terça-feira, 28 de abril de 2020

Espíritos de Dois Sábios Incrédulos a seus Antigos Amigos da Terra[1]


Conhece-te a ti mesmo

Allan Kardec

Quando os mais incrédulos, os mais obstinados transpõem o limiar da vida corporal, são forçados a reconhecer que vivem sempre; que são Espíritos, pois não são mais carnais e, consequentemente, há Espíritos; que esses Espíritos se comunicam com os homens, desde que o fazem entre si. Mas a sua apreciação do mundo espiritual varia em razão de seu desenvolvimento moral, de seu saber ou de sua ignorância, da elevação ou da abjeção de sua alma. Quando encarnados, os dois Espíritos de que falamos pertenciam à classe dos homens de ciência e de alta inteligência.
Ambos eram incrédulos por natureza; mas, homens esclarecidos, sua incredulidade era compensada por eminentes qualidades morais. Assim, uma vez no mundo dos Espíritos, prontamente encararam as coisas em seu verdadeiro ponto de vista e reconhecem seu erro. Sem dúvida, nada há nisto de extraordinário e que não se veja todos os dias; se publicamos suas primeiras impressões, é por causa do seu lado eminentemente instrutivo.
Ambos morreram faz pouco tempo. O primeiro, o Sr. M. L., era cirurgião do hospital B..., e cunhado do Sr. A. Véron, membro da Sociedade Espírita de Paris. O segundo, Sr. Gui, era um sábio economista, amigo íntimo do Sr. Colliez, outro membro da Sociedade.
Inutilmente o Sr. Véron havia tentado trazer o cunhado às ideias espiritualistas; ao morrer, tornou-se mais acessível às suas instruções. Eis uma das primeiras comunicações que dele recebeu:

(Paris, 5 de outubro de 1865 – Médium: Sr. Desliens)
Meu caro cunhado, uma vez que estamos, a bem dizer, na intimidade, e desde que não receio tomar o lugar de alguém que vos pudesse ser mais útil que eu, venho com prazer ao vosso apelo, já que me solicitastes.
Não espereis, desde hoje, ver-me desdobrar todas as minhas faculdades espirituais. Sem dúvida eu poderia tentá-lo, e talvez com mais sucesso do que quando era vivo; mas a minha presunção orgulhosa está muito longe de mim, e se me julgava uma sumidade na Terra, aqui sou muito pequeno. Quanta gente que eu desdenhava e cuja proteção e ensinamentos me sinto feliz por encontrar hoje! Os ignorantes daqui de baixo muitas vezes são os sábios lá do alto; e quanto à nossa ciência, que julga tudo saber e nada quer admitir fora de suas decisões, é ilusória e limitada!
Ó orgulho humano! Por força do hábito, quanto tempo ainda ficarás nesta Terra, onde, depois de tantos séculos, o espírito de rotina bloqueia o progresso em sua marcha incessante? “Não conheço o fato; ele está fora de meus conhecimentos; portanto não existe.” Tal o nosso raciocínio aqui em baixo. É que, se o admitíssemos, ou, ao menos, se estudássemos esse fato, resultado de leis desconhecidas, teríamos de renunciar a sistemas errôneos, apoiados em grandes nomes que constituem nossa glória e, pior ainda, obrigados a confessar que nos enganamos.
Não, nós outros negadores encontramos um Galileu universal que nos vem dizer: Eu sou Espírito, estou vivo, fui homem e, vós mesmos, ó homens, fostes Espíritos e vos tornareis como eu, até que, por uma sucessão de encarnações, estejais depurados para subir outros degraus da escala infinita dos mundos... E nós negamos!
Mas, como dizia Galileu, após suas retratações: “E, contudo, se move”, o Espiritismo nos vem dizer: “E, contudo, os Espíritos estão aqui, manifestam-se e nenhuma negação poderia derrubar um fato”. O fato brutal existe; nada se pode contra ele. O tempo, esse grande educador, fará justiça de tudo, varrendo uns, instruindo outros.
Sede dos que se instruem. Fui ceifado na idade madura do meu orgulho e sofri a pena de minhas negações. Evitai minha queda, e que minhas faltas sejam proveitosas aos que imitam meu raciocínio passado, a fim de fugir do abismo de trevas donde vossos cuidados me retiraram.
Como vedes, ainda há perturbação em minha linguagem. Mais tarde poderei falar-vos com mais lógica. Sede indulgentes para com a minha juventude espiritual.
M... L...

