quarta-feira, 10 de outubro de 2018

FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA ESPÍRITA[1]

O Conceito de Pessoa no Espiritismo

 

Bioética surgiu há pouco mais de 30 anos, como disciplina que oferece campo aberto ao estudo, à reflexão e à aplicação responsável dos poderes decorrentes dos avanços das Ciências da Vida.
Neologismo simples e conciso, expressa, claramente, a ética da vida, o anseio de se unir valores éticos e fatos biológicos, de se usar, com responsabilidade, o conhecimento no campo científico-tecnológico.
Segundo o oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter, primeiro a utilizar, em 1970, o termo bioético, na raiz de sua concepção está a necessidade de que a ciência biológica se faça perguntas éticas, de que o homem se interrogue a respeito da relevância moral de sua intervenção na vida.
Até que ponto o pesquisador tem o direito de interferir no campo médico-biológico?
Como fica a aplicação do poder biotecnológico, concentrado nas mãos de poucos?
Ainda hoje, dada a ausência de fronteiras, é difícil definir, mas já se considera que a ética médica propriamente dita está contida nela, além da vida planetária, como um todo, inclusive em sentido social e ambiental.
A definição da Encyclopedia of Bioethics, de 1978, contempla esta acepção, denominando Bioética ao "estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de valores e de princípios morais”.
Com essa larga abrangência, a Bioética exige um grande esforço interdisciplinar, envolvendo não apenas os profissionais da saúde, mas igualmente antropólogos, filósofos, especialistas do Direito, psicólogos, eticistas, religiosos etc., que buscam, juntos, os verdadeiros valores éticos para tornar mais justa e verdadeira a intervenção na vida humana e na biosfera.
Mais que interdisciplinar, ela é intercultural, porque tem de levar em conta as diferentes culturas, em seu amplo e variado espectro de diversidades. Sem dúvida, um grande desafio, principalmente, no que se refere ao modo de trabalhar essa interdisciplinaridade e de levar em conta essa grande heterogeneidade, em seu raio de ação.
Por tudo isso, é, especialmente, uma disciplina do diálogo. Obviamente, um diálogo nem sempre fácil, quando se trata de conciliar tendências tão diversas, fundamentadas em sistemas, crenças e valores, que há milênios se repetem no cenário humano.
É natural que seja assim, quando se trata de esclarecer quem é o homem, qual o seu valor, o seu destino e o que significa fazer um bem para ele.
"E quando se fala do homem enquanto homem, da sua origem e de seu destino, vai-se à procura do que é comum a todo o homem ‒ sua dignidade e sua transcendência", como ressalta Vanni Rovighi[2].
Compreende-se, então, que a reflexão bioética não deveria entrar, por exemplo, apenas no momento da aplicação da pesquisa, antes, deveria estar presente no próprio instante em que ela é realizada, questionando, inclusive, seu método, dentro de uma visão mais ampla e integradora do ser humano.
Mas isso, como veremos a seguir, nem sempre é claro para os envolvidos nas pesquisas e consequentes questões éticas, uma vez que são muito diversos os sistemas filosóficos e as teorias que dão suporte aos modelos bioéticos adotados, em seu campo de atuação.
PARADIGMAS DA BIOÉTICA
Dentre os vários paradigmas bioéticos, temos o da "ética dos princípios", mais utilizado na tradição anglo-saxã, que se baseia no que conhecemos como "trindade bioética", os três critérios da Bioética ‒ beneficência, autonomia e justiça.
A ação do médico estaria representada na beneficência, enquanto que a do paciente seria reconhecida na autonomia e a da sociedade na justiça.
Não é fácil conciliar a articulação de todos esses critérios para a garantia de uma ação mais justa.
Beneficência é o mais antigo critério da ética médica, enquadra-se no modelo hipocrático e tradicional e diz respeito à necessidade de "fazer o bem", de "não causar dano" (primum non nocere[3]), "cuidar da saúde", "favorecer a qualidade de vida". Sem dúvida, hoje, o médico, para exercer esse critério, tem muito mais problemas, porque tem de administrar os conhecimentos e poderes resultantes dos extraordinários avanços das Ciências da Vida, como, por exemplo, no campo da genômica e da manipulação genética, que entreabrem a possibilidade da clonagem humana, dos seres transgênicos, e de outras técnicas polêmicas.
