Allan Kardec
Decididamente o Espiritismo
invade os campos. Os Espíritos querem provar sua existência tomando seus
instrumentos em toda parte, mesmo fora do círculo dos adeptos, o que destrói
qualquer suposição de conivência. Acabamos de ver a doutrina implantada num
vilarejo do Aube, entre simples cultivadores, por uma manifestação espontânea.
Eis um fato ainda mais notável, sob outro ponto de vista. O Sr. Delanne, nosso
colega, escreve-nos o que segue:
...Durante as poucas
horas que passei no vilarejo onde educam meu filho, um vinhateiro me deu duas
brochuras que havia publicado sob esse título: Ideias filosóficas naturais e espontâneas sobre a existência em geral,
a partir do princípio absoluto até o fim dos fins, da causa primeira até o
infinito, pelo pai Chevelle, de Joinville (Haute-Marne): A primeira tem por
objeto Deus, os anjos, a alma do homem,
a alma animal ou instintiva; a segunda: as forças físicas, os elementos, a
organização, o movimento[2].
Conforme esse título
pomposo e os graves assuntos que abarca, pensareis tratar-se de um homem que
empalideceu sobre os livros durante toda a sua vida. Desenganai-vos; esse
filósofo metafísico é um humilde artesão, um verdadeiro filósofo de tamancos,
pois vai, pelos vilarejos, vender legumes e outros produtos agrícolas.
Eis algumas passagens de seu
prefácio:
Empreendi esta obra
porque pensei que seria de alguma utilidade para o público. O homem se deve aos
seus semelhantes; não é sua condição viver isolado e a sociedade tem direito de
reclamar de cada indivíduo a comunicação de seus conhecimentos; o egoísmo é um
vício intolerável.
A obra é
inteiramente minha; não fui ajudado nem secundado por ninguém; nada copiei de
alguém; é o fruto das meditações de toda a minha vida... Numerosas dificuldades
se opuseram à execução de minha empresa; não as dissimulei. Para mim a miséria
era a pior de todas; ela me impedia de agir, não me deixando tempo; sempre a
suportei sem me lamentar; tinha aprendido o segredo de viver feliz sem fortuna,
e esse segredo é sempre o meu melhor recurso.
...Dei minhas ideias,
porque as escrevi à medida que me vinham, naturalmente, espontaneamente,
conforme me chegavam pela reflexão e pela meditação.
...Em filosofia não
se demonstram todas as existências por cálculos matemáticos; não se medem os
Espíritos com um metro e não se os olham ao microscópio.
...Não se deve
esperar encontrar em meu livro um estilo requintado, extremamente brilhante.
Não fiz cursos; apenas fui à escola de meu vilarejo. Quando a gente aprendia as
preces em latim e recitava bem o catecismo, já se era sábio o bastante.
...Naqueles tempos,
era-se extremamente instruído quando se sabia fazer as quatro operações; vinham
procurar-nos para medir os campos. Com dez anos eu era o primeiro da escola e
meu velho pai sentia-se orgulhoso ao ver que vinham me procurar para achar o
lugar onde deviam plantar um marco, ou escrever um bilhete ou recibo.
Tenho, pois, o direito de pedir desculpas aos
leitores, pela trivialidade de minha linguagem: não aprendi as regras da
retórica e creio que o título de minha obra convém: Ideias naturais.
Íamos à escola de
Todos os Santos até a Páscoa, e ficávamos em férias da Páscoa até Todos os
Santos. Mas como meu pai, por mais pobre que fosse, não tinha medo de gastar
alguns vinténs para me comprar livros, eu aprendia muito mais nos seis meses de
férias, do que esquecia nos seis meses de aula.
Eis agora alguns fragmentos do
capítulo sobre Deus:
Deus é o único que
pode dizer: Eu sou aquele que é; é um e é tudo; tudo existe dele, nele e por
ele e nada pode existir sem ele e fora dele; Ele é uno e, todavia, produziu o
múltiplo e o divisível, um e outro ao infinito... Se eu pudesse bem definir
Deus, eu seria deus; mas não pode haver dois deuses.
Deus é um todo
infinito, indivisível, eterno, imutável; não tem limites no pequeno nem no
grande... Um minuto e cem mil anos ou cem mil séculos são a mesma coisa para
Deus; a eternidade não admite partilha; para ele não há passado nem futuro, é um eterno presente; para Deus o passado
ainda é e o futuro já é; ele vê todos os tempos de uma vez; não há ontem nem amanhã; e, falando de
seu filho, disse: eu vos gerei hoje.
