Daniela Carasco - do UOL, em São Paulo
Há 24 anos, a psicóloga Karina
Okajima Fukumitsu, 46, se dedica a explorar profissionalmente um tabu, o
suicídio. Seu envolvimento com o tema, porém, começou na infância. Sua mãe
tentou se matar inúmeras vezes. Mais tarde, foi ela quem pensou três vezes na
morte como possibilidade.
“Comecei a estudar psicologia
para compreender e poder ajudar pessoas que passam por um sofrimento existencial
e, por isso, tentam se matar”, conta.
Segundo dados da Organização
Mundial de Saúde (OMS), mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida por ano no
mundo. No Brasil, acontecem, em média, 11 mil suicídios em 12 meses, de acordo
com levantamento do Sistema de Informação sobre Mortalidade.
Em 2016, foram registradas no
país 30 mil tentativas de mulheres e 15 mil de homens. Para Karina, os altos
números refletem também tentativas de comunicação. Apesar de homens tentarem
menos, eles são as maiores vítimas letais, por usarem métodos mais agressivos.
“Suicídio é a concretização da
falta de sentido da vida, é o ápice de um processo de ‘morrência’. Ele costuma
ser cometido por alguém que está definhando existencialmente, que deixou de
acreditar em sua própria capacidade, como ser humano, de transformar a dor em
amor”, explica Karina.
A psicóloga recebeu a reportagem
do UOL em seu consultório, em São Paulo, onde atende de adolescentes a idosos
que tentaram ou cogitam o suicídio, para desmistificar essa morte violenta.
UOL: Como começou seu envolvimento com a questão do
suicídio?
‒ Eu tinha 8 anos
quando começaram as crises suicidas da minha mãe. Aos 10 anos, me lembro
claramente de ir ao pronto-socorro, tentando socorrê-la das várias tentativas
de se matar. Em 1989, entrei no curso de psicologia para compreender esse
fenômeno, ajudar quem queria se matar e acolher quem estivesse passando por
sofrimentos existenciais.
Essa foi a causa da morte da sua mãe?
‒ Não. A última vez
que ela tentou o suicídio foi em 2005, quando me declarei como suicidologista.
Eu estava grávida do meu primeiro filho, o telefone tocou e ela disse que
estava pensando em se matar novamente. A gente falava abertamente do processo
de ‘morrência’ dela. Pedi que tivesse calma, porque a morte viria para todo
mundo, é uma condição do ser humano. Durante a conversa, tive um aborto
espontâneo e vi minha mãe renascer das cinzas, dizendo que eu a tinha
convencido sobre ter uma missão de vida. Foi um verdadeiro paradoxo. Coincidência
ou não, ela acabou desenvolvendo a doença do ‘coração grande’, uma
miocardiopatia grave. Foram 18 internações até 2013, quando ela foi vencida
pela doença.
De que maneira essa experiência ajudou você a seguir
adiante?
‒ Com a história
dela entendi que é possível resignificar a vida, ter alguma esperança. Em 2005,
durante o lançamento do meu primeiro livro, ‘Suicídio e Gestalt-Terapia’ (ed.
Digital Publish & Print), ela ficou do meu lado. Eu dizia que ela era minha
coautora e ela se apresentava dizendo: ‘Oi, eu sou a kamikaze”. Ela é a prova
de que o acompanhamento cura.
Você já pensou em suicídio?
‒ Sim, três vezes. A
primeira aos 12 anos, meu pais tinham se separado e eu estava exausta de tantas
brigas. Lembro de estar na cozinha e ter tomado medicamentos da minha mãe. Eu
não queria mais viver. Quando ela me viu, perguntou o que eu estava fazendo.
Respondi: “Exatamente aquilo que você sempre faz”. Ela me fez vomitar e nada
aconteceu. Mas foi o mais próximo que cheguei do ato. Nunca mais falamos sobre
isso. Depois, aos 20 anos, descobri que um namorado de longa data me traía.
