Conhece-te a ti mesmo
Allan Kardec
Quando os mais incrédulos, os
mais obstinados transpõem o limiar da vida corporal, são forçados a reconhecer
que vivem sempre; que são Espíritos, pois não são mais carnais e, consequentemente,
há Espíritos; que esses Espíritos se comunicam com os homens, desde que o fazem
entre si. Mas a sua apreciação do mundo espiritual varia em razão de seu
desenvolvimento moral, de seu saber ou de sua ignorância, da elevação ou da
abjeção de sua alma. Quando encarnados, os dois Espíritos de que falamos pertenciam
à classe dos homens de ciência e de alta inteligência.
Ambos eram incrédulos por
natureza; mas, homens esclarecidos, sua incredulidade era compensada por
eminentes qualidades morais. Assim, uma vez no mundo dos Espíritos, prontamente
encararam as coisas em seu verdadeiro ponto de vista e reconhecem seu erro. Sem
dúvida, nada há nisto de extraordinário e que não se veja todos os dias; se
publicamos suas primeiras impressões, é por causa do seu lado eminentemente
instrutivo.
Ambos morreram faz pouco tempo.
O primeiro, o Sr. M. L., era cirurgião do hospital B..., e cunhado do Sr. A.
Véron, membro da Sociedade Espírita de Paris. O segundo, Sr. Gui, era um sábio economista,
amigo íntimo do Sr. Colliez, outro membro da Sociedade.
Inutilmente o Sr. Véron havia
tentado trazer o cunhado às ideias espiritualistas; ao morrer, tornou-se mais
acessível às suas instruções. Eis uma das primeiras comunicações que dele
recebeu:
(Paris, 5 de outubro de 1865 – Médium: Sr. Desliens)
Meu caro cunhado,
uma vez que estamos, a bem dizer, na intimidade, e desde que não receio tomar o
lugar de alguém que vos pudesse ser mais útil que eu, venho com prazer ao vosso
apelo, já que me solicitastes.
Não espereis, desde
hoje, ver-me desdobrar todas as minhas faculdades espirituais. Sem dúvida eu
poderia tentá-lo, e talvez com mais sucesso do que quando era vivo; mas a minha
presunção orgulhosa está muito longe de mim, e se me julgava uma sumidade na Terra, aqui sou muito
pequeno. Quanta gente que eu desdenhava e cuja proteção e ensinamentos me sinto
feliz por encontrar hoje! Os ignorantes daqui de baixo muitas vezes são os sábios
lá do alto; e quanto à nossa ciência, que julga tudo saber e nada quer admitir
fora de suas decisões, é ilusória e limitada!
Ó orgulho humano!
Por força do hábito, quanto tempo ainda ficarás nesta Terra, onde, depois de
tantos séculos, o espírito de rotina bloqueia o progresso em sua marcha
incessante? “Não conheço o fato; ele está fora de meus conhecimentos; portanto
não existe.” Tal o nosso raciocínio aqui em baixo. É que, se o admitíssemos,
ou, ao menos, se estudássemos esse fato, resultado de leis desconhecidas,
teríamos de renunciar a sistemas errôneos, apoiados em grandes nomes que
constituem nossa glória e, pior ainda, obrigados a confessar que nos enganamos.
Não, nós outros
negadores encontramos um Galileu universal que nos vem dizer: Eu sou Espírito,
estou vivo, fui homem e, vós mesmos, ó homens, fostes Espíritos e vos tornareis
como eu, até que, por uma sucessão de encarnações, estejais depurados para
subir outros degraus da escala infinita dos mundos... E nós negamos!
Mas, como dizia
Galileu, após suas retratações: “E, contudo, se move”, o Espiritismo nos vem
dizer: “E, contudo, os Espíritos estão aqui, manifestam-se e nenhuma negação
poderia derrubar um fato”. O fato brutal existe; nada se pode contra ele. O tempo,
esse grande educador, fará justiça de tudo, varrendo uns, instruindo outros.
Sede dos que se
instruem. Fui ceifado na idade madura do meu orgulho e sofri a pena de minhas
negações. Evitai minha queda, e que minhas faltas sejam proveitosas aos que
imitam meu raciocínio passado, a fim de fugir do abismo de trevas donde vossos cuidados
me retiraram.
Como vedes, ainda há
perturbação em minha linguagem. Mais tarde poderei falar-vos com mais lógica.
Sede indulgentes para com a minha juventude espiritual.
M...
L...