Hoje, também, é muito mais complicado definir o que é bem do paciente, tendo em vista que o médico tem de levar em consideração, com muito mais ênfase do que no passado, os direitos do paciente, a sua autonomia.
Esta ganhou destaque, sobretudo, a partir da década 1970 e tem como significado a própria emancipação da razão humana, a legislação pelo próprio sujeito de sua vida e de suas atitudes.
A relação médico-paciente mudou, porque o paciente deixou de ser objeto para tornar-se também sujeito, como o médico, o que significa que ambos compartilham as decisões, no uso de seus plenos direitos como cidadãos. Pode-se imaginar as dificuldades dessa relação e os percalços no exercício desses direitos.
O princípio de justiça busca garantir um sistema de saúde no qual todos se beneficiem. Esse critério, mais recente, fruto dos avanços da sociedade pluralista, pleiteia a distribuição justa, equitativa e universal dos benefícios dos serviços de saúde.
Os autores neolatinos levam em consideração outros princípios, os da Bioética Personalista; destacando o de defesa da vida física, o de liberdade e responsabilidade, o de totalidade ou terapêutico, o de sociabilidade ou subsidiariedade[4].
O princípio de defesa da vida física está ligado ao respeito que se deve ter pela própria vida, representando o primeiro imperativo ético do homem para consigo mesmo e para com os outros. Toda a sociedade civilizada constrói-se sobre ele.
O princípio de liberdade e de responsabilidade entende o paciente como um sujeito e não como um objeto. Nesse relacionamento recíproco, tanto o médico quanto o paciente são sujeitos livres e responsáveis, devendo ser respeitada tanto a consciência de um quanto a de outro.
O princípio de totalidade ou terapêutico deriva diretamente do imperativo de respeito à vida, ressaltando que a finalidade da medicina é o bem do paciente.
O princípio da sociabilidade ou subsidiariedade contempla o dever elementar de solidariedade, que obriga cada homem a contribuir, voluntariamente, na medida do possível, para o bem dos cidadãos. O Estado tem o dever de fornecer às pessoas mais carentes os meios de satisfazer suas necessidades essenciais, garantindo a todos os membros da comunidade os meios de acesso à saúde.
Há ainda os que adotam o paradigma antropológico que tem por base "uma filosofia humanista atenta em compreender o homem em todas as suas dimensões e, por isso, um humanismo o mais integral possível” [5].
MODELOS
De certa forma, podemos dizer que os princípios que dão suporte aos paradigmas bioéticos são os mesmos que se repetem, milenarmente, apoiando teorias diversas, tanto as que aceitam a presença da alma imortal na pessoa humana, quanto as que são reducionistas e não admitem senão a existência do corpo físico.
É natural que seja assim, porque os seres humanos estão em busca da Verdade, como fonte inspiradora de suas decisões, mas ela não está disponível, integralmente, porque, já se disse, com justa razão, que ela é semelhante a enorme espelho que se fragmentou em um número incontável de pedaços esparsos pelo mundo. Cada qual se agarra ao seu retalho de espelho, como se fora a verdade absoluta, sem compreender que a visão global é uma conquista lenta e gradual, que só se completará com a evolução espiritual do ser. Por essa razão, são diversificadas as teorias e os modelos éticos de referência sobre os quais se fundamentam o juízo ético.
Nesse grande pluralismo de critérios, surgem, muitas vezes, posições irreconciliáveis, uma vez que os valores e princípios que lhes servem de base determinam interpretações bem diversas do que seja "lícito" ou "não ilícito".
É importante , portanto, refletirmos sobre alguns Modelos de Bioética que resultam desses diversos princípios[6].
MODELO SOCIOBIOLÓGICO
A teoria evolucionista de Darwin harmoniza-se aqui com o sociologismo de M. Weber e com a sociobiologia de Heinsenk e Wilson. Considera o cosmo e as várias formas de vida do planeta em contínua evolução, desse modo, os valores morais também devem sofrer mudanças. Como a humanidade atingiu a capacidade de dominar cientificamente os mecanismos da evolução e da seleção biológica, os seus seguidores consideram plenamente justificada a aplicação da engenharia genética seletiva, não apenas de melhoria, mas também de alteração, tanto para as espécies animais quanto para o homem.
Os sociobiólogos consideram, por exemplo, justificáveis as intervenções no patrimônio biológico da humanidade.
