terça-feira, 19 de maio de 2020

Antropofagia[1]



Allan Kardec

Lê-se no Siècle de 26 de dezembro de 1865:

O almirantado inglês acaba de dirigir uma circular às cidades marítimas que transportam armamentos para a Oceania, na qual anuncia que, desde algum tempo, nota-se entre os habitantes das ilhas do grande oceano uma recrudescência da antropofagia. Nessa circular, exorta os capitães de navios mercantes a tomarem todas as precauções necessárias para evitar que sua tripulação seja vítima desse horroroso costume.
Desde cerca de um ano a tripulação de quatro navios foi devorada pelos antropófagos das Novas-Hébridas, da baía de Jervis ou da Nova Caledônia, e todas as medidas devem ser tomadas para evitar a repetição de tão cruéis desgraças.

Eis como o jornal Le Monde explica esse recrudescimento da antropofagia:

Tivemos a cólera, a epizootia, a varicela; os legumes, os animais, estão doentes. Eis uma epidemia mais dolorosa ainda, que o almirantado inglês nos dá a conhecer: os selvagens da Oceania, ao que se diz, exacerbam-se na antropofagia. Vários casos horríveis chegaram ao conhecimento dos lordes do almirantado. A tripulação de vários navios ingleses desapareceu. Ninguém duvida que nossas autoridades marítimas também tomem medidas, porque dois navios franceses foram atacados, os tripulantes tomados e devorados pelos selvagens. O espírito se detém diante desses horrores, dos quais foram impotentes para triunfar todos os esforços de nossa civilização. Quem sabe de onde vêm essas criminosas inspirações?
Que palavra de ordem foi dada a todos esses pagãos, disseminados em centenas e milhares de ilhas nas imensidades dos mares do Sul? Sua paixão monstruosa, apaziguada por um momento, reaparece a ponto de chamar a repressão, de inquietar as potências da Terra. É um desses problemas cuja solução só o dogma católico pode dar. Em certos momentos o Espírito das trevas age com toda a liberdade. Antes dos acontecimentos graves ele se agita, impele suas criaturas, sustenta-as e as inspira. Grandes acontecimentos se preparam. A revolução crê chegada a hora de proceder ao coroamento do edifício; recolhe-se para a luta suprema, ataca-se à pedra angular da sociedade cristã. A hora é grave e parece que a Natureza inteira pressente e prevê a sua gravidade.

