Hoje geralmente se pensa que a
Igreja admite o fogo do inferno como um fogo moral e não como um fogo material.
Tal é, pelo menos, a opinião da maioria dos teólogos e de muitos eclesiásticos
esclarecidos. Contudo, é apenas uma opinião individual, e não uma crença
adquirida pela ortodoxia, pois, do contrário, seria universalmente professada.
Pode julgar-se pelo seguinte quadro, que um pregador traçou do inferno, durante
a última quaresma, em Montreuil-sur-Mer:
O fogo do inferno é
milhões de vezes mais intenso que o da Terra, e se um dos corpos que ali
queimam sem se consumir viesse a ser lançado no nosso planeta, empestá-lo-ia de
ponta a ponta!
O inferno é uma
vasta e sombria caverna, guarnecida de pregos pontiagudos, de lâminas de
espadas afiadas, de navalhas bem cortantes, na qual são precipitadas as almas
dos danados!
Seria supérfluo refutar esta
descrição; no entanto, poderíamos perguntar ao orador onde colheu um
conhecimento tão preciso do lugar que descreve. Por certo não foi no Evangelho,
onde não se trata de pregos, nem de espadas, nem de navalhas. Para saber se
essas lâminas são bem afiadas e bem cortantes, é preciso tê-las visto e
experimentado. Será que, novo Enéas ou Orfeu, ele próprio teria descido a essa
caverna sombria que, aliás, muito se assemelha ao Tártaro dos pagãos? Além
disso, ele deveria ter explicado a ação que pregos e navalhas poderiam ter
sobre as almas e a necessidade de serem bem afiados e de boa têmpera. Já que conhece
tão bem os detalhes interiores do local, também deveria ter dito onde está
situado. Não é no centro da Terra, pois supõe a hipótese de um dos corpos que
ela encerra ter sido lançado em nosso planeta. Então é no espaço? Mas a
astronomia aí fixou o seu olhar muito antes, sem nada descobrir. É verdade que
não olhou com os olhos da fé.
Seja como for, o quadro é feito
para seduzir os incrédulos? É bastante duvidoso, pois é mais adequado para diminuir
o número dos crentes.
Em contrapartida, citaremos o
seguinte trecho de uma carta escrita de Riom, e relatada no jornal Vérité, em
seu número de 20 de março de 1864:
Ontem, para minha
grande surpresa e satisfação, ouvi com os próprios ouvidos esta serena
confissão da boca de um eloquente pregador, em presença de numeroso e atônito
auditório:
Não há mais inferno... O
inferno não existe mais... Foi substituído admiravelmente pelos fogos da
caridade e do amor, que resgatam as nossas faltas!
Nossa divina doutrina (o
Espiritismo) não está encerrada inteiramente nestas poucas palavras?
É inútil dizer qual dos dois
teve mais simpatias do auditório; mas o segundo poderia até ser acusado de
heresia pelo primeiro. Outrora teria expiado, infalivelmente, na fogueira ou numa
masmorra a audácia de haver proclamado que Deus não manda queimar as suas
criaturas.
Esta dupla citação nos sugere as
seguintes reflexões:
Se uns acreditam na materialidade das penas, enquanto outros
a negam, necessariamente uns laboram em erro e outros têm razão.
Este ponto é mais capital do que parece à primeira vista,
porque é o caminho aberto às interpretações numa religião fundada na unidade
absoluta da crença e que, em princípio, repele a interpretação.
É bem certo que até hoje a materialidade das penas tem participado
das crenças dogmáticas da Igreja. Por que, então, nem todos os teólogos lhe dão
crédito? Como nem uns, nem outros o verificaram por si mesmos, o que leva
alguns a ver apenas uma imagem onde outros veem a realidade, senão a razão que,
nos primeiros, supera a fé cega? Ora, a razão é o livre-exame.
Eis, pois, a razão e o
livre-exame entrando na Igreja pela força da opinião. Poder-se-ia dizer, sem
metáfora, pela porta do inferno; é a mão posta no santuário dos dogmas, não
pelos leigos, mas pelo próprio clero.
Não se julgue esta uma questão
de menor importância, pois contém em si o germe de toda uma revolução religiosa
e de um imenso cisma, muito mais radical que o protestantismo, porque não
ameaça apenas o catolicismo, mas o protestantismo, a Igreja grega e todas as
seitas cristãs. Com efeito, entre a materialidade das penas e as penas
puramente morais, há toda a distância do sentido próprio ao sentido figurado,
da alegoria à realidade. Desde que se admitam as chamas do inferno como
alegoria, torna-se evidente que as palavras de Jesus: “Ide ao fogo eterno” têm
um sentido alegórico. Daí a consequência de que o mesmo deve acontecer com outras
de suas palavras.