MODELO SUBJETIVISTA OU LIBERAL-RADICAL
Nesse modelo, a moral não pode fundamentar-se nem sobre os fatos nem sobre os valores objetivos ou transcendentais, mas tão-somente sobre a "escolha" autônoma do sujeito. Nele, o princípio de autonomia é preponderante: é lícito o que é livremente desejado, aceito e não fere a liberdade do outro.
Preconiza a liberalização do aborto; livre escolha do sexo do nascituro e também para o adulto que deseja a mudança de sexo; liberdade de experimentação e de pesquisa; liberdade de decidir a respeito do momento da morte (living will[7]); o suicídio, como sinal e ênfase de liberdade.
MODELO PRAGMÁTICO-UTILITARISTA
Rejeita a ideia metafísica.
Baseado nos princípios de beneficência, autonomia e justiça, é mais comum na bioética anglo-saxã.
Teve o mérito de revalorizar o papel do paciente como "pessoa" e de colocar limites na ação do médico, mas torna-se problemático quando a autonomia do paciente passa a ser o princípio único na relação médico-paciente, sem ligação nenhuma com um bem que transcende os sujeitos envolvidos.
Nesse modelo, o velho utilitarismo está de volta, resumindo-se "no tríplice mandamento: maximizar o prazer, minimizar a dor e ampliar a esfera das liberdades pessoais para o maior número de pessoas” [8].
Nesses parâmetros do neoutilitarismo, origina-se o conceito recente de "qualidade de vida" que se opõe ao mais antigo, o da "dignidade da vida".
Como reconhece Andorno, a expressão "qualidade de vida" é bastante ambígua, porque tanto pode significar a possibilidade de melhora das condições de vida dos homens, ponto defendido por todos, como também exprimir a ideia segundo a qual há vidas humanas que não têm muita "qualidade", estão abaixo dos padrões estabelecidos.
Nesse último caso, estariam, por exemplo, os pacientes terminais, os recém-nascidos com deficiências severas etc., para os quais a melhor solução seria deixar de existir. A morte, nesses casos, seria um objetivo a atingir, quer por ação quer por omissão.
MODELO PERSONALISTA
Está fundamentado nos princípios defendidos pela Bioética Personalista, já citados, os quais têm um denominador comum, o respeito à vida.
A decisão bioética ‒ o lícito e o não-lícito ‒ é orientada para assegurar esse respeito, garantindo, assim, a defesa da vida humana, quer dizer, do continuum que se estende do zigoto ao idoso, da concepção à morte.
O termo "pessoa" é empregado, aqui, para os seres que possuem uma "dignidade intrínseca", o que equivale a dizer, "ser merece um tratamento, enquanto fim em si mesmo".
Como ressalta Andorno: "o conceito de "pessoa" é aplicável a todo ser humano vivo, ainda que não tenha desenvolvido suas potencialidades (como no feto, ou no recém-nascido), ou que as tenha perdido (como em certos casos de demência especialmente graves) “[9].
O VALOR DA PESSOA HUMANA
Diante dos avanços biotecnológicos e, consequentemente, da real ameaça de interferência em seu patrimônio genético, na sua própria essência como pessoa, é indispensável que o homem volte a formular as velhas questões milenares de sempre: "O que sou?”, "Qual a minha destinação?".
E isso porque, hoje, mais do que ontem, há uma corrente poderosa e influente, que procura reduzi-lo ao estado de "coisa"; rebaixando-o da condição de "sujeito" para a de "objeto".
Na verdade, essa "coisificação" ou reificação da pessoa já ocorre, na prática, como fruto da aplicação dos vários modelos bioéticos, já vistos, que não conferem à pessoa os mesmos valores essenciais, fundamentados na transcendência.
Desse modo, hoje, mais do que nunca, é preciso que o homem se interrogue a respeito de si mesmo, o que é enquanto "pessoa", qual o seu "valor", onde se fundamenta a sua própria dignidade.
Persona vem do grego ‒ propôson ‒ que designava tanto o rosto humano quanto a máscara usada pelos atores no teatro. O rosto exteriorizaria a pessoa de forma mais imediata; mostraria o aspecto irredutível da personalidade, o mistério de ser fim em si mesmo.
Assim, quando se utiliza o termo "pessoa", reporta-se ao rosto, referindo-se ao ser que não se pertence senão a si mesmo, quer dizer, àquele "que é incapaz de pertencer a um outro enquanto simples objeto” [10].
A pessoa não tem a "propriedade" de seu corpo, essas duas realidades se identificam de tal modo que a pessoa não possui o seu corpo, ela é seu corpo.
