Allan Kardec
Lê-se no Siècle de 26 de
dezembro de 1865:
O almirantado inglês
acaba de dirigir uma circular às cidades marítimas que transportam armamentos
para a Oceania, na qual anuncia que, desde algum tempo, nota-se entre os
habitantes das ilhas do grande oceano uma recrudescência da antropofagia. Nessa
circular, exorta os capitães de navios mercantes a tomarem todas as precauções
necessárias para evitar que sua tripulação seja vítima desse horroroso costume.
Desde cerca de um
ano a tripulação de quatro navios foi devorada pelos antropófagos das
Novas-Hébridas, da baía de Jervis ou da Nova Caledônia, e todas as medidas
devem ser tomadas para evitar a repetição de tão cruéis desgraças.
Eis como o jornal Le Monde explica esse recrudescimento da
antropofagia:
Tivemos a cólera, a
epizootia, a varicela; os legumes, os animais, estão doentes. Eis uma epidemia
mais dolorosa ainda, que o almirantado inglês nos dá a conhecer: os selvagens
da Oceania, ao que se diz, exacerbam-se na antropofagia. Vários casos horríveis
chegaram ao conhecimento dos lordes do almirantado. A tripulação de vários
navios ingleses desapareceu. Ninguém duvida que nossas autoridades marítimas
também tomem medidas, porque dois navios franceses foram atacados, os
tripulantes tomados e devorados pelos selvagens. O espírito se detém diante
desses horrores, dos quais foram impotentes para triunfar todos os esforços de
nossa civilização. Quem sabe de onde vêm essas criminosas inspirações?
Que palavra de ordem
foi dada a todos esses pagãos, disseminados em centenas e milhares de ilhas nas
imensidades dos mares do Sul? Sua paixão monstruosa, apaziguada por um momento,
reaparece a ponto de chamar a repressão, de inquietar as potências da Terra. É
um desses problemas cuja solução só o dogma católico pode dar. Em certos
momentos o Espírito das trevas age com toda a liberdade. Antes dos
acontecimentos graves ele se agita, impele suas criaturas, sustenta-as e as
inspira. Grandes acontecimentos se preparam. A revolução crê chegada a hora de proceder
ao coroamento do edifício; recolhe-se para a luta suprema, ataca-se à pedra
angular da sociedade cristã. A hora é grave e parece que a Natureza inteira
pressente e prevê a sua gravidade.
Admiramos de não ver, entre as
causas do agravamento da ferocidade nos selvagens, figurar o Espiritismo, esse
bode expiatório de todos os males da Humanidade, como foi outrora o Cristianismo
em Roma. Talvez aí esteja implicitamente compreendido, como sendo, segundo uns,
obra do Espírito das trevas.
“Só o dogma católico, diz Le Monde, pode dar a explicação desse
problema”. Não vemos muita clareza na explicação que ele dá, nem o que tem de
comum o espírito revolucionário da Europa com esses bárbaros. Até achamos nesse
dogma uma complicação da dificuldade.
Os antropófagos são homens:
ninguém jamais o duvidou. Ora, não admitindo o dogma católico a preexistência
da alma, mas a criação de uma alma nova ao nascimento de cada corpo, resulta
que nalgum lugar Deus cria almas de comedores de homens e aqui almas capazes de
se tornarem santos. Por que esta diferença? É um problema cuja solução a Igreja
jamais deu e, contudo, é uma pedra angular essencial. Conforme sua doutrina, a recrudescência
da antropofagia não se pode explicar senão assim: é que neste momento a Deus
apraz criar um maior número de almas antropófagas, solução pouco satisfatória
e, sobretudo, pouco consequente com a bondade de Deus.
A dificuldade aumenta se se
considerar o futuro dessas almas. Em que se tornam depois da morte? Serão
tratadas do mesmo modo que as que têm consciência do bem e do mal? Isto não
seria justo nem racional. Com o seu dogma a Igreja, em vez de explicar, fica
num impasse, do qual não pode sair senão apelando para o mistério, que não
precisa ser compreendido, espécie de non possumus
que corta pela raiz as questões embaraçosas.
