terça-feira, 13 de agosto de 2019

CRIANÇA AFETADA DE MUTISMO


CRIANÇA AFETADA DE MUTISMO[1]



Uma senhora nos transmitiu o seguinte fato:
Uma de minhas filhas tem um menino de três anos que, desde o nascimento, lhe tem causado as mais vivas inquietações. Restabelecida sua saúde em fins de agosto último, apenas andava e só dizia papá, mamã; o restante de sua linguagem não passava de uma mistura de sons inarticulados. Há cerca de um mês, depois de infrutíferas tentativas para que o filho pronunciasse as palavras mais usuais, tentativas sempre repetidas sem sucesso, minha filha deitou-se muito triste com essa espécie de mutismo, muito desolada porque seu marido, capitão de longo curso, quando retornasse de uma ausência que já durava mais de um ano, não acharia mudança na maneira de falar do filho. Contudo, ela foi despertada às cinco horas da manhã pela voz da criança, que articulava distintamente as letras A, B, C, D, que jamais lhe tinham tentado fazer pronunciar. Acreditando sonhar, sentou-se na cama; inclinando a cabeça para o berço, o rosto perto do da criança, que dormia, ouviu-a repetir em voz alta, por diversas vezes, as letras A, B, C, acentuando cada uma por um leve movimento de cabeça, após o que pronunciava a letra D de forma bem carregada.
Às seis horas, quando entrei em seu quarto, a criança ainda dormia, mas a mãe, feliz e emocionada por ter ouvido o filho pronunciar essas letras, não mais retomara o sono. Ao despertar o pequeno, e desde então, em vão tentamos fazê-lo dizer essas letras, que jamais tinha ouvido dizer, quando as disse no sono, pelo menos nesta vida; contudo, todos os nossos ensaios fracassaram. Mesmo ainda hoje ele diz A, B, mas nos foi impossível obter para o C e o D mais que dois sons, um da garganta, outro do nariz, que de modo algum lembram as duas letras que queríamos que ele dissesse.
Não é a prova de que esse menino já viveu? Paro aqui, pois não me sinto bastante instruída para ousar concluir. Preciso aprender ainda, ler muito tudo quanto trata do Espiritismo, não para me convencer: O Espiritismo responde a tudo, ou, pelo menos, a quase tudo; mas, repito, senhor, não sei bastante. Ainda o saberei; não me falta o desejo. Deus, que não me abandonou nestes dezessete anos de viuvez; Deus, que me ajudou a educar os filhos e os encaminhar na vida; Deus, em que tenho fé, proverá o que me falta, porque nele espero e lhe peço de todo o coração para que permita aos Espíritos bons que me esclareçam e me guiem para o bem. Orai também por mim, senhor, pois estou em comunhão de pensamento convosco e, acima de tudo, desejo marchar no bom caminho.

Este fato é, sem sombra de dúvida, o resultado de conhecimentos adquiridos anteriormente. Se há uma aptidão inata, é a que se revela espontaneamente durante o sono do corpo, quando nenhuma circunstância poderia tê-la feito desenvolver-se no estado de vigília. Se as ideias fossem um produto da matéria, por que uma ideia nova iria surgir quando a matéria estivesse entorpecida, ao passo que não só é nula, mas impossível de exprimir quando os órgãos estão em plena atividade? A causa primeira, pois, não pode estar na matéria. É assim que, a cada passo, o materialismo se choca contra problemas cuja solução é incapaz de dar. Para que uma teoria seja verdadeira e completa, é preciso que não seja desmentida por nenhum fato. O Espiritismo não formula nenhuma prematuramente, a menos que seja a título de hipótese, caso em que se guarda de dá-la como verdade absoluta, mas apenas como assunto de estudo. Essa a razão por que marcha com segurança.
No caso de que se trata, é, pois, evidente que não tendo o Espírito aprendido em vigília o que diz durante o sono, forçoso é que tenha aprendido algures; desde que não foi nesta vida, deve ter sido em outra e, ainda, numa existência terrestre, na qual falava francês, já que pronuncia letras francesas. Como explicarão o fato os que negam a pluralidade das existências ou a reencarnação na Terra?
Mas resta saber como é que o Espírito, desperto, não possa dizer o que articula no sono? Eis a explicação dada por um Espírito à Sociedade de Paris.

(24 de novembro de 1864 – Médium: Sra. Cazemajour)
É uma inteligência que poderá ainda ficar velada por algum tempo, pelo sofrimento material da reencarnação na qual o Espírito teve muita dificuldade em se submeter e que, momentaneamente, aniquilou as suas faculdades. Mas o seu guia o ajuda com terna solicitude a sair desse estado pelos conselhos, o encorajamento e as lições que lhe dá, durante o sono do corpo, lições que não são perdidas e que se acharão vivazes quando essa fase de entorpecimento houver passado, e que será determinada por um choque violento, uma emoção extrema. Para isso é necessária uma crise desse gênero. Deve-se estar atento para isto, mas não temer a idiotia, pois não é o caso.
Há aqui um ensinamento importante e, até certo ponto, novo: o da primeira educação dada a um Espírito encarnado por um Espírito desencarnado. Sem dúvida certos sábios desdenhariam o fato como muito pueril e sem importância; nele não veriam senão uma bizarrice da Natureza, ou o explicariam por uma superexcitação cerebral, que dilata momentaneamente as faculdades, pois é assim que explicam todas as faculdades mediúnicas. Por certo seria concebível, em alguns casos, a exaltação numa pessoa adulta, cuja imaginação sobe pelo que vê ou pelo que ouve, mas não se compreenderia o que pudesse sobreexcitar o cérebro de uma criança de três anos, que dorme. Eis, pois, um fato inexplicável por essa teoria, ao passo que encontra solução natural e lógica pelo Espiritismo. O Espiritismo não desdenha nenhum fato, por mais insignificante que seja em aparência; ele os espreita, observa-os e os estuda todos. É assim que progride a ciência espírita, à medida que os fatos se apresentam para atestar ou completar sua teoria. Se a contradisserem, ele lhes busca outra explicação.

Uma carta de 30 de dezembro de 1864, escrita por um amigo da família, contém o seguinte:
“Uma crise” – disseram os Espíritos – “determinada por um choque violento, uma emoção extrema livrará a criança do entorpecimento de suas faculdades”. Os Espíritos disseram a verdade; a crise ocorreu por um choque violento, e eis de que maneira. A criança deu causa a que sua avó sofresse um tombo terrível, no qual por pouco não partiu a cabeça, esmagando a criança. Desde esse trauma o menino surpreende os pais a todo instante, pronunciando frases inteiras, como esta: “Cuidado mamã, para não cair”.
A articulação das letras durante o sono do garoto era, muito evidentemente, um efeito mediúnico, pois resultava do exercício que o Espírito lhe orientava fazer. Numa sessão posterior da Sociedade, em que absolutamente não se ocupavam do caso em questão, foi dada espontaneamente a seguinte dissertação, vindo confirmar e desenvolver o princípio desse gênero de mediunidade.


[1] Revista Espírita – Fevereiro/1865 – Allan Kardec

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