terça-feira, 21 de abril de 2020

UM CAMPONÊS FILÓSOFO[1]



Allan Kardec

Decididamente o Espiritismo invade os campos. Os Espíritos querem provar sua existência tomando seus instrumentos em toda parte, mesmo fora do círculo dos adeptos, o que destrói qualquer suposição de conivência. Acabamos de ver a doutrina implantada num vilarejo do Aube, entre simples cultivadores, por uma manifestação espontânea. Eis um fato ainda mais notável, sob outro ponto de vista. O Sr. Delanne, nosso colega, escreve-nos o que segue:

...Durante as poucas horas que passei no vilarejo onde educam meu filho, um vinhateiro me deu duas brochuras que havia publicado sob esse título: Ideias filosóficas naturais e espontâneas sobre a existência em geral, a partir do princípio absoluto até o fim dos fins, da causa primeira até o infinito, pelo pai Chevelle, de Joinville (Haute-Marne): A primeira tem por objeto Deus, os anjos, a alma do homem, a alma animal ou instintiva; a segunda: as forças físicas, os elementos, a organização, o movimento[2].
Conforme esse título pomposo e os graves assuntos que abarca, pensareis tratar-se de um homem que empalideceu sobre os livros durante toda a sua vida. Desenganai-vos; esse filósofo metafísico é um humilde artesão, um verdadeiro filósofo de tamancos, pois vai, pelos vilarejos, vender legumes e outros produtos agrícolas.

Eis algumas passagens de seu prefácio:

Empreendi esta obra porque pensei que seria de alguma utilidade para o público. O homem se deve aos seus semelhantes; não é sua condição viver isolado e a sociedade tem direito de reclamar de cada indivíduo a comunicação de seus conhecimentos; o egoísmo é um vício intolerável.
A obra é inteiramente minha; não fui ajudado nem secundado por ninguém; nada copiei de alguém; é o fruto das meditações de toda a minha vida... Numerosas dificuldades se opuseram à execução de minha empresa; não as dissimulei. Para mim a miséria era a pior de todas; ela me impedia de agir, não me deixando tempo; sempre a suportei sem me lamentar; tinha aprendido o segredo de viver feliz sem fortuna, e esse segredo é sempre o meu melhor recurso.
...Dei minhas ideias, porque as escrevi à medida que me vinham, naturalmente, espontaneamente, conforme me chegavam pela reflexão e pela meditação.
...Em filosofia não se demonstram todas as existências por cálculos matemáticos; não se medem os Espíritos com um metro e não se os olham ao microscópio.
...Não se deve esperar encontrar em meu livro um estilo requintado, extremamente brilhante. Não fiz cursos; apenas fui à escola de meu vilarejo. Quando a gente aprendia as preces em latim e recitava bem o catecismo, já se era sábio o bastante.
...Naqueles tempos, era-se extremamente instruído quando se sabia fazer as quatro operações; vinham procurar-nos para medir os campos. Com dez anos eu era o primeiro da escola e meu velho pai sentia-se orgulhoso ao ver que vinham me procurar para achar o lugar onde deviam plantar um marco, ou escrever um bilhete ou recibo.
 Tenho, pois, o direito de pedir desculpas aos leitores, pela trivialidade de minha linguagem: não aprendi as regras da retórica e creio que o título de minha obra convém: Ideias naturais.
Íamos à escola de Todos os Santos até a Páscoa, e ficávamos em férias da Páscoa até Todos os Santos. Mas como meu pai, por mais pobre que fosse, não tinha medo de gastar alguns vinténs para me comprar livros, eu aprendia muito mais nos seis meses de férias, do que esquecia nos seis meses de aula.

