ciência puramente filosófica; não só não é uma religião, como não deve ter
nenhum caráter religioso.
Toda prece dita nas
reuniões tende a manter a superstição e a hipocrisia religiosa.
A questão da prece já foi
discutida bastante, de modo que é inútil repetir aqui o que se sabe a respeito.
Se o Espiritismo proclama a sua utilidade, não é por espírito de sistema, mas
porque a observação permitiu constatar a sua eficácia e o modo de ação.
Desde que, pelas leis fluídicas,
compreendemos o poder do pensamento, igualmente compreendemos o poder da prece,
que é, ela também, um pensamento dirigido para um fim determinado.
Para algumas pessoas, a palavra prece
só desperta a ideia de pedido; é grave erro. Em relação à Divindade é um ato de
adoração, de humildade e de submissão, que não se pode recusar sem desconhecer
o poder e a bondade do Criador. Negar a prece a Deus é reconhecer Deus como um
fato, mas é recusar-se a lhe prestar homenagem; é, ainda, uma revolta do
orgulho humano.
Em relação aos Espíritos, que
mais não são que as almas de nossos irmãos, a prece é uma identificação de pensamentos,
um testemunho de simpatia. Repeli-la é repelir a lembrança dos seres que nos
são caros, porque essa lembrança simpática e benévola é, por si mesma, uma
prece. Aliás, sabe-se que os que sofrem a reclamam com insistência, como um
alívio às suas penas; se a pedem, é que dela necessitam. Recusá-la é recusar um
copo d’água ao infeliz que está com sede.
Além da ação puramente moral, o
Espiritismo nos mostra na prece um efeito de certo modo material, resultante da
transmissão fluídica. Em certas moléstias sua eficácia é constatada pela
experiência, conforme demonstra a teoria. Rejeitar a prece é, pois, privar-se
de poderoso auxiliar para o alívio dos males corporais.
Vejamos agora qual seria o
resultado dessa doutrina, e se ela tem alguma chance de prevalecer.
Todos os povos oram, dos
selvagens aos homens civilizados; a isso são levados pelo instinto, e é o que
os distingue dos animais. Sem dúvida oram de maneira mais ou menos racional, mas,
enfim, oram. Os que, por ignorância ou presunção, não praticam a prece, formam
no mundo insignificante minoria.
A prece é, pois, uma necessidade
universal, independente das seitas e das nacionalidades. Depois da prece, se estávamos
fracos, sentimo-nos mais fortes; se tristes, sentimo-nos mais consolados.
Abolir a prece é privar o homem de seu mais poderoso apoio moral na
adversidade. Pela prece ele eleva sua alma, entra em comunhão com Deus,
identifica-se com o mundo espiritual, desmaterializa-se, condição
essencial de sua felicidade futura; sem a prece, seus pensamentos ficam na
Terra, ligam-se cada vez mais às coisas materiais. Daí um atraso no seu adiantamento.
Contestando um dogma, não nos
pomos em oposição com a seita que o professa; negando a eficácia da prece, ferimos
o sentimento íntimo da quase unanimidade dos homens. O Espiritismo deve as
numerosas simpatias que encontra às aspirações do coração, e nas quais as
consolações hauridas na prece entram com larga parte. Uma seita que se fundasse
sobre a negação da prece, privar-se-ia do principal elemento de sucesso, a
simpatia geral, porque, em vez de aquecer a alma, ela a congelaria; ao invés de
elevá-la, ela a rebaixaria. Se o Espiritismo deve ganhar em influência, é
aumentando a soma de satisfações que proporciona.
Aqueles que querem o novo no
Espiritismo, seja a que preço for, para ligar seu nome a uma bandeira, que se
esforcem para dar mais que ele; mas não é dando menos que o suplantarão. A
árvore despojada de seus frutos saborosos e nutritivos será sempre menos atraente
que a que deles está repleta. É em virtude do mesmo princípio que sempre temos
dito aos adversários do Espiritismo:
O único meio de matá-lo
é dar algo de melhor, de mais consolador, que explique mais e mais satisfaça. É
o que ninguém ainda fez.
Pode-se, pois, considerar a
rejeição da prece, por parte de alguns crentes nas manifestações espíritas,
como uma opinião isolada que pode ligar algumas individualidades, mas que
jamais ligará a maioria. Seria erro imputar tal doutrina ao Espiritismo, pois ele
ensina exatamente o contrário.
Nas reuniões espíritas, a prece
predispõe ao recolhimento, à gravidade, condição indispensável, como se sabe, para
as comunicações sérias. Significa dizer que devem ser transformadas em assembleias
religiosas? Absolutamente. O sentimento religioso não é sinônimo de sectário de
uma religião; deve-se mesmo evitar o que poderia dar às reuniões este último caráter.
