sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

O QUE ESTÁ CONTIDO NOS ENSINOS DO CRISTO[1]



Robert Dale Owen

Agora pois permanecem a fé, a esperança e a caridade, essas três virtudes das quais a caridade é a maior.
I AOS CORÍNTIOS, XIII, 13
Venha a nós o vosso reino.
MATEUS, VI, 10

"Arrependei-vos, porque vem perto o reino de Deus". Foram estas, como já vimos, as primeiras palavras recordadas dos ensinos públicos do Cristo.
Os fariseus lhe perguntaram: Quando chegará o reino de Deus? Ele lhes respondeu: O reino de Deus não virá com ostentação. Ninguém poderá dizer: Ei-lo aqui! Ei-lo ali! Vede-o! O reino de Deus está dentro de vós.
Está dentro de nós a luz, o divino e inextinguível espírito de verdade. Quão longe vagamos, esquecidos dessas palavras do Cristo, buscando aquilo que se acha no nosso próprio coração!
Buscais por meio de profundos estudos descobrir Deus, seu reino e seu Espírito. O Espírito de Deus, porém, não está no sopro forte do Dogmatismo, devastando tudo em sua passagem; não está no terremoto dos credos guerreiros, dilacerando e convulsionando o mundo religioso; não está no zelo ardente que persegue e consegue; mas na voz tranquila e débil que, sem nunca se extinguir, fala na alma de cada um de nós. Obscurecida frequentemente, abafada muitas vezes por influências adversas e insignificantes cuidados, desprezada, desconhecida; mas, apesar disso, existindo seguramente no âmago da nossa alma, nos homens inteligentes e nos selvagens, nos nômades proscritos da civilização, como no cristão que vive mais conforme com os preceitos do seu Senhor.
Venha a nós o vosso reino.
Repetimos muitas vezes essas palavras da prece do Cristo, sem buscarmos compreender perfeitamente seu sentido profundo, sem nos lembrarmos de que o reino cujo advento imploramos é, se aceitamos a interpretação do Cristo, uma soberania cuja vinda não podemos testemunhar, à qual não podemos determinar sede num ponto designado, visto que o trazemos dentro de nós. Pedimos, mesmo sem conhecê-lo, que o Espírito de Deus se firme dentro de nós e nos dirija. Pedimos a soberania da consciência lúcida, a vinda do desenvolvimento ético e espiritual e que, quando ele venha, seja o poder diretor da nossa raça.
A consciência é o delegado de Deus, dirigindo com justiça o coração do homem. É somente sob a sua direção que o homem terá uma vida satisfatória. Essa é a doutrina do Cristo. Com que simplicidade e força ele o exprimiu'' "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados".
Fome e sede, não da vitória de um dogma ou de uma seita; não de ver triunfantes um ritual, certas cerimônias, as longas e palavrosas preces nas sinagogas; não de prata e ouro, mas fome e sede de justiça, que é o reino dos céus dentro de nós. Cristo manda fazer o bem por amor do bem; praticar a justiça sem calcular a sua recompensa, pois esta pertence a Deus. Aceitai as consequências.
Não indagueis sobre o que vos será dado.
As coisas podem parecer ir mal, os homens podem buscar desvirtuá-las, persegui-las e desacreditá-las: pouco deve importar isso, quando o próprio Jesus declara abençoado o que pratica a justiça. Que o abandonem, que mesmo lhe arranquem o pão da boca; só no fim ele será saciado. Se buscarmos cumprir a justiça de Deus antes de tudo, tudo o mais, diz-nos o Cristo, nos será dado de sobressalente.
Ele, porém, apresenta isso como um fato e não como um motivo. O motivo deve ser a fome e a sede de justiça e não a perspectiva do lucro. Conformarmo-nos com a lei humana por uma obediência forçada, com temor ao castigo e com a esperança de uma recompensa. A lei de Deus só deve ser cumprida por amor.
Cristo em parte alguma disse que eram abençoados os que praticassem o bem para alcançarem o céu ou escapar do inferno.
O temor não entra como móvel na sua doutrina. Ele não buscou como salmista, inculcar o medo de Deus; sua sabedoria tinha uma origem mais elevada. Baseava-se no amor perfeito e o amor repele o temor.
Um poeta exprimiu perfeitamente o pensamento cristão quando disse:
Somente pelo bem, ao bem amemos; não por temor ao inferno ou à previdência, das venturas do céu seguir devemos os ditames da nossa consciência.

