Bioética surgiu há pouco mais de
30 anos, como disciplina que oferece campo aberto ao estudo, à reflexão e à
aplicação responsável dos poderes decorrentes dos avanços das Ciências da Vida.
Neologismo simples e conciso,
expressa, claramente, a ética da vida, o anseio de se unir valores éticos e
fatos biológicos, de se usar, com responsabilidade, o conhecimento no campo
científico-tecnológico.
Segundo o oncologista
norte-americano Van Rensselaer Potter, primeiro a utilizar, em 1970, o termo
bioético, na raiz de sua concepção está a necessidade de que a ciência
biológica se faça perguntas éticas, de que o homem se interrogue a respeito da
relevância moral de sua intervenção na vida.
Até que ponto o pesquisador tem
o direito de interferir no campo médico-biológico?
Como fica a aplicação do poder
biotecnológico, concentrado nas mãos de poucos?
Ainda hoje, dada a ausência de
fronteiras, é difícil definir, mas já se considera que a ética médica
propriamente dita está contida nela, além da vida planetária, como um todo,
inclusive em sentido social e ambiental.
A definição da Encyclopedia of
Bioethics, de 1978, contempla esta acepção, denominando Bioética ao
"estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da
saúde considerada à luz de valores e de princípios morais”.
Com essa larga abrangência, a
Bioética exige um grande esforço interdisciplinar, envolvendo não apenas os
profissionais da saúde, mas igualmente antropólogos, filósofos, especialistas
do Direito, psicólogos, eticistas, religiosos etc., que buscam, juntos, os
verdadeiros valores éticos para tornar mais justa e verdadeira a intervenção na
vida humana e na biosfera.
Mais que interdisciplinar, ela é
intercultural, porque tem de levar em conta as diferentes culturas, em seu
amplo e variado espectro de diversidades. Sem dúvida, um grande desafio,
principalmente, no que se refere ao modo de trabalhar essa
interdisciplinaridade e de levar em conta essa grande heterogeneidade, em seu
raio de ação.
Por tudo isso, é, especialmente,
uma disciplina do diálogo. Obviamente, um diálogo nem sempre fácil, quando se
trata de conciliar tendências tão diversas, fundamentadas em sistemas, crenças
e valores, que há milênios se repetem no cenário humano.
É natural que seja assim, quando
se trata de esclarecer quem é o homem, qual o seu valor, o seu destino e o que
significa fazer um bem para ele.
"E quando se fala do homem
enquanto homem, da sua origem e de seu destino, vai-se à procura do que é comum
a todo o homem ‒ sua dignidade e sua transcendência", como ressalta Vanni
Rovighi[2].
Compreende-se, então, que a
reflexão bioética não deveria entrar, por exemplo, apenas no momento da
aplicação da pesquisa, antes, deveria estar presente no próprio instante em que
ela é realizada, questionando, inclusive, seu método, dentro de uma visão mais
ampla e integradora do ser humano.
Mas isso, como veremos a seguir,
nem sempre é claro para os envolvidos nas pesquisas e consequentes questões
éticas, uma vez que são muito diversos os sistemas filosóficos e as teorias que
dão suporte aos modelos bioéticos adotados, em seu campo de atuação.
PARADIGMAS DA BIOÉTICA
Dentre os vários paradigmas
bioéticos, temos o da "ética dos princípios", mais utilizado na tradição
anglo-saxã, que se baseia no que conhecemos como "trindade bioética",
os três critérios da Bioética ‒ beneficência, autonomia e justiça.
A ação do médico estaria
representada na beneficência, enquanto que a do paciente seria reconhecida na
autonomia e a da sociedade na justiça.
Não é fácil conciliar a
articulação de todos esses critérios para a garantia de uma ação mais justa.
Beneficência é o mais antigo
critério da ética médica, enquadra-se no modelo hipocrático e tradicional e diz
respeito à necessidade de "fazer o bem", de "não causar
dano" (primum non nocere[3]),
"cuidar da saúde", "favorecer a qualidade de vida". Sem
dúvida, hoje, o médico, para exercer esse critério, tem muito mais problemas,
porque tem de administrar os conhecimentos e poderes resultantes dos
extraordinários avanços das Ciências da Vida, como, por exemplo, no campo da
genômica e da manipulação genética, que entreabrem a possibilidade da clonagem
humana, dos seres transgênicos, e de outras técnicas polêmicas.
Hoje, também, é muito mais
complicado definir o que é bem do paciente, tendo em vista que o médico tem de
levar em consideração, com muito mais ênfase do que no passado, os direitos do
paciente, a sua autonomia.
