Uma carta de Nova Iorque, datada
de 5 de novembro e dirigida à Gazette des Tribunaux, contém os seguintes
detalhes de uma horrível tragédia ocorrida em Dalton, no condado de Carolina (Maryland):
Recentemente um
jovem negro havia sido preso sob a acusação de atentado ao pudor na pessoa de
uma mocinha branca.
Graves suspeitas
pesavam sobre ele. A jovem, objeto de suas violências criminosas, declarava
reconhecê-lo perfeitamente. O acusado tinha sido encarcerado na prisão de
Dalton. Ali estava apenas há algumas horas, quando uma grande multidão, aos
gritos de cólera e de vingança, pedia lhe fosse entregue o desventurado negro.
Os representantes da
ordem e da autoridade, vendo que seria impossível defender, à viva força, o seu
prisioneiro contra a multidão irritada, em vão tentaram acalmá-la com os mais insistentes
discursos. Suas palavras em favor da lei e da justiça regular foram recebidas
com assobios.
A populaça, cujo
número crescia sem cessar, começou a atirar pedras na cadeia. Alguns tiros de
revólver foram disparados contra os agentes da autoridade, sem, contudo,
nenhuma bala os atingir. Compreendendo que a resistência era impossível,
abriram as portas da prisão. Após um imenso hurra! em sinal de satisfação, a
multidão precipitou-se com furor. Apoderou-se do prisioneiro e o arrastou, em
meio aos gritos de cólera dos assistentes e de súplicas da vítima, para a praça
principal do vilarejo.
Improvisou-se um
júri imediatamente. Depois de ter examinado, proforma, os fatos do processo, o
acusado foi declarado culpado e condenado à forca imediatamente. Amarraram uma
corda numa árvore e procederam à execução. Enquanto o corpo se debatia nas
convulsões da agonia, o negro era alvo dos insultos e das violências dos
espectadores. Vários tiros de pistola foram disparados contra ele, contribuindo
para lhe aumentar as torturas da morte.
Sedenta de cólera e
vingança, a multidão não esperou que o corpo estivesse completamente imóvel
para tirá-lo da corda.
Passeou seu troféu
ignóbil pelas ruas de Dalton. Homens e mulheres, e até crianças, aplaudiam os
ultrajes feitos ao cadáver do jovem negro.
Mas o furor do povo
não devia parar aí. Depois de ter percorrido o vilarejo em todos os sentidos,
foi para a frente de uma igreja de negros. Fizeram uma imensa fogueira; o
cadáver foi mutilado e, em meio a ruidosas manifestações, os membros e os pedaços
de carne foram atirados às chamas.
Este relato deu origem à
seguinte pergunta, feita na Sociedade Espírita de Paris, a 28 de novembro de
1862:
Compreende-se que
exemplos de ferocidade isolados e individuais ocorram entre pessoas
civilizadas. O Espiritismo os explica, dizendo provirem de Espíritos
inferiores, de certo modo extraviados numa sociedade mais avançada; contudo, em
toda a sua vida, esses indivíduos revelaram a baixeza de seus instintos. O que se
compreende mais dificilmente é que uma população inteira, que deu provas da
superioridade de sua inteligência e, mesmo, em outras circunstâncias, de
sentimentos humanitários, que professa uma religião de brandura e paz, possa
ser tomada por tal vertigem sanguinária e, com uma raiva selvagem, se repaste
nas torturas de uma vítima. Aqui há um problema moral sobre o qual pediremos aos
Espíritos a gentileza de nos instruírem.
(Sociedade Espírita
de Paris, 28 de novembro de 1862 – Médium: Sr. A. de B...)
O sangue derramado naquelas
regiões, famosas até hoje por suas tendências para o progresso humano, é uma
chuva de maldição, e a cólera do Deus justo não tardará muito a passar por ali,
onde, com tanta frequência, se realizam abominações semelhantes a esta, cuja
leitura acabais de ouvir.
Em vão tenta-se a si mesmo
dissimular as consequências que forçosamente elas desencadearão; em vão quer-se
atenuar o alcance do crime. Se este é por si mesmo horroroso, não o é menos
pela intenção, que o faz cometer com tão horríveis refinamentos e com
encarniçamento tão bestial. O interesse! O interesse humano!
Os prazeres sensuais, as satisfações
do orgulho e da vaidade ainda foram o seu móvel, como em todas as outras
ocasiões, e as mesmas causas originarão efeitos semelhantes, causas, por sua
vez, dos efeitos da cólera celeste, de que são ameaçadas tantas iniquidades.
Credes que não haja progresso
real além do da indústria, de todos os recursos e de todas as artes que tendem
a suavizar os rigores da vida material e aumentar os prazeres de que se querem
saciar? Não; não se acha apenas nisto o progresso necessário à elevação dos
Espíritos, que só temporariamente são humanos e não devem ligar às coisas humanas
senão o interesse secundário que elas merecem. O aperfeiçoamento do coração, as
luzes da consciência, a difusão dos sentimentos de solidariedade universal dos
seres, o da fraternidade entre os humanos, são as únicas marcas autênticas que
distinguem um povo na marcha do progresso geral. Só por estes caracteres se reconhece
uma nação como a mais adiantada. Mas aquelas que em seu seio ainda alimentam
sentimentos de orgulho exclusivista e não veem tal porção da Humanidade senão
como uma raça servil, feita para obedecer e sofrer, experimentarão, sem sombra
de dúvida, o nada de suas pretensões e o peso da vingança do Céu.
Teu pai, V. de B.
[1] Revista
Espírita – Janeiro/1863 – Allan Kardec
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