Lida esta comunicação na Sociedade
de Paris, o Espírito comunicou-se espontaneamente, ditando o seguinte:
(Sociedade de Paris, 20 de outubro de 1865 – Médium: Sr. Desliens)
Caro senhor Allan
Kardec: Permiti a um Espírito, que os vossos estudos levaram a considerar o
ser, a existência e Deus sob seu verdadeiro ponto de vista, vos testemunhe o
seu reconhecimento. Nesta Terra ignorei vosso nome e vossos trabalhos. Talvez,
se me tivessem falado de um e dos outros, eu tivesse usado de minha verve
trocista, como fazia com todas as coisas tendentes a provar a existência de um
espírito distinto do corpo. Eu estava cego: perdoai-me. Hoje, graças a vós,
graças aos ensinamentos que os Espíritos espalharam e vulgarizaram por vossa
mão, sou outro ser, tenho consciência de mim mesmo e vejo a minha meta. Quanto
reconhecimento não vos devo, a vós e ao Espiritismo! Quem quer que me tenha
conhecido e hoje lê o que é a expressão de meu pensamento, exclamará: “Este não
pode ser o que conhecemos, aquele materialista radical, que nada admitia fora dos
fenômenos brutos da Natureza”. Sem dúvida e, contudo, sou eu mesmo.
Meu caro cunhado, a
quem devo sinceros agradecimentos, disse que cheguei a bons sentimentos em
pouco tempo. Agradeço-lhe a amenidade a meu respeito; mas sem dúvida ele ignora
quão longas são as horas de sofrimento resultante da inconsciência de se
ser!... Eu acreditava no nada e fui punido por um nada fictício. Sentir-se ser
e não poder manifestar seu ser; julgar-se
disseminado em todos os restos esparsos que forma o corpo, tal foi minha
posição durante mais de dois meses!... dois séculos!... Ah! As horas de
sofrimento são longas; e se não se tivessem ocupado de me tirar dessa
lamentável atmosfera de niilismo, se não me tivessem constrangido a vir a essas
reuniões de paz e amor, onde eu não compreendia, não via e não ouvia, mas onde
fluidos simpáticos agiam sobre mim e me despertavam, pouco a pouco, de meu pesado
torpor espiritual, onde estaria eu ainda? meu Deus!...
Deus!... que doce
nome a pronunciar por quem, durante tanto tempo, empenhou-se em negar esse pai
tão grande e tão bom! Ah! meus amigos, moderai-me, porque hoje só temo uma
coisa: tornar-me fanático dessas crenças que teria repelido como vis desatinos,
se outrora tivessem vindo ao meu conhecimento!...
Nada direi hoje
sobre os trabalhos de que vos ocupais; ainda estou muito novo, muito ignorante
para ousar aventurar-me em vossas sábias dissertações. Já o sinto, mas não sei!
Apenas vos direi isto, porque sei: Sim, os fluídos têm uma influência enorme como
ação curadora, se não corporal, de que nada sei, pelo menos espiritual, porque
experimentei a sua ação. Eu vos disse e repito com alegria e reconhecimento: eu
ia, constrangido por uma força invencível, sem dúvida a de meu guia, às
reuniões espíritas. Eu não via, nada ouvia e, contudo, uma ação fluídica, que
eu não podia atinar, curou-me espiritualmente.
Agradeço de boa
vontade a todos que adquiriram direitos eternos ao meu reconhecimento,
tirando-me do caos onde eu havia caído, e vos peço, meus amigos, a bondade de
me permitir vir assistir em silêncio às vossas sábias assembleias, pondo mais tarde
minhas fracas luzes científicas à vossa disposição.
M...
L...
Pergunta –
Poderíeis dizer-nos, assistido por vosso guia, como pudestes reconhecer tão
prontamente os vossos erros terrestres, ao passo que bom número de Espíritos, a
quem não se poupa cuidados espirituais, ficam tanto tempo sem compreender os conselhos
que lhes são dados?
Caro senhor,
agradeço-vos a pergunta que houvestes por bem dirigir-me e que penso poder
resolver eu mesmo, com a assistência de meu guia.
Sem dúvida podeis
ver uma anomalia em minha transformação, pois, como dizeis, há seres que,
malgrado todos os sentimentos que agem em seu favor, ficam muito tempo sem se
deixar abrir os olhos. Não querendo abusar de vossa benevolência, dir-vos-ei em
poucas palavras:
O Espírito que
resiste à ação dos que agem sobre ele é novo
em relação às noções morais. Pode ser um indivíduo instruído, mas
completamente ignorante em relação à caridade e à fraternidade; numa palavra,
desprovido de espiritualidade. É-lhe necessário
aprender a vida da alma que, mesmo no estado de Espírito, lhe foi rudimentar.