Eis agora alguns fragmentos do capítulo sobre Deus:

Deus é o único que pode dizer: Eu sou aquele que é; é um e é tudo; tudo existe dele, nele e por ele e nada pode existir sem ele e fora dele; Ele é uno e, todavia, produziu o múltiplo e o divisível, um e outro ao infinito... Se eu pudesse bem definir Deus, eu seria deus; mas não pode haver dois deuses.
Deus é um todo infinito, indivisível, eterno, imutável; não tem limites no pequeno nem no grande... Um minuto e cem mil anos ou cem mil séculos são a mesma coisa para Deus; a eternidade não admite partilha; para ele não há passado nem futuro, é um eterno presente; para Deus o passado ainda é e o futuro já é; ele vê todos os tempos de uma vez; não há ontem nem amanhã; e, falando de seu filho, disse: eu vos gerei hoje.
A eternidade não se mede, como não se mede o infinito do espaço; são dois abismos onde não podemos chegar senão pela abstração, e aí nos perderíamos se os quiséssemos penetrar; são florestas virgens sem atalhos. Em lá chegando, somos forçados a parar.
Deus não pode dispensar-se de criar; seria apenas um Deus sem ação se não criasse e sua glória só seria para si próprio. Monotonia impossível. Deus cria eternamente; o começo da Criação, tomado no infinito, deve continuar ao infinito.
...Era preciso que criasse inteligências livres, porquanto, qual seria a existência dos seres que pensam, se não lhes fosse permitido pensar livremente? Onde estaria a glória de Deus, se suas criaturas não fossem livres de julgar dele? Seria o mesmo que ter ficado só; a adoração que elas lhe rendessem não passaria de uma quimera, de uma comédia dirigida para ele e por ele; ele teria sido o único espectador e o único ator.
 Para a glória de Deus, então, teria sido uma necessidade absoluta que as inteligências tivessem sido criadas absolutamente livres, com direito de julgar seu autor, de se conduzirem, no bem ou no mal, como quisessem. Era preciso que o mal fosse permitido para que o bem existisse; é impossível que um seja conhecido sem que se veja o outro.
Mas, ao mesmo tempo que Deus dá o livre-arbítrio às inteligências, também lhes dá esse foro íntimo, esse sentimento intelectual de sua liberdade de pensar, esse ato do espírito livre, que chamamos consciência, tribunal individual que adverte cada existência livre do valor de sua ação. Ninguém faz o mal sem o saber; só a vontade faz o pecado.
Também temos razões para presumir que os Espíritos ou anjos têm alguma parte no governo universal, pois foi recebido como dogma de fé que os homens são guardados pelos anjos e que cada um de nós tem seu anjo-de-guarda.
As inteligências, ou Espíritos desprendidos da matéria, bem podem ter, algumas vezes, influência sobre o espírito do homem. Quantas pessoas tiveram revelações que se realizaram, como Joana d’Arc e tantas outras de que falam os livros de História que li e que se podem encontrar. Mas não preciso saber de memória para lhes citar as passagens; busco as revelações em mim mesmo, e não alhures.
Até o momento que minha irmã mais velha morreu de cólera em Midrevay (Vosges), eu não tinha ouvido falar da existência de cólera em parte alguma. Não fazia a menor ideia de que minha irmã estivesse doente; eu a tinha visto mais saudável que nunca, não havendo, pois, qualquer motivo para me preocupar com ela. Eu a vi em sonho em minha casa, em Joinville: – ‘Meu Joseph, venho dizer-te que morri; sabes que sempre te amei muito, e eu mesma quis trazer-te a notícia de minha volta ao outro mundo’. No dia seguinte o carteiro trouxe uma carta anunciando a morte de minha irmã.
Ao receber a carta tarjada de negro, disse à minha mulher: ‘Conheces o sonho que te contei ontem; quem sabe não esteja aqui a realidade’? Eu não me enganava.
Algumas vezes tive visões, às quais só dei atenção quando se realizaram, mesmo que muito tempo depois. Nesses momentos eu não dormia; estava bem desperto, trabalhando. Isto me aconteceu umas três ou quatro vezes no curso de minha vida; delas só me lembro vagamente, mas tenho certeza. Não sou o único que tenha tido revelações mentais; outros provarão que tenho razão, o que talvez já foi provado.
 A alma animal não pode ser senão individual e, por conseguinte, indecomponível; portanto, a alma animal não morre. Já pensaram nela antes de mim e foi isto que motivou a doutrina da metempsicose. Se existe a metempsicose, só poderia ser entre indivíduos da mesma espécie: a alma vital ou animal de um mamífero não pode passar a uma árvore.
No que concerne à inteligência humana, é impossível que ela passe ao corpo de um animal; aí não poderia agir, pois a constituição física do animal não pode servir de habitação à inteligência humana, embora hajam assegurado que demônios se uniram e possuíram animais. Não posso acreditar que, em semelhantes organizações, eles possam fazer algo de razoável; já não lhes seria possível falar; não poderiam aniquilar o instinto, que agiria sempre, por bem ou por mal; é uma das leis estabelecidas pelo Criador; estas seriam indignas dele se se pudesse derrogá-las, se fosse possível modificá-las. Os feixes nervosos, ou, como dissemos acima, as estações telegráficas desta espécie não podem ser dirigidas pela inteligência.
Nestes últimos tempos tem-se falado muito do Espiritismo; algumas pessoas me dizem que este capítulo tem muitas relações com ele. Mas se assim é, será por puro acaso, pois é uma obra que jamais li, e da qual jamais ouvi falar uma só frase..

