A LOCUÇÃO DO SR. ALLAN KARDEC AOS
ESPÍRITAS DE BRUXELAS E ANTUÉRPIA, EM 1864
Publicamos
esta alocução a pedido de grande número de pessoas que nos testemunharam o
desejo de conservá-la, e porque ela tende a fazer considerar o Espiritismo sob
um aspecto de certo modo novo. A Revista Espírita de Antuérpia reproduziu-a
integralmente.
Senhores e
caros irmãos espíritas. Apraz-me dar-vos este título, porque, embora eu não
tenha o privilégio de conhecer todas as pessoas presentes nesta reunião, quero
crer que aqui estamos em família e todos em comunhão de pensamentos e de
sentimentos. Mesmo admitindo que nem todos os assistentes fossem simpáticos às
nossas ideias, não os confundiria menos no sentimento fraterno que deve animar
os verdadeiros espíritas para com todos os homens, sem distinção de opinião.
Não obstante,
é aos nossos irmãos de crença que me dirijo mais especialmente, para
exprimir-lhes a satisfação que sinto de me achar entre eles e de oferecer-lhes,
em nome da Sociedade de Paris, a saudação de fraternidade espírita.
Eu já havia
tido a prova de que o Espiritismo conta, nesta cidade, numerosos adeptos
sérios, devotados e esclarecidos, compreendendo perfeitamente o objetivo moral
e filosófico da doutrina; sabia que aqui encontraria corações simpáticos, e
isto foi motivo determinante para que eu correspondesse ao insistente e grato
convite que me foi feito por vários dentre vós, de aqui fazer uma pequena
visita este ano. A acolhida tão amável e cordial que recebi fará que leve de
minha estada a mais agradável lembrança.
Certamente eu
teria o direito de envaidecer-me pela acolhida que me tem sido dispensada nos
diferentes centros que visito, se não soubesse que esses testemunhos se dirigem
muito menos ao homem do que à doutrina, da qual sou humilde representante, e
devem ser consideradas como uma profissão de fé, uma adesão aos nossos
princípios. É assim que os encaro, no que me concerne pessoalmente.
Aliás, se as
viagens que faço de vez em quando aos centros espíritas só devessem ter como
resultado a satisfação pessoal, eu as consideraria inúteis e delas me absteria.
Mas, além de contribuírem para estreitar os laços de fraternidade entre os
adeptos, também têm a vantagem de fornecer-me elementos de observação e de estudo,
jamais perdidos para a doutrina.
Independentemente
dos fatos que possam servir ao progresso da ciência, aí recolho os materiais da
história futura do Espiritismo, os documentos autênticos sobre o movimento da ideia
espírita, os elementos mais ou menos favoráveis ou contrários que ela encontra,
conforme as localidades, a força ou a fraqueza e as manobras de seus
adversários, os meios de combater estes últimos, o zelo e o devotamento de seus
verdadeiros defensores.
Entre estes
últimos, devem colocar-se em posição de destaque todos os que militam pela
causa com coragem, perseverança, abnegação e desinteresse, sem segunda intenção
pessoal, que buscam o triunfo da doutrina pela doutrina, e não pela satisfação
de seu amor-próprio; enfim, aqueles que, por seu exemplo, provam que a moral
espírita não é uma palavra vã, e se esforçam por justificar esta notável
afirmação de um incrédulo:
Com uma tal
doutrina, não se pode ser espírita sem ser homem de bem.
Não há centro
espírita onde eu não tenha encontrado um número mais ou menos grande desses
pioneiros da obra, desses arroteadores de terreno, desses lutadores
infatigáveis que, sustentados por uma fé sincera e esclarecida, pela
consciência de cumprir um dever, não desanimam ante nenhuma dificuldade,
encarando seu devotamento como dívida de reconhecimento pelos benefícios morais
que receberam do Espiritismo. É justo fiquem perdidos para os nossos
descendentes os nomes daqueles de que se honra a doutrina e que um dia não
possam ser inscritos no panteão espírita?
Infelizmente,
ao lado destes por vezes se acham pessoas de má índole, os impacientes da
causa, que, não calculando o alcance de suas palavras e de seus atos, podem
comprometê-la; os que, por zelo irrefletido, por ideias intempestivas e
prematuras, sem o querer fornecem armas aos nossos adversários. Depois vêm
aqueles que, não considerando o Espiritismo senão pela superfície, sem serem
tocados no coração, por seu próprio exemplo dão uma falsa ideia de seus
resultados e de suas tendências morais.