O termo é empregado, comumente, para designar os seres que possuem uma dignidade intrínseca, pelo simples fato de existirem. Esse é o conceito de dignidade ontológica, que é uma qualidade inseparavelmente ligada ao ser mesmo do homem; igual, portanto, para todos. Nesse sentido, pelo simples fato de pertencer à espécie humana, todo homem é digno, mesmo os piores criminosos, não podendo, consequentemente, ser submetido a tratamentos degradantes, como a tortura, por exemplo. Toda a noção de "direitos do homem" tem nela seus fundamentos.
Mas dignidade também pode ser empregada em sentido diferente, é o caso da dignidade ética, que não se refere ao ser da pessoa, mas ao seu agir. Nesse sentido, o homem torna-se a si mesmo digno pelo seu modo de atuar; por sua vida dedicada ao bem, construída conforme o uso de sua liberdade; nem todos, portanto, a possuem da mesma maneira.
Comumente, no entanto, quando falamos em "dignidade da pessoa" estamos nos referindo ao primeiro sentido, ao da dignidade ontológica, que reconhece no homem um valor intrínseco, pelo simples fato de ser homem. Essa noção tem raízes profundas nas origens mesmo do pensamento ocidental.
Para os gregos, especialmente Platão e Aristóteles, há no homem a presença de um elemento divino ‒ a alma ‒ que lhe confere a característica de um ser sagrado, tanto por sua origem, quanto por sua destinação. Assim, em A República (IX, 589) e Ética a Nicomaco (X7, 1177 a 16; b 28), esse elemento divino e ressaltado, ele "nos eleva acima da terra", constituindo-se em fundamento da própria dignidade humana.
O espírito estaria, assim, na raiz da pessoa, conferindo transcendência.
Essa mesma noção tem sido difundida pelas tradições cristãs, que consideram o homem como um ser sagrado, feito à imagem e semelhança de Deus.
A partir do século XVII, porém, a noção de dignidade humana, baseada na transcendência, sofreu fortes abalos, acentuando-se, mais profundamente, nos dias de hoje, justamente, no momento em que, mais do que nunca, é necessária a sua defesa, sobretudo, depois dos abusos terríveis da 2ª Grande Guerra e dos avanços biotecnológicos atuais. Todavia, os que defendem essa ruptura com o sagrado não sabem ao certo onde fundamentar a dignidade humana que pretendem preservar.
Há, hoje, portanto, duas noções opostas do que seja "pessoa": a que identifica o indivíduo como pertencente à espécie humana e a outra que a atrela à condição de ser autoconsciente.
PESSOA: “INDIVÍDUO HUMANO”
A primeira abordagem deriva da definição de pessoa dada por Boécio: substância individual de natureza racional.
Nela, a pessoa é concebida, antes de tudo, como um ser vivo que pertence à natureza racional, unidade indissociável de matéria e espírito.
A pessoa não pode ser reduzida às suas partes, ela não é a sua razão e muito menos sua consciência; pode constatar, por exemplo, através da consciência, a existência de sua própria personalidade, mas não a cria. O sentido empregado, aqui, é o de consciência de si mesmo.
Nesse conceito, a consciência é posterior à pessoa. Assim, conquanto inconscientes, recém-nascido e homem adormecido são pessoas, mesmo sem demonstrar suas capacidades intelectuais, são respeitados como um fim em si mesmo. A presença da pessoa não depende, pois, do exercício atual da razão ou da consciência, na verdade, ela pertence a uma realidade que ultrapassa a atividade neuronal ou o mero quimismo celular.
A base de sua dignidade é ontológica, inerente ao existir.
Esse conceito é aplicado a todo ser humano vivo, quer seja feto ou recém-nascido, demente ou paciente em estado terminal, procurando preservar-lhe o bem fundamental, o direito à vida.
SER AUTOCONSCIENTE
Há, no entanto, um outro conceito, oposto a este, que tem uma visão dualista do homem, oriunda, sobretudo, do cogito ergo sum de Descartes, que reduziu a pessoa à condição de rés cogitans, quer dizer, ao pensamento, enquanto a rés extensa ou o corpo foi relegado à condição de objeto.
A partir de então, a dimensão corporal do homem foi reduzida ao estado de "coisa"; de mero instrumento a serviço do pensamento, radicalizando, portanto, a distinção entre matéria e espírito. Isto explica porque tem sido cada vez mais ampla a intervenção no corpo humano, através de técnicas cada dia mais apuradas.
