Será que doses diárias de música
clássica podem mudar sua vida? Soa como uma afirmação exagerada, mas a resposta
é um sonoro "sim".
Somos uma espécie que produz
música ‒ sempre fomos, sempre seremos. Também somos uma espécie de intercâmbio
musical: muito antes de adolescentes apaixonados trocarem suas playlists, ou o
serviço de streaming nos permitir compartilhar nossas faixas favoritas, já nos
comunicávamos e nos conectávamos através da música.
Evoluímos como humanos ao nos
reunir ao redor da fogueira depois de um longo dia de caça e coleta para cantar
canções e contar histórias com músicas. Era isso que nossos ancestrais faziam;
é assim que eles davam sentido ao mundo; foi assim que eles aprenderam a ser.
Esse é um impulso ainda
fundamental sobre quem somos. Hoje, no entanto, nossas vidas modernas estão
desintegradas e exauridas em um grau sem precedentes. Quem tem o luxo de
encontrar tempo todo dia para prestar total atenção a uma determinada música?
E, por outro lado, talvez nunca tenhamos precisado tanto do espaço emocional
que a música ‒ especialmente a clássica ‒ nos oferece.
Pesquisas científicas vêm
mostrando que atos de autocuidado trazem benefícios indescritíveis à nossa
saúde mental e nosso bem-estar, mas pessoalmente nunca consegui manter, por
exemplo, uma meditação ou ioga regularmente.
Nunca vou à academia, não importa o quão
nobres sejam minhas intenções. Eu funciono essencialmente à base de café e
açúcar. Sempre deixo a declaração do meu imposto de renda para o final do
prazo. Todo ano defino metas que não consigo cumprir ‒ e com isso fico ainda
mais estressada. Tenho certeza de que não estou sozinha (pelo menos é o que
espero).
Mas na realidade até eu tenho a
disciplina para, em alguns minutos por dia, pôr meus fones de ouvido, escutar
uma única peça musical e me transformar. Embora tenha tocado o violino desde a
infância e trabalhado escrevendo e apresentando programas de música clássica,
só entendi o efeito milagroso do contato diário com essa música depois de dois
anos particularmente difíceis.
Dores pessoais, malabarismos
entre as incompatíveis demandas de uma carreira freelancer implacável e uma
criança enérgica; um permanente sentimento de estar à beira do esgotamento
enquanto dizia ao mundo "está tudo bem!" ‒ nem é preciso dizer que
estava num estado pouco saudável. No entanto, nenhuma das soluções que
experimentei teve efeito. Exceto a música.
Quando tornei meu hábito musical
um ritual diário, comecei a me sentir menos ansiosa quase que imediatamente.
Fiz uma curadoria mensal com uma peça clássica por dia. Entrar no metrô e
apertar o play em vez de automaticamente ser sugada pelas redes sociais parecia
me estabilizar espiritualmente. Eu comecei a esperar ansiosamente por isso. E
me ocorreu que, se eu posso me beneficiar de uma forma tão significativa com
esse pequeno mas poderoso hábito de "manutenção da alma", então
outros também poderiam.
E se eu pudesse me aprofundar no
meu grande amor pela música clássica? E se eu conseguisse desvelar o vasto
tesouro de riquezas musicais ao desmistificar a música e humanizar aqueles que
a criaram, dando algum contexto à peça, contando algumas histórias e lembrando
aos leitores/ouvintes que essa música foi criada por uma pessoa real,
provavelmente alguém que compartilhou muitas das mesmas preocupações que eles,
que pode ser como eles de muitas maneiras?
Por onde começar?
A música clássica é uma arte
que, por complexas razões, é geralmente percebida como exclusiva a uma pequena
elite; como uma festa particular para poucos convidados. Isso é dolorosamente
irônico, porque essa música é uma das mais emocionalmente diretas que temos. Há
uma razão pela qual todos, de cineastas a diretores de funerárias,
invariavelmente se debruçam sobre a música clássica quando querem provocar
emoção. Eu mesma já perdi a conta de amigos, familiares e estranhos que
perguntaram, muitas vezes timidamente, se eu poderia fazer uma playlist
clássica para eles.