Pois bem! Esse problema que a
Igreja não pode resolver, o Espiritismo encontra sua solução mais simples e racional
na lei da pluralidade das existências, à qual todos os seres estão submetidos,
e em virtude da qual progridem. Assim, as almas dos antropófagos estão perto de
sua origem, suas faculdades intelectuais e morais ainda são obtusas, pouco
desenvolvidas e, por isso mesmo, nelas dominam os instintos animais.
Mas essas almas não estão
destinadas a ficar perpetuamente nesse estado inferior, que as privaria para
sempre da felicidade das almas mais adiantadas; crescem em raciocínio, esclarecem-se,
depuram-se, instruem-se e melhoram em existências sucessivas. Revivem nas raças
selvagens, enquanto não ultrapassarem os limites da selvageria. Chegadas a um
certo grau, deixam esse meio para encarnar-se numa raça um pouco mais adiantada;
desta a uma outra e assim por diante, sobem em grau, em razão dos méritos que
adquiriram e das imperfeições de que se despojaram, até que tenham atingido o
grau de perfeição de que é susceptível a criatura. A via do progresso não está
fechada a nenhuma, de tal sorte que a mais atrasada pode aspirar à suprema felicidade.
Mas umas, em virtude do seu livre-arbítrio, que é o apanágio da Humanidade,
trabalham com ardor por sua depuração e por sua instrução, em se despojar dos
instintos materiais e das fraldas da origem, porque, a cada passo que dão para
a perfeição veem mais claro, compreendem melhor e são mais felizes. Essas avançam
mais prontamente, gozam mais cedo: eis a sua recompensa. Outras, sempre em
virtude de seu livre-arbítrio, demoram-se no caminho, como estudantes
preguiçosos e de má vontade, ou como operários negligentes; chegam mais tarde,
sofrem mais tempo: eis a sua punição ou, se quiserem, o seu inferno. Assim se
confirma, pela pluralidade das existências progressivas, a admirável lei de
unidade e de justiça que caracteriza todas as obras da Criação. Comparai esta
doutrina à da Igreja, sobre o passado e o futuro das almas e vede qual a mais
racional, a mais conforme a justiça divina e que melhor explica as desigualdades
sociais.
A antropofagia é, seguramente,
um dos mais baixos graus da escala humana na Terra, porque o selvagem que não
come mais o seu semelhante já está em progresso. Mas de onde vem a recrudescência
desse instinto bestial? É de notar, antes de mais, que é apenas local e que, em
suma, o canibalismo desapareceu em grande parte da Terra. É inexplicável sem o
conhecimento do mundo invisível e de suas relações com o mundo visível. Pelas mortes
e nascimentos, eles se alimentam incessantemente um do outro. Ora, os homens
imperfeitos não podem fornecer ao mundo invisível almas perfeitas, e as almas
perversas, encarnando-se, não podem fazer senão homens maus. Quando as
catástrofes e flagelos se apoderam ao mesmo tempo de grande número de homens,
há uma chegada em massa no mundo dos Espíritos. Devendo essas mesmas almas
reviver, em virtude da lei da Natureza, e para o seu adiantamento, as
circunstâncias podem igualmente trazê-las em massa para a Terra.
O fenômeno de que se trata
depende, pois, simplesmente da encarnação acidental, nos meios ínfimos, de um maior
número de almas atrasadas, e não da malícia de Satã, nem da palavra de ordem
dada aos povos da Oceania. Ajudando o desenvolvimento do senso moral dessas
almas, durante sua permanência na Terra – e esta é a missão dos homens
civilizados – elas melhoram; e quando retomarem uma nova existência corporal, com
vistas ao seu progresso, ainda serão homens menos maus do que eram, mais
esclarecidos, de instintos menos ferozes, porque o progresso realizado jamais
se perde. É assim que gradualmente se realiza o progresso da Humanidade.
Le Monde está com a verdade, dizendo que se preparam grandes
acontecimentos. Sim, uma transformação se elabora na Humanidade. Já se fazem
sentir os primeiros abalos do parto; o mundo corporal e o mundo espiritual se
agitam, porque é a luta entre o que acaba e o que começa. Em proveito de quem
será essa transformação? Sendo o progresso a lei providencial da Humanidade,
ela não se pode dar senão em benefício do progresso.
Mas os grandes partos são
laboriosos; não é sem abalos e sem grandes rasgões no solo que se extirpam dos
terrenos a limpar as ervas daninhas, que têm longas e profundas raízes.
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