Para mim foi completamente diferente. Digo-vos que sou velho, em face de vossa
vida, embora bastante jovem na eternidade. Tive noções de moral; acreditava na
espiritualidade, que em mim ficou latente, porque um de meus pecados capitais,
o orgulho, precisava dessa punição.
Eu, que tinha
conhecimento da vida da alma numa existência anterior, fui condenado a
deixar-me dominar pelo orgulho e a esquecer Deus e o princípio eterno que
residia em mim... Ah! crede-o, só há uma espécie de cretinismo; o idiota que, conservando
sua alma, não pode manifestar sua inteligência, é talvez menos lamentável do
que aquele que, possuindo toda a sua inteligência, cientificamente falando,
perdeu sua alma por algum tempo. É um idiotismo truncado, mas muito penoso.
M...
L...
O outro Espírito, Sr. Gui,
manifestou-se espontaneamente à Sociedade no dia da sessão especial, comemorativa
dos mortos. Como dissemos, o Sr. Colliez, que o tinha conhecido
particularmente, limitara-se a inscrevê-lo na lista dos Espíritos recomendados
às preces. Embora suas opiniões fossem completamente diferentes das que tinha
em vida, o Sr. Colliez o reconheceu pela forma da linguagem e, antes mesmo que fosse
lida a sua assinatura, ele disse que deveria ser o Sr. Gui...
(Sociedade de Paris, 1º de novembro de 1865 – Médium: Sr. Leymarie)
Senhores...
Permiti-me empregar esta expressão comum, mas pouco fraterna. Sou um
recém-vindo, um recruta inesperado, e sem dúvida meu nome jamais feriu os
ouvidos dos espíritas fervorosos. Contudo, nunca é tarde demais e quando cada família
chora um ausente amado, venho a vós para vos exprimir meu arrependimento muito
sincero.
Cercado de
voltairianos, vivendo e pensando como eles, trazendo conforme a necessidade o
meu óbolo e o meu trabalho para a propagação das ideias liberais e
progressivas, acreditei fazer o bem; porque todo o mundo diz, mas nem todos o
fazem. Assim, agi, e vos peço para não esquecerdes os homens de ação. Em sua
esfera, eles sacudiram esse torpor de tantos séculos que, a bem dizer, tinha velado
o futuro. Rasgando o véu, nós também tínhamos afastado a noite, o que é muito,
quando o inimigo intolerante está à porta e busca riscar de preto cada raio de
luz. Quantas vezes procuramos em nós mesmos a solução desta questão: “Ah! se os
mortos pudessem falar!” Reflexão profunda, absorvente, que nos matava na idade
das desilusões, quando todo homem marcado por um acaso aparente tornava-se uma
luz na multidão.
Aí está a
família!... Jovens frontes cândidas pedem os nossos beijos de esperança, e nada
podemos dar, porque esta esperança nós a selamos sob uma grande pedra muito
fria, que chamamos incredulidade.
Mas hoje creio, venho a vós cheio de esperança e fé, dizer-vos: “Espero no
futuro, creio em Deus; os Espíritos de Béranger, de Royer-Collard, de Casimir
Perrier... não me desmentirão”.
A vós que desejais o
progresso, que quereis a luz, direi:
Os mortos falam,
falam todos os dias; mas, cegos que sois e que éramos! Pressentis a verdade sem
afirmá-la abertamente; como Galileu, vós vos dizeis todas as noites: “E,
contudo, ela gira!” Mas baixais os olhos ante o ridículo, o respeito à coisa
julgada!
Vós todos que éreis
meus fiéis, que semanalmente me concedíeis vossa tarde, sabeis em que me
tornei.
Sábios que perscrutais
os segredos da Natureza, perguntastes à folha morta, ao pé de erva, ao inseto,
à matéria em que se tornavam no grande concerto dos mortos terrenos?
Perguntastes as suas
funções de mortos? Pudestes inscrever em vossos alfarrábios esta grande lei da
Natureza, que parece destruir-se anualmente para reviver esplêndida e soberba,
lançando o desafio da imortalidade aos vossos pensamentos passageiros e mortais?
Doutor sábio, que
diariamente inclinais a fronte preocupada sobre as doenças misteriosas que destroem
os corpos humanos de maneira múltipla, por que tantos suores pelo futuro, tanto
amor pela família, tanta previdência para assegurar a honorabilidade de um
nome, pela fortuna e pela moralidade de vossos filhos, tanto respeito pela
virtude de vossas companheiras?