Em alguns casos tratava-se de um
pedido bem específico: música para estudar ou trabalhar; música para ninar o
recém-nascido ou dormir; ou até para impressionar os pais de seu novo parceiro;
música para se exercitar, desacelerar, cuidar do jardim, deslocar-se ou
oferecer um jantar.
O homem que cuida da cafeteria
que frequento me pediu que eu selecionasse uma trilha sonora clássica para seu
turno entre o fim da tarde e início da noite. Minha sobrinha adolescente queria
algo para ajudá-la na revisão das provas. E assim por diante. Comumente, o que
ouvia dessas pessoas em busca de uma playlist era algo como "Eu escutei
uma peça na TV/show/filme/anúncio e adorei. Eu não sei nada de música clássica,
mas gostaria de ouvir mais e não tenho ideia de por onde começar…"
A pergunta "por onde
começar" é crítica. Como acontece com outros segmentos, a tecnologia
afetou profundamente a indústria musical de forma tanto positiva quanto
negativa.
É verdade que a dizimação dos
modelos financeiros tradicionais prejudica artistas e selos musicais. Mas o
surgimento de plataformas de streaming, como Spotify e Apple Music, escancarou
a porta da festa de uma forma empolgante e democratizante. Temos acesso a uma
quantidade de conteúdo que há dez anos seria inimaginável. Agora qualquer um
com internet minimamente decente pode explorar o universo musical antes
limitado àqueles com mais recursos.
Um guia prático
Mas, ainda assim, o incrível
volume do que está disponível de graça ao clique do botão pode ser assustador,
se não paralisante.
Por isso decidi escrever uma
espécie de guia prático, não tanto sobre a história da música clássica, e sim
um tesouro curado à mão das músicas que tanto amo. Ele inclui várias mulheres ‒
que por séculos foram excluídas dos cânones ‒ além de compositores negros,
gays, transgêneros; compositores com capacidades diferentes (afinal, Beethoven
compôs algumas de suas obras mais magníficas totalmente surdo); compositores
que lutaram ‒ ou lutam ‒ contra transtornos mentais, vícios, baixa autoestima;
compositores que sobreviveram trabalhando de várias formas (como motorista de
táxi, bombeiro, químico, catador de laranja, funcionário dos correios), mas que
continuaram na função, apesar das dificuldades, e criaram gloriosas peças para
nosso prazer de escutá-las. E talvez nossa salvação.
Acredito que os maiores
trabalhos musicais são motores de empatia; eles nos permitem viajar sem nos
deslocar: para outras vidas, idades, almas. Eles também são robustos:
encaixam-se na nossa vida multitarefa, nossa vida real. Então não questione se
você tem as "credenciais" certas para se tornar um aficionado por
música clássica ou se está ouvido "de forma correta". Confie em mim,
o único critério é ter orelhas.
Você pode ouvir a playlist
enquanto se desloca; levá-la para uma caminhada; colocá-la ao fundo quando
prepara o café da manhã de seus filhos ou os leva à escola; faça dela sua
trilha sonora para preparar o jantar, beber ou relaxar, para quando lavar ou
passar a roupa, quando ler seus e-mails; tudo o que você precisa fazer é
apertar o play. Acredito que há poucos momentos da vida que a música não
consiga complementar. Isso é música para se viver - para viver sua melhor vida.
[2] Clemency Burton-Hill, apresentadora da BBC Radio 3, é
autora do livro 'Year of Wonder - Classical Music for Everyday' (Ano de
Fascinação - Música Clássica para Todos os Dias, em tradução livre), em que
apresenta compositores e suas obras, desde a era medieval até os dias atuais,
com sugestões de músicas a serem escutadas a cada dia do ano.
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