É com esse objetivo que temos desaprovado constantemente as preces e os
símbolos litúrgicos de um culto qualquer. Não se deve esquecer que o
Espiritismo tem em vista a aproximação das diversas comunhões; já não é raro
ver nessas reuniões confraternizarem representantes de diferentes cultos, razão
por que nenhum deve arrogar-se a supremacia. Que cada um em particular ore como
entender; é um direito de consciência; mas numa assembleia fundada sobre o
princípio da caridade, deve-se abster de tudo quanto pudesse ferir as
susceptibilidades e contribuísse para manter um antagonismo que, ao contrário, é
preciso esforçar-se para fazer desaparecer. Preces especiais no Espiritismo não
constituem um culto distinto, desde que não sejam impostas e cada um seja livre
de dizer as que lhe convém; mas elas têm a vantagem de servir para todos e não
chocar ninguém.
O mesmo princípio de tolerância
e respeito pelas convicções alheias nos leva a dizer que toda pessoa razoável,
que uma circunstância conduz ao templo de um culto de cujas crenças não
partilha, deve abster-se de todo sinal exterior que pudesse escandalizar os
assistentes; que ela deve, em caso de necessidade, sacrificar aos usos de pura
forma, que em nada podem comprometer sua consciência. Que Deus seja adorado num
templo de uma maneira mais ou menos lógica: isto não é motivo para escandalizar
os que acham boa essa maneira.
Dissemos que o Espiritismo,
dando ao homem uma certa soma de satisfações e provando um certo número de verdades,
não poderia ser substituído senão por alguma coisa que desse mais e provasse
mais que ele. Vejamos se isto é possível.
O que dá autoridade à doutrina é
o fato de seus princípios não resultarem de uma ideia preconcebida ou de uma opinião
pessoal; todos, sem exceção, resultam da observação dos fatos; só pelos fatos é
que o Espiritismo chegou a conhecer a situação e as atribuições dos Espíritos,
assim como as leis, ou melhor, uma parte das leis que regem suas relações com o
mundo visível; isto é um ponto capital. Continuando a nos apoiar na observação,
fazemos filosofia experimental e não especulativa. Para combater as teorias do
Espiritismo, não basta, pois, dizer que são falsas: é preciso opor-lhe fatos,
cuja solução ele fosse impotente para dar. E mesmo neste caso ele se manterá
sempre no nível, porque será contrário à sua essência obstinar-se numa ideia
falsa, e sempre se esforçará por preencher as lacunas que possam apresentar-se,
pois não tem a pretensão de ter chegado ao apogeu da verdade absoluta. Esta
maneira de encarar o Espiritismo não é nova; pode-se vê-la em todos os tempos,
formulada em nossas obras. Desde que o Espiritismo não se declara estacionário
nem imutável, assimilará todas as verdades que forem demonstradas, venham de
onde vierem, ainda que de seus antagonistas, e jamais ficará na retaguarda do
progresso real. Assimilará essas verdades, dizemos, mas apenas quando forem
claramente demonstradas, e não porque agradaria a alguém dá-las como tais, quer
por seus desejos pessoais, quer como produto de sua imaginação.
Estabelecido este ponto, o
Espiritismo apenas perderia se se deixasse distanciar de uma doutrina que desse
mais que ele; nada teria a temer das que dessem menos e restringissem o que
constitui sua força e sua principal atração.
Se o Espiritismo ainda não disse
tudo, há, não obstante, uma certa soma de verdades adquiridas pela observação e
que constituem a opinião da imensa maioria dos adeptos; e se essas verdades
hoje passaram ao estado de fé, para nos servirmos de uma expressão empregada
ironicamente por alguns, não foi por nós, nem por ninguém, nem mesmo por nossos
Espíritos instrutores que assim foram postas e, menos ainda, impostas, mas pela
adesão de todo o mundo, pois cada um é livre de constatá-las.
Se, pois, se formasse uma seita
em oposição às ideias consagradas pela experiência e geralmente admitidas em
princípio, não poderia conquistar as simpatias da maioria, cujas convicções chocasse.
Sua existência efêmera extinguir-se-ia com seu fundador, talvez mesmo antes ou,
pelo menos, com os poucos adeptos que tivesse podido reunir. Suponhamos o
Espiritismo dividido em dez, em vinte seitas: a que tiver a supremacia e mais
vitalidade será naturalmente a que dará maior soma de satisfações morais, que encherá
o maior número de vazios da alma, que se fundará nas provas mais positivas, e
que melhor se porá em uníssono com a opinião geral.
Ora, tomando como ponto de
partida todos esses princípios na observação dos fatos, o Espiritismo não pode
ser derrubado por uma teoria; mantendo-se constantemente no nível das ideias
progressistas, não poderá ser ultrapassado; apoiando-se no sentimento da
maioria, satisfaz as aspirações do maior número; fundado sobre essas bases, é
imperecível, porque aí está a sua força.
Aí também está a causa do
insucesso das tentativas feitas para lhe interporem obstáculos. No caso do
Espiritismo há ideias profundamente antipáticas à opinião geral e esta as
repele instintivamente. Construir sobre tais ideias, como ponto de apoio, um
edifício ou esperanças quaisquer, é pendurar-se desastradamente em galhos
podres. Eis a que estão reduzidos os que, não tendo podido derrubar o
Espiritismo pela força, tentam derrubá-lo por si mesmo.
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