Admiramos de não ver, entre as causas do agravamento da ferocidade nos selvagens, figurar o Espiritismo, esse bode expiatório de todos os males da Humanidade, como foi outrora o Cristianismo em Roma. Talvez aí esteja implicitamente compreendido, como sendo, segundo uns, obra do Espírito das trevas.
“Só o dogma católico, diz Le Monde, pode dar a explicação desse problema”. Não vemos muita clareza na explicação que ele dá, nem o que tem de comum o espírito revolucionário da Europa com esses bárbaros. Até achamos nesse dogma uma complicação da dificuldade.
Os antropófagos são homens: ninguém jamais o duvidou. Ora, não admitindo o dogma católico a preexistência da alma, mas a criação de uma alma nova ao nascimento de cada corpo, resulta que nalgum lugar Deus cria almas de comedores de homens e aqui almas capazes de se tornarem santos. Por que esta diferença? É um problema cuja solução a Igreja jamais deu e, contudo, é uma pedra angular essencial. Conforme sua doutrina, a recrudescência da antropofagia não se pode explicar senão assim: é que neste momento a Deus apraz criar um maior número de almas antropófagas, solução pouco satisfatória e, sobretudo, pouco consequente com a bondade de Deus.
A dificuldade aumenta se se considerar o futuro dessas almas. Em que se tornam depois da morte? Serão tratadas do mesmo modo que as que têm consciência do bem e do mal? Isto não seria justo nem racional. Com o seu dogma a Igreja, em vez de explicar, fica num impasse, do qual não pode sair senão apelando para o mistério, que não precisa ser compreendido, espécie de non possumus que corta pela raiz as questões embaraçosas.
Pois bem! Esse problema que a Igreja não pode resolver, o Espiritismo encontra sua solução mais simples e racional na lei da pluralidade das existências, à qual todos os seres estão submetidos, e em virtude da qual progridem. Assim, as almas dos antropófagos estão perto de sua origem, suas faculdades intelectuais e morais ainda são obtusas, pouco desenvolvidas e, por isso mesmo, nelas dominam os instintos animais.
Mas essas almas não estão destinadas a ficar perpetuamente nesse estado inferior, que as privaria para sempre da felicidade das almas mais adiantadas; crescem em raciocínio, esclarecem-se, depuram-se, instruem-se e melhoram em existências sucessivas. Revivem nas raças selvagens, enquanto não ultrapassarem os limites da selvageria. Chegadas a um certo grau, deixam esse meio para encarnar-se numa raça um pouco mais adiantada; desta a uma outra e assim por diante, sobem em grau, em razão dos méritos que adquiriram e das imperfeições de que se despojaram, até que tenham atingido o grau de perfeição de que é susceptível a criatura. A via do progresso não está fechada a nenhuma, de tal sorte que a mais atrasada pode aspirar à suprema felicidade. Mas umas, em virtude do seu livre-arbítrio, que é o apanágio da Humanidade, trabalham com ardor por sua depuração e por sua instrução, em se despojar dos instintos materiais e das fraldas da origem, porque, a cada passo que dão para a perfeição veem mais claro, compreendem melhor e são mais felizes. Essas avançam mais prontamente, gozam mais cedo: eis a sua recompensa. Outras, sempre em virtude de seu livre-arbítrio, demoram-se no caminho, como estudantes preguiçosos e de má vontade, ou como operários negligentes; chegam mais tarde, sofrem mais tempo: eis a sua punição ou, se quiserem, o seu inferno. Assim se confirma, pela pluralidade das existências progressivas, a admirável lei de unidade e de justiça que caracteriza todas as obras da Criação. Comparai esta doutrina à da Igreja, sobre o passado e o futuro das almas e vede qual a mais racional, a mais conforme a justiça divina e que melhor explica as desigualdades sociais.
A antropofagia é, seguramente, um dos mais baixos graus da escala humana na Terra, porque o selvagem que não come mais o seu semelhante já está em progresso. Mas de onde vem a recrudescência desse instinto bestial? É de notar, antes de mais, que é apenas local e que, em suma, o canibalismo desapareceu em grande parte da Terra. É inexplicável sem o conhecimento do mundo invisível e de suas relações com o mundo visível. Pelas mortes e nascimentos, eles se alimentam incessantemente um do outro. Ora, os homens imperfeitos não podem fornecer ao mundo invisível almas perfeitas, e as almas perversas, encarnando-se, não podem fazer senão homens maus. Quando as catástrofes e flagelos se apoderam ao mesmo tempo de grande número de homens, há uma chegada em massa no mundo dos Espíritos. Devendo essas mesmas almas reviver, em virtude da lei da Natureza, e para o seu adiantamento, as circunstâncias podem igualmente trazê-las em massa para a Terra.
O fenômeno de que se trata depende, pois, simplesmente da encarnação acidental, nos meios ínfimos, de um maior número de almas atrasadas, e não da malícia de Satã, nem da palavra de ordem dada aos povos da Oceania. Ajudando o desenvolvimento do senso moral dessas almas, durante sua permanência na Terra – e esta é a missão dos homens civilizados – elas melhoram; e quando retomarem uma nova existência corporal, com vistas ao seu progresso, ainda serão homens menos maus do que eram, mais esclarecidos, de instintos menos ferozes, porque o progresso realizado jamais se perde. É assim que gradualmente se realiza o progresso da Humanidade.
Le Monde está com a verdade, dizendo que se preparam grandes acontecimentos. Sim, uma transformação se elabora na Humanidade. Já se fazem sentir os primeiros abalos do parto; o mundo corporal e o mundo espiritual se agitam, porque é a luta entre o que acaba e o que começa. Em proveito de quem será essa transformação? Sendo o progresso a lei providencial da Humanidade, ela não se pode dar senão em benefício do progresso.
Mas os grandes partos são laboriosos; não é sem abalos e sem grandes rasgões no solo que se extirpam dos terrenos a limpar as ervas daninhas, que têm longas e profundas raízes.




[1] Revista Espírita – Fevereiro/1866 – Allan Kardec

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