Pensei na possibilidade da morte, mas não agi. A terceira vez foi em 2014,
quando recebi o diagnóstico equivocado de esclerose múltipla. Fiquei internada
por 13 dias, parei de andar, esqueci a ordem alfabética, os números e fatos da
minha vida. No ápice do meu desespero, pensei novamente em suicídio. Mas me
agarrei na certeza de que a vida não é do jeito que a gente quer. Recuperei-me
completamente.
Suicídio é hereditário?
‒ Não, o suicídio
não corre nas veias. Só que existem modelos de repetição de enfrentamento que
são prejudiciais, é o que a gente chama de “transmissão psíquica geracional
familiar”. Alguns comportamentos tóxicos da família se repetem. Se a gente não
tiver plena atenção, entra num círculo vicioso. Cabe a cada um construir novas
modalidades de responder às adversidades da vida.
Por que ainda é um tabu?
‒ Porque é uma morte
violenta, repentina e que confronta exatamente o sentido de instinto
sobrevivência que aprendemos. É quando a pessoa começa a acreditar que a morte
é mais interessante que a vida. Às vezes, a pessoa não quer morrer, ela só quer
matar uma parte dela que está causando sofrimento. Viver sem sofrer é uma
utopia. Por isso, precisamos trabalhar a tolerância existencial.
Por que suicídio é visto como algo abominável?
‒ Não temos tempo e
espaço para lidar com a vulnerabilidade humana. Isso que o torna abominável.
Ele escancara aquilo que mais se quer esconder, sentimentos indesejáveis, como
tristeza, raiva, fraqueza. Não cabe a ninguém julgar o outro. Suicídio não é
loucura, fraqueza, covardia ou coragem. O suicidologista norte-americano Edwin
S. Shneidman, referência no assunto, o definiu como um ato definitivo para um
problema que deveria ser temporário.
É irresponsável defini-lo como uma escolha pessoal?
‒ Não. Se a gente
pensar que cabe a cada um sua própria vida, o mesmo vale para a morte. Mas o
ideal é que ela seja natural. Então, cada ser humano deve se apropriar e zelar
pelos seus sentimentos, e pedir colo quando eles estiverem borbulhando. Costumo
dizer que suicídio é uma dor sentida, mas não consentida. Criei um mantra que
é: se tem vida, tem jeito.
Como você avalia o cenário brasileiro?
‒ Infelizmente,
estamos entre os dez países com as maiores taxas de suicídio do mundo. Está
mais perto do que imaginamos. É muito comum conhecer alguém que se matou, só
que preferimos fingir que não existe. Lamento que seja um problema de saúde
pública, mas não existem planos de prevenção efetivos. O Ministério da Saúde
trouxe uma possibilidade de diminuir os números até 2020. Na prática, porém,
nada está sendo feito para isso.
Há poucos profissionais dedicados a isso?
‒ Vejo poucos
profissionais treinados para acolher o sofrimento humano. Quando uma pessoa
está desesperançosa, desamparada e/ou desesperada – o DDD da cartilha da
psiquiatria ‒, precisamos encontrar uma maneira de mostrar a ela um sentido
para sua vida. Já ouvi muito médico dizendo que quem tenta o suicídio atrapalha
o tempo deles. Quando eu levava a minha mãe ao hospital, lembro das enfermeiras
dizendo: “Dona Yoko, a senhora não tem o que fazer a não ser tentar se matar?
Não tem dó dessas meninas que te trazem aqui há tanto tempo? De pessoas que
estão querendo viver?”. Esses comentários machucam ainda mais a pessoa que está
em sofrimento. Se não houver ressignificação, vai acontecer novamente. Quando
há diagnóstico de transtorno mental, a reincidência acontece entre 40% e 50%
dos casos.
Existem grupos de vulnerabilidade?
‒ Sim. A comunidade
LGBT, as vítimas de violência doméstica e aqueles diagnosticados com doenças
mentais. Ou seja, grupos que não têm suas dores legitimadas nem espaço para
expor suas vozes e se defenderem.
Quais são os sinais de alerta de quem pensa em se matar?