Homens de progresso,
que trabalhais constantemente para transformar as ideias e as tornar mais
belas, por que tantos cuidados, vigílias e decepções, se essa lei eterna do
progresso absorve todas as vossas faculdades e as decuplica, a fim de prestar homenagem
ao movimento geral de harmonia e de amor, ante o qual vos inclinais?
Ah! meus amigos,
quem quer que sejais na Terra: mecânicos, legisladores profundos, políticos,
artistas, ou todos vós que inscreveis em vossa bandeira: Economia política, crede-me, vossos trabalhos desafiam a morte;
todas as vossas aspirações a rejeitam como uma negação e quando, por vossas
descobertas e vossa inteligência, deixastes um traço, uma lembrança, uma honorabilidade
sem mácula, desafiastes a morte, como tudo o que vos cerca! Oferecestes um
sacrifício ao poder criador e, como a Natureza, a matéria, como tudo que vive e
quer viver, vencestes a morte. Como eu outrora, como tantos outros, vos
retemperais no aniquilamento do corpo que é a vida, ides para o Eterno para vencer
a eternidade!...
Mas não a vencereis,
porque ela é vossa amiga. O Espírito é a eternidade, o eterno, e eu vo-lo
repito: tudo o que morre fala de vida e de luz. A morte fala ao vivo; os mortos
vêm falar. Só eles têm a chave de tudo, e é por eles que vos prometo outras
explicações.
Gui
(Sociedade Espírita de Paris, 17 de novembro de 1865 – Médium: Sr.
Leymarie)
Fugiram da epidemia
e, neste pânico singular, quantas falências morais, quantas defecções vergonhosas!
É que a morte se torna a mais violenta expiação para todos os que violam as
leis da mais estrita equidade. A morte é o desconhecido para a fé vacilante.
As religiões
diversas, com o paraíso e o inferno, não puderam firmar-se naqueles que possuem
a abnegação, em vão ensinada pelos bens terrenos; nenhum ponto de referência,
nada de bases certas; difusão no ensino divino: isto não é certeza. Assim,
salvo algumas exceções, que terror, que falta de caridade, que egoísmo nesse
salve-se-quem-puder geral dos satisfeitos! Crer em Deus, estudar sua vontade
nas afirmações inteligentes, estar certo de que as leis da existência estão
subordinadas a leis superiores divinas, que tudo medem com justiça, que
dispensam a todos, em diversas existências, o sofrimento, a alegria, o
trabalho, a miséria e a fortuna, é, parece-me, o que buscam todas as sábias
pesquisas, todas as interrogações da Humanidade. Ter a sua certeza não é a
verdadeira força em tudo? Se o corpo esgotado dá liberdade ao Espírito, a fim de
que este viva segundo as aptidões fluídicas que são a sua essência, se esta
verdade se torna palpável, evidente como um raio de sol; se as leis que
encadeiam matematicamente as diversas fases da existência terrena e
extraterrena, ou da erraticidade, tornam-se para nós tão claramente
demonstradas quanto um problema algébrico, então não teríeis em mão o segredo
tanto procurado, o porquê de todas as vossas objeções, a explicação racional da
fraqueza dos vossos profundos estudos em economia política, fraqueza
terrificante para a teoria, porque a prática destrói em um dia o trabalho da
vida de um homem?
É por isso, amigos,
que venho suplicar-vos que leiais O Livro
dos Espíritos; não vos detenhais na letra, mas possuí-lhe o espírito.
Pesquisadores inteligentes, encontrareis novos elementos para modificar o vosso
e o ponto de vista dos homens que vos estudam. Certos da pluralidade das
existências, encarareis melhor a vida; definindo-a melhor, sereis fortes.
Homens de letras, plêiade pobre e bendita dareis à Humanidade uma semente tanto
mais séria quão verdadeira. E quando virem os fortes, os sábios crer e ensinar as
máximas fortes e consoladoras amar-se-ão melhor e não fugirão mais ao suposto
mal invisível; a vontade de todos, homogeneidade poderosa, destruirá todas
essas fermentações gasosas envenenadas, única fonte das epidemias.
O estudo dos
fluidos, feito de um outro ponto de vista, transformará a Ciência; observações
novas alumiarão a estrada fecunda de nossos jovens estudantes, que não mais
irão, como orgulhosos, mostrar ao estrangeiro a sua intolerância de linguagem e
a sua ignorância; não serão mais o escárnio da Europa, porque os mortos amados
lhes terão dado a fé e esta religião do Espírito, que primeiro moraliza, para
depois elevar às regiões serenas do saber e da caridade.
Gui
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