Lida esta comunicação na Sociedade de Paris, o Espírito comunicou-se espontaneamente, ditando o seguinte:

(Sociedade de Paris, 20 de outubro de 1865 – Médium: Sr. Desliens)
Caro senhor Allan Kardec: Permiti a um Espírito, que os vossos estudos levaram a considerar o ser, a existência e Deus sob seu verdadeiro ponto de vista, vos testemunhe o seu reconhecimento. Nesta Terra ignorei vosso nome e vossos trabalhos. Talvez, se me tivessem falado de um e dos outros, eu tivesse usado de minha verve trocista, como fazia com todas as coisas tendentes a provar a existência de um espírito distinto do corpo. Eu estava cego: perdoai-me. Hoje, graças a vós, graças aos ensinamentos que os Espíritos espalharam e vulgarizaram por vossa mão, sou outro ser, tenho consciência de mim mesmo e vejo a minha meta. Quanto reconhecimento não vos devo, a vós e ao Espiritismo! Quem quer que me tenha conhecido e hoje lê o que é a expressão de meu pensamento, exclamará: “Este não pode ser o que conhecemos, aquele materialista radical, que nada admitia fora dos fenômenos brutos da Natureza”. Sem dúvida e, contudo, sou eu mesmo.
Meu caro cunhado, a quem devo sinceros agradecimentos, disse que cheguei a bons sentimentos em pouco tempo. Agradeço-lhe a amenidade a meu respeito; mas sem dúvida ele ignora quão longas são as horas de sofrimento resultante da inconsciência de se ser!... Eu acreditava no nada e fui punido por um nada fictício. Sentir-se ser e não poder manifestar seu ser; julgar-se disseminado em todos os restos esparsos que forma o corpo, tal foi minha posição durante mais de dois meses!... dois séculos!... Ah! As horas de sofrimento são longas; e se não se tivessem ocupado de me tirar dessa lamentável atmosfera de niilismo, se não me tivessem constrangido a vir a essas reuniões de paz e amor, onde eu não compreendia, não via e não ouvia, mas onde fluidos simpáticos agiam sobre mim e me despertavam, pouco a pouco, de meu pesado torpor espiritual, onde estaria eu ainda? meu Deus!...
Deus!... que doce nome a pronunciar por quem, durante tanto tempo, empenhou-se em negar esse pai tão grande e tão bom! Ah! meus amigos, moderai-me, porque hoje só temo uma coisa: tornar-me fanático dessas crenças que teria repelido como vis desatinos, se outrora tivessem vindo ao meu conhecimento!...
Nada direi hoje sobre os trabalhos de que vos ocupais; ainda estou muito novo, muito ignorante para ousar aventurar-me em vossas sábias dissertações. Já o sinto, mas não sei! Apenas vos direi isto, porque sei: Sim, os fluídos têm uma influência enorme como ação curadora, se não corporal, de que nada sei, pelo menos espiritual, porque experimentei a sua ação. Eu vos disse e repito com alegria e reconhecimento: eu ia, constrangido por uma força invencível, sem dúvida a de meu guia, às reuniões espíritas. Eu não via, nada ouvia e, contudo, uma ação fluídica, que eu não podia atinar, curou-me espiritualmente.
Agradeço de boa vontade a todos que adquiriram direitos eternos ao meu reconhecimento, tirando-me do caos onde eu havia caído, e vos peço, meus amigos, a bondade de me permitir vir assistir em silêncio às vossas sábias assembleias, pondo mais tarde minhas fracas luzes científicas à vossa disposição.
M... L...

Pergunta – Poderíeis dizer-nos, assistido por vosso guia, como pudestes reconhecer tão prontamente os vossos erros terrestres, ao passo que bom número de Espíritos, a quem não se poupa cuidados espirituais, ficam tanto tempo sem compreender os conselhos que lhes são dados?
Caro senhor, agradeço-vos a pergunta que houvestes por bem dirigir-me e que penso poder resolver eu mesmo, com a assistência de meu guia.
Sem dúvida podeis ver uma anomalia em minha transformação, pois, como dizeis, há seres que, malgrado todos os sentimentos que agem em seu favor, ficam muito tempo sem se deixar abrir os olhos. Não querendo abusar de vossa benevolência, dir-vos-ei em poucas palavras:
O Espírito que resiste à ação dos que agem sobre ele é novo em relação às noções morais. Pode ser um indivíduo instruído, mas completamente ignorante em relação à caridade e à fraternidade; numa palavra, desprovido de espiritualidade. É-lhe necessário aprender a vida da alma que, mesmo no estado de Espírito, lhe foi rudimentar. Para mim foi completamente diferente. Digo-vos que sou velho, em face de vossa vida, embora bastante jovem na eternidade. Tive noções de moral; acreditava na espiritualidade, que em mim ficou latente, porque um de meus pecados capitais, o orgulho, precisava dessa punição.
Eu, que tinha conhecimento da vida da alma numa existência anterior, fui condenado a deixar-me dominar pelo orgulho e a esquecer Deus e o princípio eterno que residia em mim... Ah! crede-o, só há uma espécie de cretinismo; o idiota que, conservando sua alma, não pode manifestar sua inteligência, é talvez menos lamentável do que aquele que, possuindo toda a sua inteligência, cientificamente falando, perdeu sua alma por algum tempo. É um idiotismo truncado, mas muito penoso.
M... L...