A eternidade não se
mede, como não se mede o infinito do espaço; são dois abismos onde não podemos
chegar senão pela abstração, e aí nos perderíamos se os quiséssemos penetrar;
são florestas virgens sem atalhos. Em lá chegando, somos forçados a parar.
Deus não pode
dispensar-se de criar; seria apenas um Deus sem ação se não criasse e sua
glória só seria para si próprio. Monotonia impossível. Deus cria eternamente; o
começo da Criação, tomado no infinito, deve continuar ao infinito.
...Era preciso que
criasse inteligências livres, porquanto, qual seria a existência dos seres que
pensam, se não lhes fosse permitido pensar livremente? Onde estaria a glória de
Deus, se suas criaturas não fossem livres de julgar dele? Seria o mesmo que ter
ficado só; a adoração que elas lhe rendessem não passaria de uma quimera, de uma
comédia dirigida para ele e por ele; ele teria sido o único espectador e o
único ator.
Para a glória de Deus, então, teria sido uma
necessidade absoluta que as inteligências tivessem sido criadas absolutamente
livres, com direito de julgar seu autor, de se conduzirem, no bem ou no mal,
como quisessem. Era preciso que o mal fosse permitido para que o bem existisse;
é impossível que um seja conhecido sem que se veja o outro.
Mas, ao mesmo tempo
que Deus dá o livre-arbítrio às inteligências, também lhes dá esse foro íntimo,
esse sentimento intelectual de sua liberdade de pensar, esse ato do espírito
livre, que chamamos consciência, tribunal individual que adverte cada
existência livre do valor de sua ação. Ninguém faz o mal sem o saber; só a
vontade faz o pecado.
Também temos razões
para presumir que os Espíritos ou anjos têm alguma parte no governo universal,
pois foi recebido como dogma de fé que os homens são guardados pelos anjos e
que cada um de nós tem seu anjo-de-guarda.
As inteligências, ou
Espíritos desprendidos da matéria, bem podem ter, algumas vezes, influência
sobre o espírito do homem. Quantas pessoas tiveram revelações que se
realizaram, como Joana d’Arc e tantas outras de que falam os livros de História
que li e que se podem encontrar. Mas não preciso saber de memória para lhes
citar as passagens; busco as revelações em mim mesmo, e não alhures.
Até o momento que
minha irmã mais velha morreu de cólera em Midrevay (Vosges), eu não tinha
ouvido falar da existência de cólera em parte alguma. Não fazia a menor ideia
de que minha irmã estivesse doente; eu a tinha visto mais saudável que nunca,
não havendo, pois, qualquer motivo para me preocupar com ela. Eu a vi em sonho
em minha casa, em Joinville: – ‘Meu Joseph, venho dizer-te que morri; sabes que
sempre te amei muito, e eu mesma quis trazer-te a notícia de minha volta ao
outro mundo’. No dia seguinte o carteiro trouxe uma carta anunciando a morte de
minha irmã.
Ao receber a carta
tarjada de negro, disse à minha mulher: ‘Conheces o sonho que te contei ontem;
quem sabe não esteja aqui a realidade’? Eu não me enganava.
Algumas vezes tive
visões, às quais só dei atenção quando se realizaram, mesmo que muito tempo
depois. Nesses momentos eu não dormia; estava bem desperto, trabalhando. Isto
me aconteceu umas três ou quatro vezes no curso de minha vida; delas só me
lembro vagamente, mas tenho certeza. Não sou o único que tenha tido revelações
mentais; outros provarão que tenho razão, o que talvez já foi provado.
A alma animal não pode ser senão individual e,
por conseguinte, indecomponível; portanto, a alma animal não morre. Já pensaram
nela antes de mim e foi isto que motivou a doutrina da metempsicose. Se existe
a metempsicose, só poderia ser entre indivíduos da mesma espécie: a alma vital
ou animal de um mamífero não pode passar a uma árvore.