Esta ganhou destaque, sobretudo,
a partir da década 1970 e tem como significado a própria emancipação da razão
humana, a legislação pelo próprio sujeito de sua vida e de suas atitudes.
A relação médico-paciente mudou,
porque o paciente deixou de ser objeto para tornar-se também sujeito, como o
médico, o que significa que ambos compartilham as decisões, no uso de seus
plenos direitos como cidadãos. Pode-se imaginar as dificuldades dessa relação e
os percalços no exercício desses direitos.
O princípio de justiça busca
garantir um sistema de saúde no qual todos se beneficiem. Esse critério, mais
recente, fruto dos avanços da sociedade pluralista, pleiteia a distribuição
justa, equitativa e universal dos benefícios dos serviços de saúde.
Os autores neolatinos levam em
consideração outros princípios, os da Bioética Personalista; destacando o de
defesa da vida física, o de liberdade e responsabilidade, o de totalidade ou
terapêutico, o de sociabilidade ou subsidiariedade[4].
O princípio de defesa da vida
física está ligado ao respeito que se deve ter pela própria vida, representando
o primeiro imperativo ético do homem para consigo mesmo e para com os outros.
Toda a sociedade civilizada constrói-se sobre ele.
O princípio de liberdade e de
responsabilidade entende o paciente como um sujeito e não como um objeto. Nesse
relacionamento recíproco, tanto o médico quanto o paciente são sujeitos livres
e responsáveis, devendo ser respeitada tanto a consciência de um quanto a de
outro.
O princípio de totalidade ou
terapêutico deriva diretamente do imperativo de respeito à vida, ressaltando
que a finalidade da medicina é o bem do paciente.
O princípio da sociabilidade ou subsidiariedade
contempla o dever elementar de solidariedade, que obriga cada homem a
contribuir, voluntariamente, na medida do possível, para o bem dos cidadãos. O
Estado tem o dever de fornecer às pessoas mais carentes os meios de satisfazer
suas necessidades essenciais, garantindo a todos os membros da comunidade os
meios de acesso à saúde.
Há ainda os que adotam o
paradigma antropológico que tem por base "uma filosofia humanista atenta
em compreender o homem em todas as suas dimensões e, por isso, um humanismo o
mais integral possível” [5].
MODELOS
De certa forma, podemos dizer
que os princípios que dão suporte aos paradigmas bioéticos são os mesmos que se
repetem, milenarmente, apoiando teorias diversas, tanto as que aceitam a
presença da alma imortal na pessoa humana, quanto as que são reducionistas e
não admitem senão a existência do corpo físico.
É natural que seja assim, porque
os seres humanos estão em busca da Verdade, como fonte inspiradora de suas
decisões, mas ela não está disponível, integralmente, porque, já se disse, com
justa razão, que ela é semelhante a enorme espelho que se fragmentou em um
número incontável de pedaços esparsos pelo mundo. Cada qual se agarra ao seu
retalho de espelho, como se fora a verdade absoluta, sem compreender que a
visão global é uma conquista lenta e gradual, que só se completará com a
evolução espiritual do ser. Por essa razão, são diversificadas as teorias e os
modelos éticos de referência sobre os quais se fundamentam o juízo ético.
Nesse grande pluralismo de
critérios, surgem, muitas vezes, posições irreconciliáveis, uma vez que os
valores e princípios que lhes servem de base determinam interpretações bem
diversas do que seja "lícito" ou "não ilícito".
É importante , portanto,
refletirmos sobre alguns Modelos de Bioética que resultam desses diversos
princípios[6].
MODELO SOCIOBIOLÓGICO
A teoria evolucionista de Darwin
harmoniza-se aqui com o sociologismo de M. Weber e com a sociobiologia de
Heinsenk e Wilson. Considera o cosmo e as várias formas de vida do planeta em
contínua evolução, desse modo, os valores morais também devem sofrer mudanças.
Como a humanidade atingiu a capacidade de dominar cientificamente os mecanismos
da evolução e da seleção biológica, os seus seguidores consideram plenamente
justificada a aplicação da engenharia genética seletiva, não apenas de
melhoria, mas também de alteração, tanto para as espécies animais quanto para o
homem.
Os sociobiólogos consideram, por
exemplo, justificáveis as intervenções no patrimônio biológico da humanidade.