Se, por um lado, essa noção contribuiu para o avanço indispensável da Ciência, emperrado pelo feroz dogmatismo religioso, por outro, exagerou nessa visão dualista, subtraindo ao corpo o caráter sagrado que lhe é intrínseco como instrumento do Espírito.
Essa divisão permanece exacerbada nos dias de hoje.
H.T. Engelhardt, por exemplo, estabelece uma distinção entre as pessoas no senso estrito e as de vida biológica humana: "as pessoas no senso estrito são seres autoconscientes, racionais, livres em suas escolhas, capazes de julgamento moral. A elas são aplicados o princípio de autonomia e seu corolário o de respeito mutuo. Só há direitos para os seres autoconscientes” [11].
Os indivíduos que não preenchem essas condições pertencem Categoria de vida biológica humana; são seres, mas não pessoas; fies e dada proteção por simples dever de beneficência. Assim são considerados os fetos, os lactentes, os deficientes mentais severos e os que estão em coma irreversível.
Pela aplicação desses conceitos, assiste-se, hoje, àquilo que se denomina "a diluição dos confins da pessoa” [12], quer dizer, o esvanecimento da noção de pessoa nos chamados momentos limítrofes da existência, tanto no começo quanto no fim, o que tem levado, em muitos países, à legalização do aborto e à tentativa de tornar legal também a eutanásia.
Para os que defendem a tese da autoconsciência, o embrião humano e o feto não são pessoas, por isso não possuem dignidade intrínseca. Não têm direitos mais que um animal, devendo-se apenas não fazê-los sofrer.
Na mesma linha de pensamento de Engelhardt, está outro polêmico eticista, o australiano Peter Singer. Para ele, a vida dos recém-nascidos mentalmente retardados não vale mais que aquela dos cães ou dos chimpanzés adultos, por isso defende ou julga legítimo o infanticídio dos recém nascidos deficientes[13].
Ele critica até mesmo o princípio de respeito incondicional à vida humana.
Assim, pois, a noção de pessoa está na base de toda conduta bioética.
Se a pessoa é identificada com todo ser humano vivo, a conduta é de respeito ao indivíduo, seja qual for sua idade ou estado de saúde, de modo que são eticamente inaceitáveis o aborto, o infanticídio, a eutanásia etc.
A segunda posição analisada, a que considera somente os seres autoconscientes como "pessoas", conduz a uma atitude de indiferença em relação aos homens mais fracos; gera interferência ruinosa na vida humana, principalmente porque esses conceitos tornam, cada vez mais imprecisos, os limites temporais da pessoa ‒ seu começo e seu fim ‒ introduzindo, de forma sistemática e insidiosa, o desrespeito e a desconsideração pela pessoa. Nesse caso, o aborto, o infanticídio, a manipulação de embriões, inclusive para fins eugênicos, a eutanásia etc., estão plenamente justificados.




[1] A Alma da Matéria – Marlene Nobre ‒ FE Editora Jornalística Ltda.
[2] S. Vanni Rovighi, Elementi di filosofia, III, Brescia, 1963, p. 189 a 269, citado por Sgreccia, in Manual de Bioética, cap. 2, p. 65,
[3] Locução latina que significa "primeiro não prejudicar".
 [4] S. Vanni Rovighi, Elementi di filosofia, III, Brescia, 1963, cap. 5, p. 157 a 166
[5] Jean-François Malherbe, citado por Francisco de Assis Correia, in Fundamentos
da Bioética, p. 39
[6] Seguimos aqui o esquema de Sgreccia, cap. 2 de Manual de Bioética
[7] Vontade de viver.
[8] Manual de Bioética, cap. 2, p. 74
[9] La Bioéthique et Ia dignité de Ia personne, Roberto Andorno, cap. l ,pag. 18
[10] La Bioéthique et Ia Dignité de Ia Personne, cap. II, p.34,41 e 45
[11] La Bioéthique et Ia Dignité de Ia Personne, cap. II, p.34,41 e 45
[12] L. Palazzani, Esse reumano o persona? Persona potenziale o persona possibile?, citado por Andorno, cap. 2, p. 40
[13] Peter Singer, Animal Liberation. A New Ethicsfor our Treatment of Animais, ditado por R. Andorno, 1997, p. 46

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