quarta-feira, 19 de junho de 2019

Nem toda pessoa que se mata tem depressão, diz especialista em suicídio... [1]




Daniela Carasco - do UOL, em São Paulo

Há 24 anos, a psicóloga Karina Okajima Fukumitsu, 46, se dedica a explorar profissionalmente um tabu, o suicídio. Seu envolvimento com o tema, porém, começou na infância. Sua mãe tentou se matar inúmeras vezes. Mais tarde, foi ela quem pensou três vezes na morte como possibilidade.
“Comecei a estudar psicologia para compreender e poder ajudar pessoas que passam por um sofrimento existencial e, por isso, tentam se matar”, conta.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida por ano no mundo. No Brasil, acontecem, em média, 11 mil suicídios em 12 meses, de acordo com levantamento do Sistema de Informação sobre Mortalidade.
Em 2016, foram registradas no país 30 mil tentativas de mulheres e 15 mil de homens. Para Karina, os altos números refletem também tentativas de comunicação. Apesar de homens tentarem menos, eles são as maiores vítimas letais, por usarem métodos mais agressivos.
“Suicídio é a concretização da falta de sentido da vida, é o ápice de um processo de ‘morrência’. Ele costuma ser cometido por alguém que está definhando existencialmente, que deixou de acreditar em sua própria capacidade, como ser humano, de transformar a dor em amor”, explica Karina.
A psicóloga recebeu a reportagem do UOL em seu consultório, em São Paulo, onde atende de adolescentes a idosos que tentaram ou cogitam o suicídio, para desmistificar essa morte violenta.
UOL: Como começou seu envolvimento com a questão do suicídio?
Eu tinha 8 anos quando começaram as crises suicidas da minha mãe. Aos 10 anos, me lembro claramente de ir ao pronto-socorro, tentando socorrê-la das várias tentativas de se matar. Em 1989, entrei no curso de psicologia para compreender esse fenômeno, ajudar quem queria se matar e acolher quem estivesse passando por sofrimentos existenciais.
Essa foi a causa da morte da sua mãe?
‒ Não. A última vez que ela tentou o suicídio foi em 2005, quando me declarei como suicidologista. Eu estava grávida do meu primeiro filho, o telefone tocou e ela disse que estava pensando em se matar novamente. A gente falava abertamente do processo de ‘morrência’ dela. Pedi que tivesse calma, porque a morte viria para todo mundo, é uma condição do ser humano. Durante a conversa, tive um aborto espontâneo e vi minha mãe renascer das cinzas, dizendo que eu a tinha convencido sobre ter uma missão de vida. Foi um verdadeiro paradoxo. Coincidência ou não, ela acabou desenvolvendo a doença do ‘coração grande’, uma miocardiopatia grave. Foram 18 internações até 2013, quando ela foi vencida pela doença.
De que maneira essa experiência ajudou você a seguir adiante?
Com a história dela entendi que é possível resignificar a vida, ter alguma esperança. Em 2005, durante o lançamento do meu primeiro livro, ‘Suicídio e Gestalt-Terapia’ (ed. Digital Publish & Print), ela ficou do meu lado. Eu dizia que ela era minha coautora e ela se apresentava dizendo: ‘Oi, eu sou a kamikaze”. Ela é a prova de que o acompanhamento cura.
Você já pensou em suicídio?
Sim, três vezes. A primeira aos 12 anos, meu pais tinham se separado e eu estava exausta de tantas brigas. Lembro de estar na cozinha e ter tomado medicamentos da minha mãe. Eu não queria mais viver. Quando ela me viu, perguntou o que eu estava fazendo. Respondi: “Exatamente aquilo que você sempre faz”. Ela me fez vomitar e nada aconteceu. Mas foi o mais próximo que cheguei do ato. Nunca mais falamos sobre isso. Depois, aos 20 anos, descobri que um namorado de longa data me traía. Pensei na possibilidade da morte, mas não agi. A terceira vez foi em 2014, quando recebi o diagnóstico equivocado de esclerose múltipla. Fiquei internada por 13 dias, parei de andar, esqueci a ordem alfabética, os números e fatos da minha vida. No ápice do meu desespero, pensei novamente em suicídio. Mas me agarrei na certeza de que a vida não é do jeito que a gente quer. Recuperei-me completamente.