MODELO SUBJETIVISTA OU LIBERAL-RADICAL
Nesse modelo, a moral não pode
fundamentar-se nem sobre os fatos nem sobre os valores objetivos ou
transcendentais, mas tão-somente sobre a "escolha" autônoma do
sujeito. Nele, o princípio de autonomia é preponderante: é lícito o que é
livremente desejado, aceito e não fere a liberdade do outro.
Preconiza a liberalização do
aborto; livre escolha do sexo do nascituro e também para o adulto que deseja a
mudança de sexo; liberdade de experimentação e de pesquisa; liberdade de
decidir a respeito do momento da morte (living will[7]);
o suicídio, como sinal e ênfase de liberdade.
MODELO PRAGMÁTICO-UTILITARISTA
Rejeita a ideia metafísica.
Baseado nos princípios de
beneficência, autonomia e justiça, é mais comum na bioética anglo-saxã.
Teve o mérito de revalorizar o
papel do paciente como "pessoa" e de colocar limites na ação do
médico, mas torna-se problemático quando a autonomia do paciente passa a ser o
princípio único na relação médico-paciente, sem ligação nenhuma com um bem que
transcende os sujeitos envolvidos.
Nesse modelo, o velho
utilitarismo está de volta, resumindo-se "no tríplice mandamento:
maximizar o prazer, minimizar a dor e ampliar a esfera das liberdades pessoais
para o maior número de pessoas” [8].
Nesses parâmetros do neoutilitarismo,
origina-se o conceito recente de "qualidade de vida" que se opõe ao
mais antigo, o da "dignidade da vida".
Como reconhece Andorno, a expressão
"qualidade de vida" é bastante ambígua, porque tanto pode significar
a possibilidade de melhora das condições de vida dos homens, ponto defendido
por todos, como também exprimir a ideia segundo a qual há vidas humanas que não
têm muita "qualidade", estão abaixo dos padrões estabelecidos.
Nesse último caso, estariam, por
exemplo, os pacientes terminais, os recém-nascidos com deficiências severas
etc., para os quais a melhor solução seria deixar de existir. A morte, nesses
casos, seria um objetivo a atingir, quer por ação quer por omissão.
MODELO PERSONALISTA
Está fundamentado nos princípios
defendidos pela Bioética Personalista, já citados, os quais têm um denominador
comum, o respeito à vida.
A decisão bioética ‒ o lícito e
o não-lícito ‒ é orientada para assegurar esse respeito, garantindo, assim, a
defesa da vida humana, quer dizer, do continuum que se estende do zigoto ao
idoso, da concepção à morte.
O termo "pessoa" é
empregado, aqui, para os seres que possuem uma "dignidade
intrínseca", o que equivale a dizer, "ser merece um tratamento,
enquanto fim em si mesmo".
Como ressalta Andorno: "o
conceito de "pessoa" é aplicável a todo ser humano vivo, ainda que
não tenha desenvolvido suas potencialidades (como no feto, ou no
recém-nascido), ou que as tenha perdido (como em certos casos de demência
especialmente graves) “[9].
O VALOR DA PESSOA HUMANA
Diante dos avanços
biotecnológicos e, consequentemente, da real ameaça de interferência em seu
patrimônio genético, na sua própria essência como pessoa, é indispensável que o
homem volte a formular as velhas questões milenares de sempre: "O que sou?”,
"Qual a minha destinação?".
E isso porque, hoje, mais do que
ontem, há uma corrente poderosa e influente, que procura reduzi-lo ao estado de
"coisa"; rebaixando-o da condição de "sujeito" para a de
"objeto".
Na verdade, essa
"coisificação" ou reificação da pessoa já ocorre, na prática, como
fruto da aplicação dos vários modelos bioéticos, já vistos, que não conferem à
pessoa os mesmos valores essenciais, fundamentados na transcendência.
Desse modo, hoje, mais do que
nunca, é preciso que o homem se interrogue a respeito de si mesmo, o que é
enquanto "pessoa", qual o seu "valor", onde se fundamenta a
sua própria dignidade.
Persona vem do grego ‒ propôson ‒
que designava tanto o rosto humano quanto a máscara usada pelos atores no
teatro. O rosto exteriorizaria a pessoa de forma mais imediata; mostraria o
aspecto irredutível da personalidade, o mistério de ser fim em si mesmo.
Assim, quando se utiliza o termo
"pessoa", reporta-se ao rosto, referindo-se ao ser que não se
pertence senão a si mesmo, quer dizer, àquele "que é incapaz de pertencer
a um outro enquanto simples objeto” [10].