Eis aí, sem
sombra de dúvida, o maior escolho com que se deparam os sinceros propagadores
da doutrina, pois muitas vezes veem a obra, que tão penosamente esboçaram,
desfeita justamente por aqueles que os deveriam secundar. Está provado que o
Espiritismo é mais entravado pelos que o compreendem mal do que pelos que não o
compreendem absolutamente, e, mesmo, pelos inimigos declarados. E é de notar
que os que o compreendem mal geralmente têm a pretensão de o compreender melhor
que os outros; e não é raro ver neófitos que, ao cabo de alguns meses,
pretendem dar lições àqueles que adquiriram experiência em estudos sérios. Tal
pretensão, que denuncia o orgulho, é uma prova evidente da ignorância dos
verdadeiros princípios da doutrina.
Contudo, que
os espíritas sinceros não desanimem: é o resultado do momento de transição por
que vivemos. As ideias novas não podem estabelecer-se de repente e sem
obstáculos; como lhes é preciso varrer as ideias antigas, forçosamente
encontram adversários que as combatem e as repelem, sem falar nas criaturas que
as tomam em sentido contrário, que as exageram ou desejam acomodá-las a seus
gostos e opiniões pessoais. Mas chega o momento em que as ideias contraditórias
caem por si mesmas, uma vez conhecidos e compreendidos os verdadeiros
princípios pela maioria. Já vedes o que sucedeu com todos os sistemas isolados,
surgidos na origem do Espiritismo; todos caíram ante a observação mais rigorosa
dos fatos, ou só ainda encontram alguns desses partidários tenazes que, em
tudo, se aferram às suas ideias primitivas, sem darem um passo à frente. A
unidade se fez na crença espírita com muito mais rapidez do que se esperava. É
que os Espíritos, em todos os pontos, vieram confirmar os princípios
verdadeiros, de sorte que hoje, entre os adeptos do mundo inteiro, há uma
opinião predominante que, se ainda não goza da unanimidade absoluta, é,
incontestavelmente, a da imensa maioria.
Donde se
segue que aquele que quiser marchar na contramão desta opinião, encontrando
pouco ou nenhum eco, condena-se ao isolamento. Aí está a experiência para o
demonstrar.
Para remediar
o inconveniente que acabo de assinalar, isto é, para prevenir as consequências
da ignorância e das falsas interpretações, é preciso maior empenho na
vulgarização das ideias justas e na formação de adeptos esclarecidos, cujo
número crescente neutralizará a influência das ideias errôneas.
Minhas
visitas aos centros espíritas, naturalmente, têm por objetivo principal
auxiliar os nossos irmãos em crença em suas tarefas. Assim, eu as aproveito
para lhes dar instruções que possam necessitar, como desenvolvimento teórico ou
aplicação prática da doutrina, tanto quanto me é possível fazê-lo. Como é sério
o fim dessas visitas, e exclusivamente no interesse da doutrina, não busco
ovações, que nem são do meu gosto, nem do meu caráter. Minha maior satisfação é
encontrar-me com amigos sinceros, devotados, com os quais nos podemos entreter
sem constrangimento e esclarecer-nos mutuamente, por uma discussão amistosa, em
que cada um traz o contributo de suas próprias observações.
Nessas
excursões não vou pregar aos incrédulos; jamais convoco o público para
catequizá-lo, pois não vou fazer propaganda; só compareço a reuniões de adeptos
nas quais meus conselhos são desejados e possam ser úteis; eu os dou de bom
grado aos que julgam deles necessitar; abstenho-me de dá-los aos que se julgam
bastante esclarecidos para os dispensar. Numa palavra, só me dirijo aos homens
de boa vontade.
Se,
excepcionalmente, se insinuassem nessas reuniões pessoas atraídas somente pela
curiosidade, ficariam desapontadas, porquanto aí nada encontrariam que as
pudesse satisfazer; e, caso estivessem animadas de sentimento hostil ou
desabonador, o caráter eminentemente grave, sincero e moral da assembleia e dos
assuntos nela tratados tiraria qualquer pretexto plausível para a sua
malevolência. Tais são os pensamentos que exprimo nas diversas reuniões às
quais sou chamado para assistir, a fim de que não se equivoquem quanto às
minhas intenções.
Afirmei no
início que eu não era senão o representante da doutrina. Algumas explicações
sobre o seu verdadeiro caráter naturalmente chamarão vossa atenção para um
ponto essencial que, até agora, não foi considerado suficientemente. Na
verdade, vendo a rapidez dos progressos desta doutrina, haveria mais glória em
dizer-me seu criador; meu amor-próprio aí encontraria o seu salário; mas não
devo fazer minha parte maior do que ela é; longe de o lamentar, eu me felicito,
porque, então, a doutrina não passaria de uma concepção individual, que poderia
ser mais ou menos justa, mais ou menos engenhosa, mas que, por isso mesmo,
perderia sua autoridade. Poderia ter partidários, talvez fizesse escola, como
muitas outras, mas certamente não teria adquirido, em alguns anos, o caráter de
universalidade que a distingue.