Suicídio é hereditário?
‒ Não, o suicídio não corre nas veias. Só que existem modelos de repetição de enfrentamento que são prejudiciais, é o que a gente chama de “transmissão psíquica geracional familiar”. Alguns comportamentos tóxicos da família se repetem. Se a gente não tiver plena atenção, entra num círculo vicioso. Cabe a cada um construir novas modalidades de responder às adversidades da vida.
Por que ainda é um tabu?
‒ Porque é uma morte violenta, repentina e que confronta exatamente o sentido de instinto sobrevivência que aprendemos. É quando a pessoa começa a acreditar que a morte é mais interessante que a vida. Às vezes, a pessoa não quer morrer, ela só quer matar uma parte dela que está causando sofrimento. Viver sem sofrer é uma utopia. Por isso, precisamos trabalhar a tolerância existencial.
Por que suicídio é visto como algo abominável?
‒ Não temos tempo e espaço para lidar com a vulnerabilidade humana. Isso que o torna abominável. Ele escancara aquilo que mais se quer esconder, sentimentos indesejáveis, como tristeza, raiva, fraqueza. Não cabe a ninguém julgar o outro. Suicídio não é loucura, fraqueza, covardia ou coragem. O suicidologista norte-americano Edwin S. Shneidman, referência no assunto, o definiu como um ato definitivo para um problema que deveria ser temporário.
É irresponsável defini-lo como uma escolha pessoal?
‒ Não. Se a gente pensar que cabe a cada um sua própria vida, o mesmo vale para a morte. Mas o ideal é que ela seja natural. Então, cada ser humano deve se apropriar e zelar pelos seus sentimentos, e pedir colo quando eles estiverem borbulhando. Costumo dizer que suicídio é uma dor sentida, mas não consentida. Criei um mantra que é: se tem vida, tem jeito.
Como você avalia o cenário brasileiro?
‒ Infelizmente, estamos entre os dez países com as maiores taxas de suicídio do mundo. Está mais perto do que imaginamos. É muito comum conhecer alguém que se matou, só que preferimos fingir que não existe. Lamento que seja um problema de saúde pública, mas não existem planos de prevenção efetivos. O Ministério da Saúde trouxe uma possibilidade de diminuir os números até 2020. Na prática, porém, nada está sendo feito para isso.
Há poucos profissionais dedicados a isso?
‒ Vejo poucos profissionais treinados para acolher o sofrimento humano. Quando uma pessoa está desesperançosa, desamparada e/ou desesperada – o DDD da cartilha da psiquiatria ‒, precisamos encontrar uma maneira de mostrar a ela um sentido para sua vida. Já ouvi muito médico dizendo que quem tenta o suicídio atrapalha o tempo deles. Quando eu levava a minha mãe ao hospital, lembro das enfermeiras dizendo: “Dona Yoko, a senhora não tem o que fazer a não ser tentar se matar? Não tem dó dessas meninas que te trazem aqui há tanto tempo? De pessoas que estão querendo viver?”. Esses comentários machucam ainda mais a pessoa que está em sofrimento. Se não houver ressignificação, vai acontecer novamente. Quando há diagnóstico de transtorno mental, a reincidência acontece entre 40% e 50% dos casos.
Existem grupos de vulnerabilidade?
‒ Sim. A comunidade LGBT, as vítimas de violência doméstica e aqueles diagnosticados com doenças mentais. Ou seja, grupos que não têm suas dores legitimadas nem espaço para expor suas vozes e se defenderem.
Quais são os sinais de alerta de quem pensa em se matar?