Mas a consequência mais grave é
esta: Uma vez que se admita a interpretação sobre um ponto, não há motivo para rejeitá-la
sobre outros; é, pois, como dissemos, a porta aberta à livre discussão, um
golpe mortal desferido no princípio absoluto da fé cega. A crença na
materialidade das penas liga-se intimamente a outros artigos de fé, que lhe são
corolários; transformada essa crença, as outras se transformarão pela força das
coisas e, assim, gradualmente.
Já temos uma aplicação disto. Há
poucos anos ainda, o dogma: Fora da Igreja não há salvação, estava em toda a
sua força; o batismo era condição tão imperiosa, que bastava que o filho de um
herético o recebesse clandestinamente e à revelia dos pais, para ser salvo,
porquanto tudo que não fosse rigorosamente ortodoxo era irremissivelmente
condenado. Mas, tendo a razão humana se levantado contra esses bilhões de almas
votadas às torturas eternas, quando delas não dependera ser esclarecidas na
verdadeira fé; contra essas inúmeras crianças que morrem antes de adquirir a consciência
de seus atos e que, nem por isso, são menos danadas, se a negligência ou a fé
religiosa de seus pais as privou do batismo, a Igreja viu-se forçada, nesse
ponto, a renunciar ao seu absolutismo.
Hoje ela diz, ou, pelo menos,
diz a maioria de seus teólogos, que essas crianças não são responsáveis pelas
faltas dos pais; que a responsabilidade só começa no momento em que, tendo a possibilidade
de se esclarecerem, o recusam e, por isto, estas crianças não são danadas por
não haverem recebido o batismo; que o mesmo se dá com os selvagens e os
idólatras de todas as seitas.
Alguns vão mais longe:
reconhecem que, pela prática das virtudes cristãs, isto é, da humildade e da
caridade, pode-se ser salvo em todas as religiões, porque depende, também, da
vontade de um hindu, de um judeu, de um muçulmano, de um protestante, quanto de
um católico, viver cristãmente; que aquele que vive assim está na Igreja pelo
espírito, mesmo que não o esteja pela forma. Não está aí o princípio: Fora da
Igreja não há salvação, ampliado e transformado no Fora da caridade não há
salvação? É precisamente o que ensina o Espiritismo e, contudo, é por isto que
ele é declarado obra do demônio. Por que essas máximas seriam o sopro do
demônio na boca dos espíritas e não na dos ministros da Igreja? Se a ortodoxia da
fé está ameaçada, então não o é pelo Espiritismo, mas pela própria Igreja,
porque ela sofre, mal grado seu, a pressão da opinião geral e porque, entre
seus membros, encontram-se alguns que veem as coisas de mais alto e nos quais a
força da lógica leva a melhor a fé cega.
Talvez parecesse temerário dizer
que a Igreja marcha ao encontro do Espiritismo; entretanto, é uma verdade que reconhecerão
mais tarde. Avançando para combatê-lo, nem por isso ela deixa, pouco a pouco,
de lhe assimilar os princípios, mesmo sem o suspeitar.
Esta nova maneira de encarar a
questão da salvação é grave. Posto acima da forma, o Espírito é um princípio eminentemente
revolucionário na ortodoxia. Sendo reconhecida possível a salvação fora da
Igreja, a eficácia do batismo é relativa, e não absoluta: torna-se um símbolo.
Não trazendo a criança não batizada a pena da negligência nem da má vontade dos
pais, em que se torna a pena incorrida por todo o gênero humano pela falta do primeiro
homem? Em que se torna também o pecado original, tal qual o entende a Igreja?
Muitas vezes os maiores efeitos decorrem de pequenas causas.
O direito de interpretação e de livre-exame, pueril na aparência, uma vez
admitido na questão da materialidade das penas futuras, é um primeiro passo
cujas consequências são incalculáveis, porque representa uma brecha na
imutabilidade dogmática, e uma pedra arrancada arrasta outras. Forçoso é
convir: a posição da Igreja é delicada. Todavia, só há um dos dois partidos a
tomar: ficar estacionária, a despeito de tudo, ou ir para frente. Mas, então,
não poderá escapar deste dilema: se se imobilizar de modo absoluto nos erros do
passado, será infalivelmente superada, como já o é, pelo fluxo das ideias
novas, depois isolada e, por fim, desmembrada, como o seria hoje, se tivesse persistido
em expulsar do seu seio os que creem no movimento da Terra, ou nos períodos
geológicos da Criação; se entrar na via da interpretação dos dogmas transforma-se
e aí entra pelo simples fato de renunciar à materialidade das penas e à
necessidade absoluta do batismo.
O perigo de uma transformação,
aliás, está clara e energicamente formulado na seguinte passagem de um opúsculo
publicado pelo padre Marin de Boylesve, da Companhia de Jesus, sob o título de “O
milagre e o diabo”, em resposta à Revue des Deux-Mondes.