No que concerne à
inteligência humana, é impossível que ela passe ao corpo de um animal; aí não
poderia agir, pois a constituição física do animal não pode servir de habitação
à inteligência humana, embora hajam assegurado que demônios se uniram e
possuíram animais. Não posso acreditar que, em semelhantes organizações, eles
possam fazer algo de razoável; já não lhes seria possível falar; não poderiam
aniquilar o instinto, que agiria sempre, por bem ou por mal; é uma das leis
estabelecidas pelo Criador; estas seriam indignas dele se se pudesse
derrogá-las, se fosse possível modificá-las. Os feixes nervosos, ou, como
dissemos acima, as estações telegráficas desta espécie não podem ser dirigidas
pela inteligência.
Nestes últimos
tempos tem-se falado muito do Espiritismo; algumas pessoas me dizem que este
capítulo tem muitas relações com ele. Mas se assim é, será por puro acaso, pois
é uma obra que jamais li, e da qual jamais ouvi falar uma só frase..
Eis agora as reflexões do autor
sobre a Criação:
Todos os geólogos,
todos os naturalistas estão de acordo que os dias de Deus não eram como os
nossos, que são regulados pelo Sol. Com efeito, os dias de Deus na Criação não
podiam ser regulados pelo Sol, porque, segundo os textos das Escrituras
Sagradas, o Sol ainda não tinha sido criado, ou não aparecia; daí a palavra que
nas santas escrituras, na linguagem em que estas foram escritas, tanto
significa dia quanto significa tempo. Assim, o erro bem pode ser dos
tradutores, que deveriam ter dito em seis tempos, em vez de em seis dias; e,
depois, por que quereríamos fazer os dias de Deus tão curtos quanto os nossos,
ele que é eterno?
Não
que eu queira dizer que Deus não pudesse ter criado o mundo em seis dias, cada
um de vinte e quatro horas, e que cada um desses anos valesse centenas de
milhares de nossos anos. Se eu quisesse entendê-lo assim, estaria em
contradição comigo mesmo, porque, em meu primeiro volume, eu disse que um
minuto, cem mil anos ou cem mil séculos eram a mesma coisa para Deus.
Embora Deus só tenha
disposto de um dia para cada criação indicada no Gênesis, entre cada um desses
dias talvez houvesse milhões de anos e, mesmo, de séculos.
Quando se examinam
as camadas da terra e como foram formadas, chamamos essas diferentes revoluções
de épocas; as provas físicas lá estão, pois esses depósitos não ocorreram em
vinte e quatro horas.
Querem tomar muito
ao pé da letra as Escrituras Santas; elas são verdadeiras, mas é preciso saber
compreendê-las. Não se trata de fazer como esses israelitas que se deixaram
degolar, não ousando defender-se porque era dia de sábado. Se quisessem
matar-me num domingo, eu não aguardaria segunda-feira para me defender. Só há
sete dias na semana para nós; Deus não tem senão um dia ao todo, e esse dia não
tem começo nem fim; para o nosso bem ele quer que repousemos um dia por semana,
mas jamais repousa, nunca dorme e sua ação é incessante.
Nossos dias não
passam do aparecimento e do desaparecimento do outro que nos alumia; quando o
Sol se deita para nós, levanta-se para outros povos; em todas as horas do dia
ou da noite ele se ergue, brilha no zênite ou se deita. E quando as neves, os
gelos e as geadas nos fazem ficar ao pé do fogo, há outros povos que colhem
flores e frutas. E, depois, só há um mundo, só há um Sol; todas as estrelas que
vemos são sóis que iluminam os mundos como o nosso, e talvez mais perfeitos que o nosso. Deus é o autor de todos esses
mundos e de muitos outros que não vemos; assim, os seis dias da Criação são
seis épocas que duraram mais ou menos tempo, e que foram chamados dias para se
porem ao alcance de nossa maneira de ver.
Lemos com atenção as duas
brochuras do pai Chevelle, e certamente deveríamos contradizê-lo em vários
pontos. Mas as citações que acabamos de fazer não provam menos ideias de alto
alcance filosófico e que não são desprovidas de certo caráter de originalidade.
Sua obra é uma pequena enciclopédia, porque aí ele trata um pouco de tudo,
mesmo das coisas usuais. Anuncia para mais tarde um Manual do Herborista Médico, ou Tratamento
das doenças pelo emprego de plantas medicinais indígenas.
De onde lhe vêm todas essas ideias?
Sem dúvida ele leu: isto é evidente. Mas sua posição não lhe permitia ler muito
e, aliás, precisava de uma aptidão especial para aproveitar essas leituras e tratar
de assuntos tão abstratos. Viram-se poetas naturais saindo da classe operária,
mas é mais raro ver saírem metafísicos sem estudos prévios, e ainda menos da
classe dos cultivadores. O pai Chevelle apresenta, no seu gênero, um fenômeno
análogo ao desses pastores calculistas, que confundiram a Ciência. Não está aí
um sério assunto de estudo? São fatos. Ora, como todo efeito tem uma causa, os sábios
procuraram esta causa? Não, porque teria sido preciso sondar as profundezas da
alma. E os filósofos espiritualistas? Faltava-lhes a chave, única que lhes
podia dar a solução.
A esta questão o cepticismo
responde: Bizarria da Natureza; resultado da organização cerebral. O
Espiritismo diz: Inteligências largamente desenvolvidas em existências
anteriores e que, nada tendo perdido do que haviam adquirido, se refletem na existência
atual, servindo tal aquisição de base para novas aquisições.
Mas por que essas inteligências,
que deveriam ter brilhado numa esfera social elevada, estão hoje relegadas às
classes mais inferiores? Outro problema não menos insolúvel sem a chave fornecida
pelo Espiritismo. Diz este: provas ou expiações voluntárias escolhidas por
essas mesmas inteligências que, em vista de seu adiantamento moral, quiseram
nascer num meio ínfimo, fosse por humildade, fosse para adquirir conhecimentos
práticos que lhes serão aproveitados em outra existência. A Providência permite
que assim seja para sua própria instrução e para a dos homens, pondo estes no
caminho da origem das faculdades pela pluralidade das existências.
Tendo sido referidos na Sociedade Espírita de Paris, estes
fatos ensejaram a seguinte comunicação:
(Sociedade de Paris, 10 de novembro de 1865 – Médium: Sra. Breul)
Meus caros amigos,
na leitura feita por vosso presidente, de diversos fatos relatados por vosso irmão
Delanne, vistes que um notável trabalho filosófico foi dado a lume por um simples
camponês dos Vosges. Não é aqui o lugar para constatar quantos prodígios se
realizam neste momento, a fim de chocar os incrédulos e os sábios do mundo? Para
confundir esses homens que julgam ter o monopólio da Ciência, e nada querem admitir
fora de suas concepções mesquinhas, limitadas pela matéria?
Sim, neste tempo de
preparação para a renovação humanitária que os Espíritos do Senhor devem
realizar, pode-se reconhecer cada vez mais a verdade destas palavras do Cristo,
que os homens pouco compreenderam: Graças
te dou, meu Pai, Senhor do céu e da terra, por haveres ocultado estas coisas
aos sábios e aos poderosos e por as teres revelado aos pequeninos[3].
Quando digo sábios, não falo desses homens modestos que, infatigáveis pioneiros
da Ciência, fazem a Humanidade avançar, descobrindo-lhe as maravilhas que
revelam a bondade e o poder do Criador; mas dos que, enfatuados de seu saber, creem
com muito gosto que não pode existir aquilo que eles não descobriram,
patrocinaram e publicaram. Esses serão castigados em seu orgulho, e Deus já
permite que sejam confundidos pela superioridade dos trabalhos intelectuais,
que saem da pena de homens que estão longe de usar o barrete de doutor.
Como ao tempo do
Cristo, que quis honrar e resgatar o trabalhador, escolhendo nascer entre
artesãos, os anjos do Senhor agora recrutam seus auxiliares entre os corações
simples e honestos, entre homens de boa vontade que exercem as mais humildes
profissões.
Compreendei, pois,
amigos, que o orgulho é o maior inimigo do vosso adiantamento, e que a
humildade e a caridade são as únicas virtudes que agradam a Deus e atraem para
o homem esses divinos eflúvios que o ajudam a progredir e dele o fazem aproximar.
Luís
de França
[1] Revista Espírita
– Dezembro/1865 – Allan Kardec
[2] Duas brochuras, grande in-12. Preço: 1 fr. cada, na
casa do autor, em Joinville (Haute-Marne); em Bar-le-Duc, na casa Numa Rolin. –
O autor anuncia que completará seu trabalho com cinco outras brochuras, que
farão, ao todo, um volume.
[3] N. do T.: Mateus, 11:25.
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