A pessoa não tem a
"propriedade" de seu corpo, essas duas realidades se identificam de
tal modo que a pessoa não possui o seu corpo, ela é seu corpo.
O termo é empregado, comumente,
para designar os seres que possuem uma dignidade intrínseca, pelo simples fato
de existirem. Esse é o conceito de dignidade ontológica, que é uma qualidade
inseparavelmente ligada ao ser mesmo do homem; igual, portanto, para todos.
Nesse sentido, pelo simples fato de pertencer à espécie humana, todo homem é
digno, mesmo os piores criminosos, não podendo, consequentemente, ser submetido
a tratamentos degradantes, como a tortura, por exemplo. Toda a noção de "direitos
do homem" tem nela seus fundamentos.
Mas dignidade também pode ser
empregada em sentido diferente, é o caso da dignidade ética, que não se refere
ao ser da pessoa, mas ao seu agir. Nesse sentido, o homem torna-se a si mesmo
digno pelo seu modo de atuar; por sua vida dedicada ao bem, construída conforme
o uso de sua liberdade; nem todos, portanto, a possuem da mesma maneira.
Comumente, no entanto, quando
falamos em "dignidade da pessoa" estamos nos referindo ao primeiro
sentido, ao da dignidade ontológica, que reconhece no homem um valor
intrínseco, pelo simples fato de ser homem. Essa noção tem raízes profundas nas
origens mesmo do pensamento ocidental.
Para os gregos, especialmente
Platão e Aristóteles, há no homem a presença de um elemento divino ‒ a alma ‒
que lhe confere a característica de um ser sagrado, tanto por sua origem,
quanto por sua destinação. Assim, em A República (IX, 589) e Ética a Nicomaco (X7,
1177 a 16; b 28), esse elemento divino e ressaltado, ele "nos eleva acima
da terra", constituindo-se em fundamento da própria dignidade humana.
O espírito estaria, assim, na
raiz da pessoa, conferindo transcendência.
Essa mesma noção tem sido
difundida pelas tradições cristãs, que consideram o homem como um ser sagrado,
feito à imagem e semelhança de Deus.
A partir do século XVII, porém,
a noção de dignidade humana, baseada na transcendência, sofreu fortes abalos,
acentuando-se, mais profundamente, nos dias de hoje, justamente, no momento em
que, mais do que nunca, é necessária a sua defesa, sobretudo, depois dos abusos
terríveis da 2ª Grande Guerra e dos avanços biotecnológicos atuais. Todavia, os
que defendem essa ruptura com o sagrado não sabem ao certo onde fundamentar a
dignidade humana que pretendem preservar.
Há, hoje, portanto, duas noções
opostas do que seja "pessoa": a que identifica o indivíduo como
pertencente à espécie humana e a outra que a atrela à condição de ser
autoconsciente.
PESSOA: “INDIVÍDUO HUMANO”
A primeira abordagem deriva da
definição de pessoa dada por Boécio: substância individual de natureza
racional.
Nela, a pessoa é concebida,
antes de tudo, como um ser vivo que pertence à natureza racional, unidade
indissociável de matéria e espírito.
A pessoa não pode ser reduzida
às suas partes, ela não é a sua razão e muito menos sua consciência; pode
constatar, por exemplo, através da consciência, a existência de sua própria
personalidade, mas não a cria. O sentido empregado, aqui, é o de consciência de
si mesmo.
Nesse conceito, a consciência é
posterior à pessoa. Assim, conquanto inconscientes, recém-nascido e homem
adormecido são pessoas, mesmo sem demonstrar suas capacidades intelectuais, são
respeitados como um fim em si mesmo. A presença da pessoa não depende, pois, do
exercício atual da razão ou da consciência, na verdade, ela pertence a uma
realidade que ultrapassa a atividade neuronal ou o mero quimismo celular.
A base de sua dignidade é
ontológica, inerente ao existir.
Esse conceito é aplicado a todo
ser humano vivo, quer seja feto ou recém-nascido, demente ou paciente em estado
terminal, procurando preservar-lhe o bem fundamental, o direito à vida.
SER AUTOCONSCIENTE
Há, no entanto, um outro
conceito, oposto a este, que tem uma visão dualista do homem, oriunda, sobretudo,
do cogito ergo sum de Descartes, que
reduziu a pessoa à condição de rés cogitans, quer dizer, ao pensamento,
enquanto a rés extensa ou o corpo foi relegado à condição de objeto.