Há, entre outras, uma questão
que, para a religião, é de vida ou de morte: a questão do milagre. A do diabo
não o é menos.
Tirai o diabo, e o Cristianismo
desaparece. Se o diabo não passar de um mito, a queda de Adão e o pecado
original entrarão no domínio das fábulas. Por conseguinte a redenção, o
batismo, a Igreja, o Cristianismo, numa palavra, não têm mais razão de ser. Por
isso a Ciência não poupa esforços para apagar o milagre e suprimir o diabo.
Desse modo, se a Ciência
descobrir uma lei da Natureza, que faça entrar nos fatos naturais um fato que é
reputado miraculoso; se provar a anterioridade da raça humana e a multiplicidade
de suas origens, todo o edifício se desmorona. Uma religião é muito frágil
quando uma descoberta científica lhe é uma questão de vida e morte. Eis uma
confissão desastrada. Por nossa conta, estamos longe de partilhar das
apreensões do padre Boylesve em relação ao Cristianismo. Dizemos que o Cristianismo,
tal qual saiu da boca de Jesus, mas apenas tal qual saiu, é invulnerável, porque
é a lei de Deus.
A conclusão é esta:
Nada de concessão, sob pena de morrer. Esquece o autor de
examinar se há mais chances de viver na imobilidade. Nossa opinião é que há
menos e que é preferível viver transformado a não viver de modo algum.
Num e noutro caso, a cisão é
inevitável. Pode mesmo dizer-se que já existe; a unidade doutrinária está
rompida, pois não há acordo perfeito no ensino; uns aprovam o que outros censuram;
uns absolvem o que outros condenam. Assim, veem-se fiéis indo de preferência
àqueles cujas ideias mais lhes convêm. Dividindo-se os pastores, o rebanho
igualmente se divide. Dessa divergência a uma separação, a distância não é
grande; um passo a mais e os que estão na vanguarda serão tratados como
heréticos pelos que ficaram na retaguarda. Ora, eis o cisma estabelecido; aí
está o perigo da imobilidade.
A religião, ou melhor, todas as
religiões sofrem, mal grado seu, a influência do movimento progressivo das ideias.
Uma necessidade fatal as obriga a se manterem no nível do movimento ascensional,
sob pena de soçobrarem. Assim, todas têm sido forçadas, de tempos em tempos, a
fazer concessões à Ciência, a minimizar o sentido literal de certas crenças
ante a evidência dos fatos. A que repudiasse as descobertas da Ciência e suas consequências,
do ponto de vista religioso, mais cedo ou mais tarde perderia a sua autoridade
e o seu crédito e aumentaria o número dos incrédulos. Se uma religião qualquer
pode ser comprometida pela Ciência, a culpa não é da Ciência, mas da religião
fundada sobre dogmas absolutos, em contradição com as leis da Natureza, que são
leis divinas. Repudiar a Ciência é, pois, repudiar as leis da Natureza e, por
isto mesmo, renegar a obra de Deus; fazê-lo em nome da religião seria pôr Deus
em contradição consigo mesmo e fazê-lo dizer: Estabeleci leis para reger o mundo; mas não acrediteis nessas leis.
O homem não tem sido capaz, nas
diferentes épocas, de conhecer todas as leis da Natureza. A descoberta
sucessiva dessas leis constitui o progresso; daí, para as religiões, a
necessidade de pôr suas crenças e seus dogmas em harmonia com o progresso, sob
pena de receberem o desmentido dos fatos constatados pela Ciência. Só com esta
condição uma religião é invulnerável. Em nossa opinião, a religião deveria
fazer mais do que se pôr a reboque do progresso, que apenas acompanha
constrangida e forçada; deveria ser uma sentinela avançada, porque é honrar a
Deus proclamar a grandeza e a sabedoria de suas leis.
A contradição que existe entre
certas crenças religiosas e as leis naturais fez a maioria dos incrédulos, cujo
número aumenta à medida que se populariza o conhecimento dessas leis. Se fosse impossível
o acordo entre a Ciência e a religião, não haveria religião possível.
Proclamamos altamente a possibilidade e a necessidade desse acordo, porque, em
nosso entender, a Ciência e a religião são irmãs para a maior glória de Deus e
devem completar-se entre si, em vez de se desmentirem reciprocamente. Elas se
estenderão as mãos, quando a Ciência não ver na religião nada de incompatível com
os fatos demonstrados e a religião não mais tiver que temer a demonstração dos
fatos. O Espiritismo, pela revelação das leis que regem as relações entre o
mundo visível e o mundo invisível, será o traço de união que lhes permitirá se
olhem face a face, uma sem rir, a outra sem tremer. É pela concordância da fé e
da razão que diariamente tantos incrédulos são reconduzidos a Deus.
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