Eis um fato
capital, senhores, que deve ser proclamado bem alto. Não, o Espiritismo não é
uma concepção individual, um produto da imaginação; não é uma teoria, um
sistema inventado para a necessidade de uma causa; tem sua fonte nos fatos da
própria Natureza, em fatos positivos, que se produzem a cada instante sob os
nossos olhos, mas cuja origem não se suspeitava. É, pois, resultado da
observação; numa palavra, uma ciência: a ciência das relações entre o mundo
visível e o mundo invisível; ciência ainda imperfeita, mas que se completa
todos os dias por novos estudos e que, tende certeza, ocupará o seu lugar ao
lado das ciências positivas. Digo positivas, porque toda ciência que repousa sobre
fatos é uma ciência positiva, e não puramente especulativa.
O Espiritismo
nada inventou, porque não se inventa o que está na Natureza. Newton não
inventou a lei da gravitação; esta lei universal existia antes dele. Cada um a
aplicava e lhe sentia os efeitos, embora não a conhecessem.
O
Espiritismo, por sua vez, vem mostrar uma nova lei, uma nova força da Natureza:
a que reside na ação do Espírito sobre a matéria, lei tão universal quanto a da
gravitação e da eletricidade, conquanto ainda desconhecida e negada por certas
pessoas, como o foram todas as outras leis na época de suas descobertas. É que
os homens geralmente têm dificuldade em renunciar às suas ideias preconcebidas
e, por amor-próprio, custa-lhes reconhecer que estavam enganados, ou que outros
tenham podido encontrar o que eles mesmos não encontraram.
Mas, afinal,
como esta lei repousa sobre fatos, e contra os fatos não há negação que possa
prevalecer, terão de render-se à evidência, como os mais recalcitrantes o
fizeram quanto ao movimento da Terra, a formação do globo e os efeitos do
vapor.
Por mais que
acusem os fenômenos de ridículos, não podem impedir a existência daquilo que é.
Assim, o
Espiritismo procurou a explicação dos fenômenos de uma certa ordem e que, em
todos os tempos, se produziram de maneira espontânea. Mas, sobretudo, o que o favoreceu
nessas pesquisas é que lhe foi dado, até certo ponto, o poder de produzi-los e
de provocá-los. Encontrou nos médiuns instrumentos adequados a tal efeito, como
o físico encontrou na pilha e na máquina elétrica os meios de reproduzir os
efeitos do raio. É fácil compreender que isto não passa de uma comparação; não
pretendo estabelecer uma analogia.
Mas há aqui
uma consideração de alta importância: é que, em suas pesquisas, ele não
procedeu por via de hipóteses, como o acusam; não supôs a existência do mundo
espiritual para explicar os fenômenos que tinha sob as vistas; procedeu por
meio da análise e da observação; dos fatos remontou à causa e o elemento espiritual
se lhe apresentou como força ativa; só o proclamou depois de havê-lo
constatado.
Como força e como lei da Natureza, a ação do elemento espiritual abre,
assim, novos horizontes à Ciência, dando-lhe a chave de uma imensidão de
problemas incompreendidos. Mas, se a descoberta de leis puramente materiais produziu
revoluções materiais no mundo, a do elemento espiritual nele prepara uma revolução
moral, pois muda totalmente o curso das ideias e das crenças mais arraigadas;
mostra a vida sob outro aspecto; mata a superstição e o fanatismo; desenvolve o
pensamento, e o homem, em vez de arrastar-se na matéria, de circunscrever sua
vida entre o nascimento e a morte, eleva-se ao infinito; sabe donde vem e para
onde vai; vê um objetivo para o seu trabalho, para os seus esforços, uma razão
de ser para o bem; sabe que nada do que adquire na Terra, em saber e
moralidade, lhe é perdido, e que seu progresso continua indefinidamente no além-túmulo;
sabe que há sempre um futuro para si, sejam quais forem a insuficiência e a
brevidade da existência presente, ao passo que a ideia materialista,
circunscrevendo a vida à existência atual, dá-lhe como perspectiva o nada, que
não tem por compensação sequer a duração, que ninguém pode aumentar à vontade,
já que podemos cair amanhã, em uma hora, e então o fruto dos nossos labores, de
nossas vigílias, dos conhecimentos adquiridos estarão para nós perdidos para
sempre, muitas vezes sem termos tido tempo de desfrutá-los.