‒ Isolamento, abuso
de álcool e drogas, e qualquer mudança abrupta de comportamento. Há sinais
indiretos também. É preciso estar atendo a quem começa a se desfazer de coisas
importantes, a declarações de amor inesperadas e quando a pessoa usa expressões
como “pode ser tarde”, “não vou dar mais trabalho”. Tem ainda a “falsa
calmaria”, que é o caso de quem sempre falou que ia se matar e parou de
comunicar de uma hora para outra. Isso é uma pegadinha. Ela fica quieta para
não ser interrompida. Prevenir é olhar para esses sinais e tentar criar espaços
de diálogo.
A depressão é um fator comum aos suicidas?
‒ Não, acho
reducionismo pensar assim. Não necessariamente uma pessoa que se mata é
deprimida, apesar de existirem vários casos de pessoas que tinham depressão e
se mataram. Quando isso acontece, é que elas perderam o sentido de viver.
Quais são os maiores mitos sobre suicídio?
‒ O principal é
achar que se vai provocar o suicídio ao perguntar diretamente para a pessoa se
ela está pensando em se matar. O suicídio é um ato de comunicação. E a pessoa,
na maioria das vezes, tenta comunicar em morte o que ela gostaria de comunicar
em vida. Precisamos falar abertamente sobre isso. Os sinais de alerta são
pedidos de acolhimento.
E se a pessoa nos disser que quer se matar?
‒ Pergunte de volta
como pode ajudar. É muito equivocado achar que quem tenta se matar está
querendo só chamar atenção. Aliás, acho ótimo que eles chamem atenção.
Prejudicial é tratar com desprezo. Se você não der atenção agora, vai se sentir
culpado mais tarde por não ter atendido ao chamado de um ente querido.
O que você mais ouve de quem quer se matar?
‒ “Eu não vou
aguentar se algo acontecer”. “Se eu fracassar, não vou suportar.” Ela começa a
antecipar tudo o que ela imagina que de pior vai acontecer, porque não sabe
lidar com situações de fracasso. Diante do desespero, num ato impulsivo, ela
tenta o suicídio.
É um processo?
‒ Salvo os casos de
impulsividade, que acontecem em menores proporções, o comportamento suicida
passa pelo pensamento, ideação, planejamento e só então chega ao ato.
É perverso buscar as motivações daqueles que tentam se
matar?
‒ Acho que é
elucubração, porque não existe uma única causa para o suicídio. Mas é
importante entender a fantasia da pessoa na tentativa. O que ela queria matar?
O que ela queria que morresse? Já quando a morte é consumada, ela leva toda a
verdade.
O que buscam os sobreviventes do suicídio?
‒Existem dois grupos
de sobreviventes: aquele dos que tentaram, mas não tiveram a morte consumada, e
os enlutados pela morte de alguém próximo. Os dois buscam a mesma coisa, um
acolhimento para os seus sofrimentos. O problema é que ainda existe um forte
julgamento, quem tentou ou se matou é visto como louco. Não quero normalizar o
suicídio, quero deixar claro que disfuncionalidade acontece com todo mundo.
Procurar culpados é um caminho positivo?
‒ De jeito nenhum.
Como diz o filósofo Jean-Paul Sartre, “nós somos aquilo que nós fazemos com o
que o outro faz da gente”. E esse foi um dos grandes problemas da série “13
Reasons Why”. A personagem principal fica culpando os outros por suas escolhas
erradas e em nenhum momento exercitou a capacidade de enfrentamento. Mais grave
ainda foi mostrar a maneira como ela se matou. Isso é grave.
Onde buscar ajuda?
‒ Não existe uma
única fórmula. Vale procurar desde alguém próximo, até especialistas. O Centro
de Valorização à Vida ‒ CVV ‒ é um ótimo
caminho. O que digo sempre para as pessoas em sofrimento é: acredita que você
merece receber amor e ajuda.
O quão pesado é lidar com a morte tão de perto?
‒ Acho que a gente
lida muito mal com aquilo que é mais nosso. A única certeza que temos é a de
que morreremos. Precisamos falar mais sobre isso. Ela faz parte do nosso
desenvolvimento. Só que, no intervalo entre nascer e morrer naturalmente,
precisamos aprender a viver com qualidade.
Muito importante esta explicação.
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