terça-feira, 28 de janeiro de 2020

DOIS IRMÃOS IDIOTAS[1]



Allan Kardec

Numa família de operários de Paris encontram-se duas crianças acometidas de idiotia. Até a idade de 5 ou 6 anos desfrutavam de todas as suas faculdades intelectuais, relativamente bem desenvolvidas. A menos que seja provocada por uma causa acidental, a idiotia nas crianças resulta quase sempre de uma parada no desenvolvimento dos órgãos, manifestando-se, por conseguinte, desde o nascimento. Além disso, o que é de notar aqui é o fato de duas crianças atingidas pela mesma enfermidade em condições idênticas.
Podendo esse duplo fenômeno ser objeto de estudo interessante, do ponto de vista psicológico, o Sr. Desliens, um dos membros da Sociedade de Paris, foi introduzido na família por um amigo, a fim de poder dar contas à Sociedade. Eis o resultado de suas observações:
Disse ele: Quando o pai soube do objetivo de minha visita passou a um gabinete, de onde voltou trazendo nos braços um ser que, por suas feições, mais se parecia a um animal do que a um foco de inteligência. Trouxe igualmente um segundo no mesmo estado de embrutecimento, mas com aparências físicas mais humanas. Nenhum som inteligível escapava da boca desses infortunados; gritinhos agudos, grunhidos roucos são suas únicas manifestações ruidosas. Quase sempre um riso bestial lhes anima a fisionomia. O mais velho chama-se Alfred, e o segundo, Paulin.
Alfred, atualmente com dezessete anos, nasceu com toda a sua inteligência, que se manifestou mesmo com certa precocidade. Aos três anos falava convenientemente e compreendia os menores sinais. Teve então uma ligeira doença, depois da qual perdeu o uso da palavra e as faculdades mentais. Os tratamentos médicos apenas levaram ao esgotamento das forças vitais, hoje traduzido por um raquitismo absoluto.
Este ser, que de um homem nem mesmo guarda a aparência, tem, contudo, sentimento; ama a seus pais e a seu irmão, e sabe manifestar simpatia ou repulsão por aqueles que o cercam.
Compreende tudo quanto lhe dizem; olha com olhos brilhantes e inteligentes; procura incessantemente, mas sem resultado, responder quando lhe falam de coisas que o interessam. Tem um medo invencível da morte e não pode ver um carro fúnebre sem procurar esconder-se. Certo dia, tendo sua tia lhe dito, por brincadeira, que o envenenaria se ele continuasse a ser mau, compreendeu tão bem que durante mais de um ano se negou a receber qualquer alimento de sua mão, embora tenha um apetite extraordinário.
Do ponto de vista corporal, Paulin, de 15 anos, tem uma aparência mais humana. Traz no rosto embrutecido a marca de um idiotismo absoluto. Contudo ama, limitando-se a isto suas manifestações exteriores. Também nasceu com toda a razão, que conservou integral até os seis anos. Gostava muito do irmão. A essa idade adoeceu e passou pelas mesmas fases do mais velho.
Ultimamente foi acometido por uma doença de largo curso, depois da qual parece compreender melhor o que lhe dizem. O cura e os padres da paróquia fizeram a família saber que havia possessão do demônio e que era preciso exorcizar os meninos. Os pais hesitaram.
Contudo, fatigados com a insistência daqueles senhores, e temendo perder o auxílio que recebiam por causa dos filhos, concordaram.
Mas, então, aqueles senhores sustentaram que, de fato, teria havido possessão numa época anterior, mas que hoje já não se tratava disto e que nada mais havia a fazer. É preciso dizer, em louvor aos pais, que sua ternura por essas infortunadas criaturas jamais foi desmentida e que elas têm sido constantemente objeto dos mais afetuosos cuidados.
Os senhores eclesiásticos renunciaram sabiamente ao exorcismo, que só teria levado a um fracasso. As crianças não apresentam nenhum dos caracteres da obsessão, no sentido do Espiritismo, e tudo prova que a causa do mal é puramente patológica. Em ambos a idiotia se produziu em consequência de uma doença que, indubitavelmente, ocasionou a atrofia dos órgãos da manifestação do pensamento. Mas é fácil ver, por trás desse véu, que existe um pensamento ativo, que encontra um obstáculo invencível à sua livre emissão. A inteligência dessas crianças, durante os primeiros anos, nelas prova Espíritos adiantados, que mais tarde se acharam contidos em laços muito apertados para que pudessem manifestar-se. Num envoltório em condições normais teriam sido homens inteligentes; e quando a morte os tiver libertado de seus entraves, recobrarão o livre uso de suas faculdades.
Esse constrangimento imposto ao Espírito deve ter uma causa moral, providencial e essa causa deve ser justa, já que Deus é a fonte de toda justiça. Ora, como esses meninos nada fizeram nesta existência que pudesse merecer um castigo qualquer, é preciso admitir que pagam a dívida de uma existência anterior, a menos que se negue a justiça de Deus. Eles nos oferecem uma prova da necessidade da reencarnação, essa chave que resolve tantos problemas e que, diariamente, projeta luz sobre tantas questões ainda obscuras. (Vide O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nº 6: “Causas anteriores das aflições terrenas”) [2].

A respeito do assunto, foi dada a seguinte comunicação na Sociedade de Paris, no dia 7 de julho de 1865. (Médium: Sr. Desliens).
A perda da inteligência nos dois idiotas a que nos referimos é, certamente, explicável do ponto de vista científico.
Cada um deles teve uma curta doença; pode-se, pois, concluir com razão que os órgãos cerebrais foram afetados. Mas por que esse acidente ocorreu após a manifestação evidente de todas as suas faculdades, contrariamente ao que, em geral, se passa na idiotia?
Repito: toda perturbação da inteligência ou das funções orgânicas pode ser explicada fisiologicamente, seja qual for a causa primeira, considerando-se que o Criador estabeleceu leis para as relações entre a inteligência e os órgãos de transmissão, leis que não podem ser derrogadas. A perturbação dessas relações é uma consequência mesma dessas leis, e pode ferir o culpado por suas faltas anteriores: aí está a expiação.
Por que esses dois seres foram feridos juntos? Porque participaram da mesma vida; como estavam ligados durante a provação, devem estar reunidos na vida de expiação.
Por que sua inteligência a princípio se manifestou, ao contrário do que geralmente acontece em casos semelhantes? Do ponto de vista da intenção providencial, é uma das mil nuanças da expiação, que tem sua razão de ser para o indivíduo, mas cujo motivo muitas vezes seria difícil de sondar, por isso mesmo que é individual. É preciso aí ver, também, um desses fatos que diariamente vêm confirmar, pela observação atenta, as bases da Doutrina Espírita, e sancionar, pela evidência, os princípios da reencarnação.
Não vos esqueçais, também, de que os pais têm sua parte no que aqui se passa. Sua ternura para com esses seres, que não lhes oferecem nenhuma compensação, é uma grande prova.
Devem ser felicitados por não haverem falido, porque essa compensação que não encontram no mundo, encontrá-la-ão mais tarde. Dizei a vós mesmos que os cuidados e a afeição que prodigalizam a esses dois pobres seres bem poderiam ser uma reparação em relação a eles, reparação que o estado de necessidade da família torna ainda mais meritório.
Moki




[1] Revista Espírita – Agosto/1865 – Allan Kardec
[2] N. do T.: No original, por engano, consta o nº 66, em vez do 6. (Em O Evangelho segundo o Espiritismo consta apenas o subtítulo: “Causas anteriores das aflições”).

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