terça-feira, 9 de outubro de 2018

Proibição de Evocar os Mortos[1]


Alguns membros da Igreja apoiam-se na proibição de Moisés para proscrever as comunicações com os Espíritos; mas se sua lei deve ser rigorosamente observada neste ponto, deve sê-lo igualmente sobre os demais. Por que seria boa em relação às evocações e má em outras partes? É preciso ser consequente; se, para certas coisas, reconhece-se que sua lei já não se harmoniza com os nossos costumes e a nossa época, não há razão para que não se dê o mesmo com a proibição das evocações. Aliás, é necessário nos reportarmos aos motivos que os levaram a fazer tal proibição, motivos que, então, tinham uma razão de ser, mas que, seguramente, hoje não mais subsistem. Quanto à pena de morte infringida a quem desrespeitasse essa proibição, forçoso é reconhecer que nisto Moisés era muito pródigo e que, na sua legislação draconiana, a severidade do castigo nem sempre era um indício da gravidade da falta. O povo hebreu era turbulento, difícil de conduzir e não podia ser domado senão pelo terror. Por outro lado, Moisés não tinha grande escolha nos seus meios de repressão; não dispunha de prisões, nem de casas de correção e seu povo não era passível de sofrer o medo de penas puramente morais; assim, ele não podia graduar sua penalidade como se faz nos nossos dias.
Ora, por respeito à sua lei, seria preciso manter a pena de morte para todos os casos em que a aplicava? Aliás, por que ressuscitam esse artigo com tanta insistência, enquanto guardam silêncio sobre o começo do capítulo que proíbe aos sacerdotes a posse dos bens da Terra e de ter parte em qualquer herança, porque o próprio Senhor é a sua herança? (Deuteronômio, cap. XVIII).
Há duas partes distintas na lei de Moisés: a lei de Deus propriamente dita, promulgada no monte Sinai, e a lei civil ou disciplinar, apropriada aos costumes e ao caráter do povo; uma é invariável, a outra se modifica com o tempo.
A ninguém pode vir à mente que possamos ser governados pelos mesmos meios que os hebreus no deserto, assim como a legislação da Idade Média não poderia aplicar-se à França do século dezenove. Quem pensaria, por exemplo, em ressuscitar hoje este artigo da lei mosaica:
Se um boi fere com o chifre a um homem ou a uma mulher, e a pessoa morrer, o boi será lapidado sem remissão, ninguém comerá sua carne e seu dono será absolvido.
Ora, que diz Deus em seus mandamentos?
Não terás outro Deus senão eu; não tomarás o nome de Deus em vão; honra teu pai e tua mãe; não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não dirás falso testemunho; não cobiçarás os bens de teu próximo.
Eis uma lei que é de todos os tempos e de todos os países, e que, por isto mesmo, tem caráter divino; mas não trata da proibição de evocar os mortos, donde forçoso é concluir que tal proibição era simples medida disciplinar e circunstancial.
Mas Jesus não veio modificar a lei mosaica, e sua lei não é o código dos cristãos? Não disse ele:
Ouvistes o que foi dito aos Antigos tal ou qual coisa; eu, porém, vos digo outra coisa?
Ora, em parte alguma do Evangelho se faz menção da proibição de evocar os mortos; é um ponto muito grave para que o Cristo o tivesse omitido em suas instruções, embora tenha tratado de questões de ordem bem mais secundária. Ou se deve pensar, como um eclesiástico a quem tal objeção foi feita, que Jesus se esqueceu de falar nisso?
Como o pretexto da proibição de Moisés é inadmissível, eles se apoiam na desculpa de que a evocação é uma falta de respeito aos mortos, cujas cinzas não devem ser perturbadas. Quando essa evocação é feita religiosamente e com recolhimento, não se pode falar em desrespeito; mas há uma resposta peremptória a dar a tal objeção: é que os Espíritos vêm de boa vontade quando chamados e, mesmo, espontaneamente, sem serem chamados; manifestam satisfação por se comunicarem com os homens e frequentemente se queixam do esquecimento em que por vezes são deixados. Se fossem perturbados em sua quietude ou ficassem descontes com o nosso apelo, eles o diriam ou não viriam.
Se vêm, é porque isto lhes convém, pois não sabemos de ninguém que tenha o poder de constranger os Espíritos, seres impalpáveis, a se incomodarem, caso não o queiram, já que não os podemos prender ao corpo.
Alegam outra razão: as almas, dizem, estão no inferno ou no paraíso. As que estão no inferno dali não podem sair; as que estão no paraíso conservam-se em inteira beatitude e muito acima dos mortais para se ocuparem com eles. Resta as que estão no purgatório; mas estas são sofredoras e devem pensar antes de tudo em sua salvação. Portanto, se nenhuma delas pode vir, somente o diabo vem em seu lugar. No primeiro caso seria muito racional supor que o demônio, autor e instigador da primeira revolta contra Deus, em perpétua rebelião e não experimentando arrependimento nem pesar pelo que faz, fosse mais rigorosamente punido do que as pobres almas por ele arrastadas ao mal e que, muitas vezes, são apenas culpadas de uma falta temporária que lhes causam amargos remorsos. Longe disso: é exatamente o contrário que acontece.
Essas almas infelizes são condenadas a sofrimentos atrozes, sem trégua nem mercê por toda a eternidade, sem um só instante de alívio e, durante esse tempo, o diabo, autor de todo o mal, goza de plena liberdade, corre o mundo recrutando vítimas, toma todas as formas, se permite todas as alegrias, faz traquinices, diverte-se até mesmo em interromper o curso das leis de Deus, já que pode fazer milagres. Na verdade, restaria às almas culpadas invejar a sorte do diabo. E Deus o deixa agir, sem nada dizer, sem lhe opor nenhum freio, sem permitir aos Espíritos bons que ao menos venham contrabalançar suas ações criminosas! De boa-fé, isto é lógico? E os que professam tal doutrina podem jurar, com a mão na consciência, que a poriam no fogo para sustentar que é a verdade?
O segundo caso também levanta uma dificuldade muito grande. Se as almas que estão na beatitude não podem deixar sua venturosa morada para vir socorrer os mortais – o que, diga-se de passagem, seria uma felicidade muito egoísta – por que invoca a Igreja a assistência dos santos, que devem gozar da maior soma possível de beatitude? Por que diz ela aos fiéis que os invoquem nas doenças, nas aflições e para se preservarem dos flagelos? Por que, segundo ela, os santos, a própria Virgem, vêm mostrar-se aos homens e fazer milagres? Então eles deixam o Céu para vir à Terra?
Se o podem deixar, por que outros não o poderiam?
Como os motivos alegados para justificar a proibição de se comunicar com os Espíritos não suportam um exame sério, é preciso que haja outro, não confessado. Este motivo bem poderia ser o temor de que os Espíritos, muito clarividentes, viessem esclarecer os homens sobre certos pontos e lhes dar a conhecer exatamente como se passam as coisas no outro mundo e as verdadeiras condições para ser feliz ou infeliz. Eis por que se diz a uma criança: “Não vá lá; existe um lobisomem”; e se diz aos homens: “Não chameis os Espíritos; são diabos.” Providência inútil, porquanto, mesmo que se proíba os homens de chamar os Espíritos, não se impedirá que os Espíritos venham aos homens, tirar a lâmpada de debaixo do alqueire.




[1] Revista Espírita – Outubro/1863 – Allan Kardec

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