A partir de então, a dimensão
corporal do homem foi reduzida ao estado de "coisa"; de mero
instrumento a serviço do pensamento, radicalizando, portanto, a distinção entre
matéria e espírito. Isto explica porque tem sido cada vez mais ampla a
intervenção no corpo humano, através de técnicas cada dia mais apuradas.
Se, por um lado, essa noção
contribuiu para o avanço indispensável da Ciência, emperrado pelo feroz
dogmatismo religioso, por outro, exagerou nessa visão dualista, subtraindo ao
corpo o caráter sagrado que lhe é intrínseco como instrumento do Espírito.
Essa divisão permanece
exacerbada nos dias de hoje.
H.T. Engelhardt, por exemplo,
estabelece uma distinção entre as pessoas no senso estrito e as de vida
biológica humana: "as pessoas no senso estrito são seres autoconscientes,
racionais, livres em suas escolhas, capazes de julgamento moral. A elas são
aplicados o princípio de autonomia e seu corolário o de respeito mutuo. Só há
direitos para os seres autoconscientes” [11].
Os indivíduos que não preenchem
essas condições pertencem Categoria de vida biológica humana; são seres, mas
não pessoas; fies e dada proteção por simples dever de beneficência. Assim são
considerados os fetos, os lactentes, os deficientes mentais severos e os que
estão em coma irreversível.
Pela aplicação desses conceitos,
assiste-se, hoje, àquilo que se denomina "a diluição dos confins da pessoa”
[12],
quer dizer, o esvanecimento da noção de pessoa nos chamados momentos limítrofes
da existência, tanto no começo quanto no fim, o que tem levado, em muitos
países, à legalização do aborto e à tentativa de tornar legal também a
eutanásia.
Para os que defendem a tese da
autoconsciência, o embrião humano e o feto não são pessoas, por isso não
possuem dignidade intrínseca. Não têm direitos mais que um animal, devendo-se
apenas não fazê-los sofrer.
Na mesma linha de pensamento de
Engelhardt, está outro polêmico eticista, o australiano Peter Singer. Para ele,
a vida dos recém-nascidos mentalmente retardados não vale mais que aquela dos
cães ou dos chimpanzés adultos, por isso defende ou julga legítimo o
infanticídio dos recém nascidos deficientes[13].
Ele critica até mesmo o
princípio de respeito incondicional à vida humana.
Assim, pois, a noção de pessoa
está na base de toda conduta bioética.
Se a pessoa é identificada com
todo ser humano vivo, a conduta é de respeito ao indivíduo, seja qual for sua
idade ou estado de saúde, de modo que são eticamente inaceitáveis o aborto, o
infanticídio, a eutanásia etc.
A segunda posição analisada, a
que considera somente os seres autoconscientes como "pessoas", conduz
a uma atitude de indiferença em relação aos homens mais fracos; gera
interferência ruinosa na vida humana, principalmente porque esses conceitos
tornam, cada vez mais imprecisos, os limites temporais da pessoa ‒ seu começo e
seu fim ‒ introduzindo, de forma sistemática e insidiosa, o desrespeito e a
desconsideração pela pessoa. Nesse caso, o aborto, o infanticídio, a
manipulação de embriões, inclusive para fins eugênicos, a eutanásia etc., estão
plenamente justificados.
[1] A Alma da
Matéria – Marlene Nobre ‒ FE Editora
Jornalística Ltda.
[2] S. Vanni Rovighi, Elementi di filosofia, III, Brescia,
1963, p. 189 a 269, citado por Sgreccia, in Manual de Bioética, cap. 2, p. 65,
[3] Locução latina que significa "primeiro não
prejudicar".
[5]
Jean-François Malherbe, citado por Francisco de Assis Correia, in Fundamentos
da Bioética, p. 39
[6]
Seguimos aqui o esquema de Sgreccia, cap. 2 de Manual de Bioética
[7] Vontade
de viver.
[8]
Manual de Bioética, cap. 2, p. 74
[9] La Bioéthique et Ia dignité de Ia personne, Roberto
Andorno, cap. l ,pag. 18
[10] La Bioéthique et Ia Dignité de Ia Personne, cap. II,
p.34,41 e 45
[11] La Bioéthique et Ia Dignité de Ia Personne, cap. II,
p.34,41 e 45
[12] L. Palazzani, Esse reumano o persona? Persona
potenziale o persona possibile?, citado por Andorno, cap. 2, p. 40
[13] Peter Singer,
Animal Liberation. A New Ethicsfor our Treatment of Animais, ditado por R.
Andorno, 1997, p. 46
Nenhum comentário:
Postar um comentário