Eis agora as reflexões do autor sobre a Criação:

Todos os geólogos, todos os naturalistas estão de acordo que os dias de Deus não eram como os nossos, que são regulados pelo Sol. Com efeito, os dias de Deus na Criação não podiam ser regulados pelo Sol, porque, segundo os textos das Escrituras Sagradas, o Sol ainda não tinha sido criado, ou não aparecia; daí a palavra que nas santas escrituras, na linguagem em que estas foram escritas, tanto significa dia quanto significa tempo. Assim, o erro bem pode ser dos tradutores, que deveriam ter dito em seis tempos, em vez de em seis dias; e, depois, por que quereríamos fazer os dias de Deus tão curtos quanto os nossos, ele que é eterno?
Não que eu queira dizer que Deus não pudesse ter criado o mundo em seis dias, cada um de vinte e quatro horas, e que cada um desses anos valesse centenas de milhares de nossos anos. Se eu quisesse entendê-lo assim, estaria em contradição comigo mesmo, porque, em meu primeiro volume, eu disse que um minuto, cem mil anos ou cem mil séculos eram a mesma coisa para Deus.
Embora Deus só tenha disposto de um dia para cada criação indicada no Gênesis, entre cada um desses dias talvez houvesse milhões de anos e, mesmo, de séculos.
Quando se examinam as camadas da terra e como foram formadas, chamamos essas diferentes revoluções de épocas; as provas físicas lá estão, pois esses depósitos não ocorreram em vinte e quatro horas.
Querem tomar muito ao pé da letra as Escrituras Santas; elas são verdadeiras, mas é preciso saber compreendê-las. Não se trata de fazer como esses israelitas que se deixaram degolar, não ousando defender-se porque era dia de sábado. Se quisessem matar-me num domingo, eu não aguardaria segunda-feira para me defender. Só há sete dias na semana para nós; Deus não tem senão um dia ao todo, e esse dia não tem começo nem fim; para o nosso bem ele quer que repousemos um dia por semana, mas jamais repousa, nunca dorme e sua ação é incessante.
Nossos dias não passam do aparecimento e do desaparecimento do outro que nos alumia; quando o Sol se deita para nós, levanta-se para outros povos; em todas as horas do dia ou da noite ele se ergue, brilha no zênite ou se deita. E quando as neves, os gelos e as geadas nos fazem ficar ao pé do fogo, há outros povos que colhem flores e frutas. E, depois, só há um mundo, só há um Sol; todas as estrelas que vemos são sóis que iluminam os mundos como o nosso, e talvez mais perfeitos que o nosso. Deus é o autor de todos esses mundos e de muitos outros que não vemos; assim, os seis dias da Criação são seis épocas que duraram mais ou menos tempo, e que foram chamados dias para se porem ao alcance de nossa maneira de ver.