O outro Espírito, Sr. Gui, manifestou-se espontaneamente à Sociedade no dia da sessão especial, comemorativa dos mortos. Como dissemos, o Sr. Colliez, que o tinha conhecido particularmente, limitara-se a inscrevê-lo na lista dos Espíritos recomendados às preces. Embora suas opiniões fossem completamente diferentes das que tinha em vida, o Sr. Colliez o reconheceu pela forma da linguagem e, antes mesmo que fosse lida a sua assinatura, ele disse que deveria ser o Sr. Gui...

(Sociedade de Paris, 1º de novembro de 1865 – Médium: Sr. Leymarie)
Senhores... Permiti-me empregar esta expressão comum, mas pouco fraterna. Sou um recém-vindo, um recruta inesperado, e sem dúvida meu nome jamais feriu os ouvidos dos espíritas fervorosos. Contudo, nunca é tarde demais e quando cada família chora um ausente amado, venho a vós para vos exprimir meu arrependimento muito sincero.
Cercado de voltairianos, vivendo e pensando como eles, trazendo conforme a necessidade o meu óbolo e o meu trabalho para a propagação das ideias liberais e progressivas, acreditei fazer o bem; porque todo o mundo diz, mas nem todos o fazem. Assim, agi, e vos peço para não esquecerdes os homens de ação. Em sua esfera, eles sacudiram esse torpor de tantos séculos que, a bem dizer, tinha velado o futuro. Rasgando o véu, nós também tínhamos afastado a noite, o que é muito, quando o inimigo intolerante está à porta e busca riscar de preto cada raio de luz. Quantas vezes procuramos em nós mesmos a solução desta questão: “Ah! se os mortos pudessem falar!” Reflexão profunda, absorvente, que nos matava na idade das desilusões, quando todo homem marcado por um acaso aparente tornava-se uma luz na multidão.
Aí está a família!... Jovens frontes cândidas pedem os nossos beijos de esperança, e nada podemos dar, porque esta esperança nós a selamos sob uma grande pedra muito fria, que chamamos incredulidade. Mas hoje creio, venho a vós cheio de esperança e fé, dizer-vos: “Espero no futuro, creio em Deus; os Espíritos de Béranger, de Royer-Collard, de Casimir Perrier... não me desmentirão”.
A vós que desejais o progresso, que quereis a luz, direi:
Os mortos falam, falam todos os dias; mas, cegos que sois e que éramos! Pressentis a verdade sem afirmá-la abertamente; como Galileu, vós vos dizeis todas as noites: “E, contudo, ela gira!” Mas baixais os olhos ante o ridículo, o respeito à coisa julgada!
Vós todos que éreis meus fiéis, que semanalmente me concedíeis vossa tarde, sabeis em que me tornei.
Sábios que perscrutais os segredos da Natureza, perguntastes à folha morta, ao pé de erva, ao inseto, à matéria em que se tornavam no grande concerto dos mortos terrenos?
Perguntastes as suas funções de mortos? Pudestes inscrever em vossos alfarrábios esta grande lei da Natureza, que parece destruir-se anualmente para reviver esplêndida e soberba, lançando o desafio da imortalidade aos vossos pensamentos passageiros e mortais?
Doutor sábio, que diariamente inclinais a fronte preocupada sobre as doenças misteriosas que destroem os corpos humanos de maneira múltipla, por que tantos suores pelo futuro, tanto amor pela família, tanta previdência para assegurar a honorabilidade de um nome, pela fortuna e pela moralidade de vossos filhos, tanto respeito pela virtude de vossas companheiras?
Homens de progresso, que trabalhais constantemente para transformar as ideias e as tornar mais belas, por que tantos cuidados, vigílias e decepções, se essa lei eterna do progresso absorve todas as vossas faculdades e as decuplica, a fim de prestar homenagem ao movimento geral de harmonia e de amor, ante o qual vos inclinais?
Ah! meus amigos, quem quer que sejais na Terra: mecânicos, legisladores profundos, políticos, artistas, ou todos vós que inscreveis em vossa bandeira: Economia política, crede-me, vossos trabalhos desafiam a morte; todas as vossas aspirações a rejeitam como uma negação e quando, por vossas descobertas e vossa inteligência, deixastes um traço, uma lembrança, uma honorabilidade sem mácula, desafiastes a morte, como tudo o que vos cerca! Oferecestes um sacrifício ao poder criador e, como a Natureza, a matéria, como tudo que vive e quer viver, vencestes a morte. Como eu outrora, como tantos outros, vos retemperais no aniquilamento do corpo que é a vida, ides para o Eterno para vencer a eternidade!...
Mas não a vencereis, porque ela é vossa amiga. O Espírito é a eternidade, o eterno, e eu vo-lo repito: tudo o que morre fala de vida e de luz. A morte fala ao vivo; os mortos vêm falar. Só eles têm a chave de tudo, e é por eles que vos prometo outras explicações.
Gui