Isolamento, abuso de álcool e drogas, e qualquer mudança abrupta de comportamento. Há sinais indiretos também. É preciso estar atendo a quem começa a se desfazer de coisas importantes, a declarações de amor inesperadas e quando a pessoa usa expressões como “pode ser tarde”, “não vou dar mais trabalho”. Tem ainda a “falsa calmaria”, que é o caso de quem sempre falou que ia se matar e parou de comunicar de uma hora para outra. Isso é uma pegadinha. Ela fica quieta para não ser interrompida. Prevenir é olhar para esses sinais e tentar criar espaços de diálogo.
A depressão é um fator comum aos suicidas?
‒ Não, acho reducionismo pensar assim. Não necessariamente uma pessoa que se mata é deprimida, apesar de existirem vários casos de pessoas que tinham depressão e se mataram. Quando isso acontece, é que elas perderam o sentido de viver.
Quais são os maiores mitos sobre suicídio?
‒ O principal é achar que se vai provocar o suicídio ao perguntar diretamente para a pessoa se ela está pensando em se matar. O suicídio é um ato de comunicação. E a pessoa, na maioria das vezes, tenta comunicar em morte o que ela gostaria de comunicar em vida. Precisamos falar abertamente sobre isso. Os sinais de alerta são pedidos de acolhimento.
E se a pessoa nos disser que quer se matar?
‒ Pergunte de volta como pode ajudar. É muito equivocado achar que quem tenta se matar está querendo só chamar atenção. Aliás, acho ótimo que eles chamem atenção. Prejudicial é tratar com desprezo. Se você não der atenção agora, vai se sentir culpado mais tarde por não ter atendido ao chamado de um ente querido.
O que você mais ouve de quem quer se matar?
‒ “Eu não vou aguentar se algo acontecer”. “Se eu fracassar, não vou suportar.” Ela começa a antecipar tudo o que ela imagina que de pior vai acontecer, porque não sabe lidar com situações de fracasso. Diante do desespero, num ato impulsivo, ela tenta o suicídio.
É um processo?
‒ Salvo os casos de impulsividade, que acontecem em menores proporções, o comportamento suicida passa pelo pensamento, ideação, planejamento e só então chega ao ato.
É perverso buscar as motivações daqueles que tentam se matar?
‒ Acho que é elucubração, porque não existe uma única causa para o suicídio. Mas é importante entender a fantasia da pessoa na tentativa. O que ela queria matar? O que ela queria que morresse? Já quando a morte é consumada, ela leva toda a verdade.
O que buscam os sobreviventes do suicídio?
‒Existem dois grupos de sobreviventes: aquele dos que tentaram, mas não tiveram a morte consumada, e os enlutados pela morte de alguém próximo. Os dois buscam a mesma coisa, um acolhimento para os seus sofrimentos. O problema é que ainda existe um forte julgamento, quem tentou ou se matou é visto como louco. Não quero normalizar o suicídio, quero deixar claro que disfuncionalidade acontece com todo mundo.
Procurar culpados é um caminho positivo?
‒ De jeito nenhum. Como diz o filósofo Jean-Paul Sartre, “nós somos aquilo que nós fazemos com o que o outro faz da gente”. E esse foi um dos grandes problemas da série “13 Reasons Why”. A personagem principal fica culpando os outros por suas escolhas erradas e em nenhum momento exercitou a capacidade de enfrentamento. Mais grave ainda foi mostrar a maneira como ela se matou. Isso é grave.
Onde buscar ajuda?
‒ Não existe uma única fórmula. Vale procurar desde alguém próximo, até especialistas. O Centro de Valorização à Vida ‒ CVV ‒  é um ótimo caminho. O que digo sempre para as pessoas em sofrimento é: acredita que você merece receber amor e ajuda.
O quão pesado é lidar com a morte tão de perto?
‒ Acho que a gente lida muito mal com aquilo que é mais nosso. A única certeza que temos é a de que morreremos. Precisamos falar mais sobre isso. Ela faz parte do nosso desenvolvimento. Só que, no intervalo entre nascer e morrer naturalmente, precisamos aprender a viver com qualidade.

Um comentário: