terça-feira, 13 de novembro de 2018

Um Caso de Possessão[1]




Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar do termo, mas subjugados. Queremos reconsiderar esta asserção, posta de maneira um tanto absoluta, já que agora nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, embora parcial, de um Espírito encarnado por um Espírito errante. Eis um primeiro fato que o prova, apresentando o fenômeno em toda a sua simplicidade.
Várias pessoas se achavam um dia na casa de uma senhora, médium sonâmbula. De repente esta assumiu atitudes francamente masculinas, mudou a voz e, dirigindo-se a um dos assistentes, exclamou: Ah! meu caro amigo, como estou contente por te ver! Surpresos, perguntam o que isto significa. A senhora continua: Como! Meu caro, não me reconheces? Ah! É verdade; estou coberto de lama! Sou Carlos Z... A este nome os assistentes se lembraram de um senhor, morto alguns meses antes, vitimado por um ataque de apoplexia, à beira de uma estrada; tinha caído num fosso, de onde lhe retiraram o corpo coberto de lama.
Declarou que, querendo conversar com seu velho amigo, aproveitou o momento em que o Espírito da senhora A..., a sonâmbula, estava afastada de seu corpo, para tomar-lhe o lugar.
Com efeito, tendo-se repetido a cena vários dias seguidos, a Sra. A... de cada vez tomava as poses e maneiras habituais do Sr. Charles, apoiando-se no encosto da poltrona, cruzando as pernas, torcendo o bigode, passando os dedos pelos cabelos, de sorte que, salvo as roupas femininas, poder-se-ia crer estar diante do Sr. Charles.
Contudo, não havia transfiguração, como vimos em outras circunstâncias. Eis algumas de suas respostas:
Já que tomastes posse do corpo da Sra. A..., poderíeis nele permanecer?
– Não, mas vontade não me falta.
Por que não o podeis?
– Porque seu Espírito está sempre ligado ao seu corpo. Ah! se eu pudesse romper esse laço, eu lhe pregaria uma peça.
Que faz durante este tempo o Espírito da Sra. A...?
– Está aqui ao lado, olhando para mim e rindo por me ver em suas vestes.

Estas conversas eram muito divertidas. O Sr. Charles tinha sido um bon vivant e não desmentia seu caráter. Entregue à vida material, era pouco adiantado como Espírito, mas bom por natureza e benevolente. Apoderando-se do corpo da Sra. A..., não tinha qualquer intenção má, de sorte que aquela senhora nada sofria com a situação, a que se prestava de bom grado. É bom que se diga que ela não conhecera o Sr. Charles e não podia estar a par de suas maneiras. É ainda de notar que os assistentes não pensavam nele, a cena não foi provocada e ele veio espontaneamente.
Aqui a possessão é evidente e ressalta ainda melhor dos detalhes, cuja enumeração seria demasiado longa; mas é uma possessão inocente e sem inconvenientes. Já o mesmo não ocorre quando se trata de um Espírito maléfico e mal-intencionado. Pode ter consequências tanto mais graves quanto mais tenazes; são esses Espíritos, o que muitas vezes se torna difícil livrar o paciente, do qual fazem sua vítima. Eis um exemplo recente, que nós mesmos tivemos oportunidade de observar e que se constituiu em sério objeto de estudo para a Sociedade de Paris:
A senhorita Júlia, doméstica, nascida na Sabóia, com vinte e três anos, caráter muito afável, sem qualquer instrução, desde algum tempo era susceptível a acessos de sonambulismo natural, que duravam semanas inteiras. Nesse estado consagrava-se a seu trabalho habitual, sem que as pessoas estranhas desconfiassem de sua situação; seu trabalho era até mais cuidadoso; sua lucidez, notável; descrevia lugares e acontecimentos à distância com perfeita exatidão.
Há cerca de seis meses foi acometida de crises de caráter muito estranho, que sempre ocorriam no estado sonambúlico, o qual se tornara, de certo modo, seu estado normal.
Contorcia-se e rolava pelo chão, como a se debater sob a opressão de alguém que a quisesse estrangular e, de fato, apresentava todos os sintomas do estrangulamento. Acabava vencendo esse ser fantástico, agarrava-o pelos cabelos, acabrunhava-o com golpes, injúrias e imprecações, apostrofando-o incessantemente com o nome de Fredegunda, infame regente, rainha impudica, criatura vil e manchada por todos os crimes etc. Tripudiava como se a pisoteasse com raiva, arrancando-lhe as roupas e os adereços. Coisa bizarra, tomando-se ela própria por Fredegunda, golpeava-se repetidamente nos braços, no peito e no rosto, dizendo:
Toma! toma! é bastante infame Fredegunda? Queres sufocar-me, mas não o conseguirás; queres meter-te em minha caixa, mas eu te expulsarei dela.
Minha caixa era o termo de que se servia para designar o seu corpo. Nada poderia pintar melhor o acento frenético com o qual, rangendo os dentes, ela pronunciava o nome de Fredegunda, nem as torturas que sofria nesses momentos.
Um dia, para ver-se livre de sua adversária, tomou de uma faca e tentou ferir-se; foi detida a tempo, evitando-se um acidente. Coisa não menos notável é que jamais tomou qualquer dos presentes por Fredegunda; a dualidade era sempre nela mesma e era contra si mesma que dirigia o seu furor quando o Espírito estava nela, e contra um ser invisível quando dele ela se havia desembaraçado. Para os outros era meiga e benevolente, mesmo nos momentos de maior exasperação.
Essas crises, verdadeiramente aterradoras, muitas vezes duravam horas e se repetiam várias vezes por dia. Quando acabavam por vencer Fredegunda, esta caía num estado de prostração e de acabrunhamento de que só saía pouco a pouco, mas que lhe deixava uma grande fraqueza e dificuldade de falar. Sua saúde estava profundamente alterada; nada podia comer e por vezes ficava oito dias sem alimentar-se. Para ela as melhores iguarias tinham gosto horrível, levando-a a rejeitá-las. Dizia que era obra de Fredegunda, que a queria impedir de comer.
Dissemos acima que a moça não recebeu qualquer instrução. Em vigília jamais ouvira falar de Fredegunda, nem de seu caráter, nem do papel que representou. Ao contrário, em estado sonambúlico, sabe-o perfeitamente e diz ter vivido em seu tempo.
Não era Brunehaut, como a princípio se supôs, mas outra pessoa, ligada à sua corte.
Outra observação, não menos importante, é que, quando começaram as crises, a senhorita Júlia jamais se havia ocupado de Espiritismo, cujo nome lhe era desconhecido. Ainda hoje, em vigília, ela lhe é estranha e nele não crê. Só o conhece no estado sonambúlico, e somente depois que começou a ser cuidada.
Assim, tudo quanto disse foi espontâneo.
Diante de uma situação tão estranha, uns atribuem o estado dessa moça a uma afecção nervosa; outros a uma loucura de caráter especial, opinião que, à primeira vista, tinha uma aparência de realidade. Declarou um médico que, no estado atual da Ciência, nada podia explicar semelhantes fenômenos, e que não via nenhum remédio. Todavia, pessoas experimentadas no Espiritismo reconhecem sem dificuldade que ela estava sob o império de uma subjugação das mais graves, e que lhe poderia ser fatal. Sem dúvida, quem não a tivesse visto senão nos momentos de crise e só tivesse considerado a estranheza de seus atos e palavras, teria dito que era louca e lhe haveria infligido o tratamento dos alienados que, sem sombra de dúvida, teria provocado uma loucura verdadeira; mas esta opinião deveria ceder diante dos fatos.
No estado de vigília sua conversa é a de uma pessoa de sua condição e em conformidade com a sua falta de instrução; sua inteligência chega a ser vulgar. Já no estado de sonambulismo o quadro se modifica completamente: nos momentos de calma ela raciocina com muito senso, justeza e verdadeira profundidade. Ora, seria loucura singular esta que aumentasse a dose de inteligência e de julgamento. Só o Espiritismo pode explicar essa aparente anomalia. No estado de vigília, sua alma ou Espírito está comprimido por órgãos que lhe não permitem senão um desenvolvimento incompleto; no estado de sonambulismo, a alma, emancipada, está em parte liberta de seus laços e goza da plenitude de suas faculdades. Nos momentos de crise, suas palavras e atos são excêntricos somente para os que não creem na ação dos seres do mundo invisível. Vendo apenas o efeito, e não remontando à causa, eis por que todos os obsidiados, subjugados e possessos passam por loucos. Nos manicômios sempre houve, em todos os tempos, pretensos loucos dessa natureza e que seriam facilmente curados se não nos obstinássemos a neles ver apenas uma doença orgânica.
Como, porém, a senhorita Júlia não tivesse recursos, uma família de verdadeiros e sinceros espíritas concordou em tomá-la a seu serviço, mas, na sua situação, ela deveria ser muito mais um estorvo do que uma utilidade, e era preciso um verdadeiro devotamento para cuidar dela. Mas essas pessoas foram bem recompensadas, primeiro pelo prazer de praticar uma boa ação, depois pela satisfação de haver contribuído poderosamente para a sua cura, hoje completa. Dupla cura, porque não só a senhorita Júlia se libertou, mas sua inimiga converteu-se a melhores sentimentos.
Eis o que testemunhamos numa dessas lutas terríveis, que não durou menos de duas horas, quando pudemos observar o fenômeno nos mínimos detalhes e no qual reconhecemos de imediato uma completa analogia com os dos possessos de Morzine[2].
A única diferença é que em Morzine os possessos se entregavam a atos contra os indivíduos que os contrariavam, e falavam do diabo que tinham em si, pois os haviam convencido de que era o diabo. Em Morzine a senhorita Júlia teria chamado Fredegunda de Diabo.
Num próximo artigo exporemos com detalhes as diversas fases desta cura e os meios empregados para tal fim; além disso, relataremos as notáveis instruções que os Espíritos deram a respeito, assim como as importantes observações que ensejaram, concernentes ao magnetismo.




[1] Revista Espírita – Dezembro/1863 – Allan Kardec
[2] Ver Instrução sobre os Possessos de Morzine, Revista Espírita de dezembro de 1862, janeiro, fevereiro, abril e maio de 1863.

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