Esse assunto básico de uma religião, é de grande importância prática. Apreciaremos mal a constituição espiritual do Cristo, se não percebermos que ele procura reformar o mundo, despertando no homem o adormecido amor da justiça, por amor dela mesma; e não estimulando a sua cobiça ou fazendo jogo com o seu temor:
Se um menino, saindo das mãos de seus mestres, tornar-se um homem honesto unicamente por julgar que a honestidade o livra das penas da lei, ele poderá ser um negociante honrado e, como tal, recomendável, mas não será um discípulo do Cristo. Se um professor de religião exibir o mais ardente zelo pela sua Igreja, atuado por um motivo não mais elevado que aquele que levou Luiz XIV a revogar o Édito de Nantes, isto é, a salvação de sua alma do inferno, ele poderá ser útil membro da Igreja, mas não um cristão.

Não há cristianismo sem a base permanente do amor à justiça.
Não desesperemos de que um dia a moralidade pública e privada será a base de civilização. Uma pequena previsão nos animará. Quando lançamos os olhos para a nossa juventude, não nos virá o pensamento de que não somos o que devíamos ser, de que a nossa natureza prometia mais do que a educação nos deu? Não sentiremos muitas vezes, que havia em nós germes de virtudes que raramente foram estudados, generosos impulsos que não procuramos excitar, nobres aspirações que nunca tentamos pôr em prática? Serão somente essas as convicções que nos virão? Levantar-nos-emos no templo para agradecer a Deus por não sermos como os outros homens? Não está escrito que o homem foi feito à imagem do seu Criador?
Não devemos desanimar pelo fato dessa mudança implicar uma reforma radical para o egoísmo hoje dominante, apesar de ser produzida para a nossa regeneração. O Cristo admitia. Ele via quão cego era o mundo que o cercava, em relação às coisas do céu, e por isso disse: "Não verá o reino de Deus senão aquele,. que nascer de novo".
Aqui se interpõe uma consideração que se sugere por si mesma.
A consciência só, por mais ativa que seja, não basta para reformar o mundo, se não tiver instrução e desenvolvimento.
O mais sincero amor da justiça só pode dar frutos segundo a luz e os conhecimentos adquiridos; mas, essa luz pode ser fraca e esses conhecimentos escassos. Além do resultado que devemos esperar dele para o progresso geral da civilização, não nos facultará o sistema do Cristo os elementos que ainda nos faltam?
A resposta prende-se ao assunto de que me ocupei no capítulo 2°., da parte primeira desta obra; Jesus, como aí vos fiz lembrar, ao terminar sua vida terrena, declarou aos que o seguiam:
Eu tinha ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não o posso fazer agora. Contudo, o espírito de verdade quando vier, vos ensinará toda a verdade, porque não falará por si mesmo, mas só dirá o que tiver ouvido.

Se o Cristo, em virtude do seu poder, previu isso, é porque tal entra nos planos de Deus, que em certa fase do progresso humano permitia que as revelações espirituais ao homem viessem perenemente de um mundo mais adiantado que este; se o autor do Cristianismo indica aí a fonte, onde ele crê que a consciência, se pode aqui empregar a palavra, irá beber a luz e os conhecimentos, a vós deixo o cuidado de decidir. Nas páginas precedentes vos forneci os elementos para essa decisão.
Rogo-vos, contudo, observeis que tendes de decidir, não se a massa toda das alegadas comunicações espirituais de hoje poderá educar convenientemente à consciência, mas, se quando presidirem no meio a prudência e reverência, um Espírito de verdade, vindo de uma esfera ultramundana e falando, não por si mesmo, mas pelo que aprendeu na sua celestial morada, não será o mensageiro espiritual prometido pelo Cristo para regenerar a humanidade. Prometido condicionalmente, pois que a base de tudo, a condição indispensável para que o fato se dê é a lealdade para com a consciência. A promessa foi feita àqueles que têm fome e sede de justiça. É a sua fome e a sua sede que se saciarão na fonte espiritual.
Reprimo a tentação de alargar-me sobre isso. Uma recapitulação não quer dizer uma repetição do trabalho. Permiti, contudo, que faça uma negação, desnecessária para as almas pensadoras, mas precisa para evitar uma interpretação má.
Longe de mim, asseverar que em nossos dias e nesta geração, a severidade seja sempre deslocada, que as penalidades legais sejam inúteis; ainda menos, que não se deva ensinar às crianças os sofrimentos que lhes advirão da prática do mal e os gozos que resultarão para elas da prática do bem, pois que isso é a rigorosa obrigação do educador.
Digo, porém, que o Cristo repele, no sentido que ligamos a esta palavra, a força, o medo e o lucro egoístico, como móvel dos nossos atos.
Somente vos faço lembrar que para a reforma do mundo o Cristo confia em influências mais elevadas, mais nobres, num impulso tão poderoso como a fome e a sede, na caridade que não visa o interesse, regozija-se com a verdade e prende os homens como por uma cadeia de aço, à prática do que é justo.
Outros ensinamentos característicos do Cristo se nos manifestam claramente:
O ensino do perdão em grau ainda desconhecido entre nós; o perdão concedido ao irmão que nos ofende, mesmo setenta vezes sete vezes; a promessa do perdão àqueles que perdoam, pois que a delinquente, excomungada pela sociedade, foi mandada embora, livre e sem condenação, apenas com o conselho de não mais pecar.

A beneficência, principalmente em favor dos cansados e sobrecarregados, é outra feição pronunciada desses ensinos, do mesmo modo que o auxílio ao pobre, o socorro ao estrangeiro, ao faminto, ao nu, ao enfermo e ao encarcerado, considerando que o que fazemos a eles, fazemos a Deus.
Somos prevenidos contra o perigo das riquezas, contra o exagerado cuidado pelo dia de amanhã, contra a ansiosa procura de empregos e posições. Os tesouros que a traça e a ferrugem destroem, os assentos mais elevados nos festins, os primeiros lugares nas sinagogas, são declarados coisas indignas de ocupar a atenção do homem.
São prescritas a mansidão, a paz e mesmo a não resistência ao mal que nos queiram fazer; a pureza nos pensamentos e nos atos, a resignação à vontade de Deus.
Pelo Cristo somos animados a ter fé e esperança, baseando-nos na certeza de que o Pai conhece as nossas necessidades e as satisfará, antes que nós lhe peçamos; mas, sobretudo e além de tudo, como sinal e testemunho do nosso apostolado, como um perfeito cumprimento dos preceitos de Deus, somos concitados a fazer alguma coisa maior que a fé, maior que a esperança, e que se eleva como a lei suprema: ‒ a caridade.
Isso não é mais que um esboço, pois o espaço não me permite dizer mais. Não merecerá esse sistema espiritual a honra de ser considerado como inspirado? Não será ele proveitoso como doutrina, como censura, como correção e como instrução no que se refere à retidão?
Possa esta geração prosseguir nas doutrinas espíritas, sem nunca se afastar dos seus preceitos!
Com o auxílio dos Espíritos que pela triunfal transformação da morte partiram antes de nós para a feliz região sideral, com o auxílio da plácida voz que nos aconselha e do Cristo, nosso guia principal, com segurança e proveito interrogaremos o Inexplorado. Precisamos conhecer suas leis; precisamos da evidência que os seus fenômenos nos dão. Nas fronteiras dos dois mundos encontramos influências muito mais necessárias, muito mais poderosas que qualquer das terrenas: influências benévolas, destinadas a reerguer a moral degenerada e auxiliar o progresso espiritual.




[1] Região em Litígio – Robert Dale Owen

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