Lemos com atenção as duas brochuras do pai Chevelle, e certamente deveríamos contradizê-lo em vários pontos. Mas as citações que acabamos de fazer não provam menos ideias de alto alcance filosófico e que não são desprovidas de certo caráter de originalidade. Sua obra é uma pequena enciclopédia, porque aí ele trata um pouco de tudo, mesmo das coisas usuais. Anuncia para mais tarde um Manual do Herborista Médico, ou Tratamento das doenças pelo emprego de plantas medicinais indígenas.
De onde lhe vêm todas essas ideias? Sem dúvida ele leu: isto é evidente. Mas sua posição não lhe permitia ler muito e, aliás, precisava de uma aptidão especial para aproveitar essas leituras e tratar de assuntos tão abstratos. Viram-se poetas naturais saindo da classe operária, mas é mais raro ver saírem metafísicos sem estudos prévios, e ainda menos da classe dos cultivadores. O pai Chevelle apresenta, no seu gênero, um fenômeno análogo ao desses pastores calculistas, que confundiram a Ciência. Não está aí um sério assunto de estudo? São fatos. Ora, como todo efeito tem uma causa, os sábios procuraram esta causa? Não, porque teria sido preciso sondar as profundezas da alma. E os filósofos espiritualistas? Faltava-lhes a chave, única que lhes podia dar a solução.
A esta questão o cepticismo responde: Bizarria da Natureza; resultado da organização cerebral. O Espiritismo diz: Inteligências largamente desenvolvidas em existências anteriores e que, nada tendo perdido do que haviam adquirido, se refletem na existência atual, servindo tal aquisição de base para novas aquisições.
Mas por que essas inteligências, que deveriam ter brilhado numa esfera social elevada, estão hoje relegadas às classes mais inferiores? Outro problema não menos insolúvel sem a chave fornecida pelo Espiritismo. Diz este: provas ou expiações voluntárias escolhidas por essas mesmas inteligências que, em vista de seu adiantamento moral, quiseram nascer num meio ínfimo, fosse por humildade, fosse para adquirir conhecimentos práticos que lhes serão aproveitados em outra existência. A Providência permite que assim seja para sua própria instrução e para a dos homens, pondo estes no caminho da origem das faculdades pela pluralidade das existências.
Tendo sido referidos na Sociedade Espírita de Paris, estes fatos ensejaram a seguinte comunicação:

(Sociedade de Paris, 10 de novembro de 1865 – Médium: Sra. Breul)
Meus caros amigos, na leitura feita por vosso presidente, de diversos fatos relatados por vosso irmão Delanne, vistes que um notável trabalho filosófico foi dado a lume por um simples camponês dos Vosges. Não é aqui o lugar para constatar quantos prodígios se realizam neste momento, a fim de chocar os incrédulos e os sábios do mundo? Para confundir esses homens que julgam ter o monopólio da Ciência, e nada querem admitir fora de suas concepções mesquinhas, limitadas pela matéria?
Sim, neste tempo de preparação para a renovação humanitária que os Espíritos do Senhor devem realizar, pode-se reconhecer cada vez mais a verdade destas palavras do Cristo, que os homens pouco compreenderam: Graças te dou, meu Pai, Senhor do céu e da terra, por haveres ocultado estas coisas aos sábios e aos poderosos e por as teres revelado aos pequeninos[3]. Quando digo sábios, não falo desses homens modestos que, infatigáveis pioneiros da Ciência, fazem a Humanidade avançar, descobrindo-lhe as maravilhas que revelam a bondade e o poder do Criador; mas dos que, enfatuados de seu saber, creem com muito gosto que não pode existir aquilo que eles não descobriram, patrocinaram e publicaram. Esses serão castigados em seu orgulho, e Deus já permite que sejam confundidos pela superioridade dos trabalhos intelectuais, que saem da pena de homens que estão longe de usar o barrete de doutor.
Como ao tempo do Cristo, que quis honrar e resgatar o trabalhador, escolhendo nascer entre artesãos, os anjos do Senhor agora recrutam seus auxiliares entre os corações simples e honestos, entre homens de boa vontade que exercem as mais humildes profissões.
Compreendei, pois, amigos, que o orgulho é o maior inimigo do vosso adiantamento, e que a humildade e a caridade são as únicas virtudes que agradam a Deus e atraem para o homem esses divinos eflúvios que o ajudam a progredir e dele o fazem aproximar.
Luís de França




[1] Revista Espírita – Dezembro/1865 – Allan Kardec
[2] Duas brochuras, grande in-12. Preço: 1 fr. cada, na casa do autor, em Joinville (Haute-Marne); em Bar-le-Duc, na casa Numa Rolin. – O autor anuncia que completará seu trabalho com cinco outras brochuras, que farão, ao todo, um volume.
[3] N. do T.: Mateus, 11:25.

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