O
Espiritismo, repito, ao demonstrar, não por hipótese, mas por fatos, a
existência do mundo invisível e o futuro que nos aguarda, muda completamente o
curso das ideias; dá ao homem a força moral, a coragem e a resignação, porque
não mais trabalha apenas pelo presente, mas pelo futuro; sabe que se não gozar
hoje, gozará amanhã. Demonstrando a ação do elemento espiritual sobre o mundo
material, amplia o domínio da Ciência e, por isto mesmo, abre nova via ao progresso
material. Então terá o homem uma base sólida para o estabelecimento da ordem
moral na Terra; compreenderá melhor a solidariedade que existe entre os seres deste
mundo, já que esta solidariedade se perpetua indefinidamente; a fraternidade
deixa de ser palavra vã; ela mata o egoísmo, em vez de por ele ser morta e,
muito naturalmente, o homem imbuído destas ideias a elas conformará suas leis e
suas instituições sociais.
O Espiritismo
conduz inevitavelmente a esta reforma.
Assim, pela
força das coisas, realizar-se-á a revolução moral que deve transformar a
Humanidade e mudar a face do mundo, e isto tão-só pelo conhecimento de uma nova
lei da Natureza, que dá outro curso às ideias, uma finalidade a esta vida, um
objetivo às aspirações do futuro, fazendo encarar as coisas de outro ponto de
vista.
Se os
detratores do Espiritismo – falo dos que militam pelo progresso social, dos
escritores que pregam a emancipação dos povos, a liberdade, a fraternidade e a
reforma dos abusos – conhecessem as verdadeiras tendências do Espiritismo, seu
alcance e seus inevitáveis resultados, em vez de ridicularizá-lo, como fazem, de
interpor incessantemente obstáculos no seu caminho, nele vissem a mais poderosa
alavanca para chegar à destruição dos abusos que combatem, em vez de lhe serem
hostis, o aclamariam como um socorro providencial. Infelizmente, na sua
maioria, creem mais em si do que na Providência. Mas a alavanca age sem eles e
a despeito deles, e a força irresistível do Espiritismo será tanto mais bem
constatada quanto mais ele tiver de combater. Um dia dirão deles, o que não
será para a sua glória, o que eles próprios dizem dos que combateram o
movimento da Terra e dos que negaram a força do vapor. Todas as negações, todas
as perseguições não impediram que estas leis naturais seguissem seu curso,
assim como os sarcasmos da incredulidade não impedirão a ação do elemento
espiritual, que é, também, uma lei da Natureza.
Considerado
desta maneira, o Espiritismo perde o caráter de misticismo que lhe censuram os
detratores, justamente aqueles que menos o conhecem. Não é mais a ciência do maravilhoso
e do sobrenatural ressuscitada: é o domínio da natureza enriquecida por uma lei
nova e fecunda, uma prova a mais do poder e da sabedoria do Criador; são,
enfim, os limites recuados dos conhecimentos humanos.
Tal é, em
resumo, senhores, o ponto de vista sob o qual se deve encarar o Espiritismo.
Nesta circunstância, qual foi o meu papel? Nem o de inventor, nem o de criador.
Vi, observei, estudei os fatos com cuidado e perseverança; coordenei-os e lhes
deduzi as consequências: eis toda a parte que me cabe. Aquilo que fiz, outro poderia
ter feito em meu lugar. Em tudo isto fui simples instrumento dos pontos de
vista da Providência, e dou graças a Deus e aos Espíritos bons por se terem dignado
servir-se de mim.
É uma tarefa
que aceitei com alegria, e da qual me esforcei por tornar-me digno, pedindo a
Deus me desse as forças necessárias para realizá-la segundo a sua santa
vontade. No entanto, a tarefa é pesada, mais pesada do que possam imaginá-la; e
se tem para mim algum mérito, é que tenho a consciência de não haver recuado perante
nenhum obstáculo e nenhum sacrifício. Será a obra da minha vida até meu último
dia, porque, na presença de um objetivo tão importante, todos os interesses
materiais e pessoais se apagam como pontos diante do infinito.
Termino esta
alocução, senhores, dirigindo sinceras felicitações aos nossos irmãos da
Bélgica, presentes ou ausentes, cujo zelo, devotamento e perseverança
contribuíram para a implantação do Espiritismo neste país. Estou convicto de
que as sementes plantadas nos grandes centros de população, como Bruxelas,
Antuérpia etc., não foram lançadas em solo estéril.
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