(Sociedade Espírita de Paris, 17 de novembro de 1865 – Médium: Sr. Leymarie)
Fugiram da epidemia e, neste pânico singular, quantas falências morais, quantas defecções vergonhosas! É que a morte se torna a mais violenta expiação para todos os que violam as leis da mais estrita equidade. A morte é o desconhecido para a fé vacilante.
As religiões diversas, com o paraíso e o inferno, não puderam firmar-se naqueles que possuem a abnegação, em vão ensinada pelos bens terrenos; nenhum ponto de referência, nada de bases certas; difusão no ensino divino: isto não é certeza. Assim, salvo algumas exceções, que terror, que falta de caridade, que egoísmo nesse salve-se-quem-puder geral dos satisfeitos! Crer em Deus, estudar sua vontade nas afirmações inteligentes, estar certo de que as leis da existência estão subordinadas a leis superiores divinas, que tudo medem com justiça, que dispensam a todos, em diversas existências, o sofrimento, a alegria, o trabalho, a miséria e a fortuna, é, parece-me, o que buscam todas as sábias pesquisas, todas as interrogações da Humanidade. Ter a sua certeza não é a verdadeira força em tudo? Se o corpo esgotado dá liberdade ao Espírito, a fim de que este viva segundo as aptidões fluídicas que são a sua essência, se esta verdade se torna palpável, evidente como um raio de sol; se as leis que encadeiam matematicamente as diversas fases da existência terrena e extraterrena, ou da erraticidade, tornam-se para nós tão claramente demonstradas quanto um problema algébrico, então não teríeis em mão o segredo tanto procurado, o porquê de todas as vossas objeções, a explicação racional da fraqueza dos vossos profundos estudos em economia política, fraqueza terrificante para a teoria, porque a prática destrói em um dia o trabalho da vida de um homem?
É por isso, amigos, que venho suplicar-vos que leiais O Livro dos Espíritos; não vos detenhais na letra, mas possuí-lhe o espírito. Pesquisadores inteligentes, encontrareis novos elementos para modificar o vosso e o ponto de vista dos homens que vos estudam. Certos da pluralidade das existências, encarareis melhor a vida; definindo-a melhor, sereis fortes. Homens de letras, plêiade pobre e bendita dareis à Humanidade uma semente tanto mais séria quão verdadeira. E quando virem os fortes, os sábios crer e ensinar as máximas fortes e consoladoras amar-se-ão melhor e não fugirão mais ao suposto mal invisível; a vontade de todos, homogeneidade poderosa, destruirá todas essas fermentações gasosas envenenadas, única fonte das epidemias.
O estudo dos fluidos, feito de um outro ponto de vista, transformará a Ciência; observações novas alumiarão a estrada fecunda de nossos jovens estudantes, que não mais irão, como orgulhosos, mostrar ao estrangeiro a sua intolerância de linguagem e a sua ignorância; não serão mais o escárnio da Europa, porque os mortos amados lhes terão dado a fé e esta religião do Espírito, que primeiro moraliza, para depois elevar às regiões serenas do saber e da caridade.
Gui




[1] Revista Espírita – Dezembro/1865 – Allan Kardec

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