terça-feira, 3 de julho de 2018

Barbárie na Civilização - O HORRÍVEL SUPLÍCIO DE UM NEGRO[1]




Uma carta de Nova Iorque, datada de 5 de novembro e dirigida à Gazette des Tribunaux, contém os seguintes detalhes de uma horrível tragédia ocorrida em Dalton, no condado de Carolina (Maryland):
Recentemente um jovem negro havia sido preso sob a acusação de atentado ao pudor na pessoa de uma mocinha branca.
Graves suspeitas pesavam sobre ele. A jovem, objeto de suas violências criminosas, declarava reconhecê-lo perfeitamente. O acusado tinha sido encarcerado na prisão de Dalton. Ali estava apenas há algumas horas, quando uma grande multidão, aos gritos de cólera e de vingança, pedia lhe fosse entregue o desventurado negro.
Os representantes da ordem e da autoridade, vendo que seria impossível defender, à viva força, o seu prisioneiro contra a multidão irritada, em vão tentaram acalmá-la com os mais insistentes discursos. Suas palavras em favor da lei e da justiça regular foram recebidas com assobios.
A populaça, cujo número crescia sem cessar, começou a atirar pedras na cadeia. Alguns tiros de revólver foram disparados contra os agentes da autoridade, sem, contudo, nenhuma bala os atingir. Compreendendo que a resistência era impossível, abriram as portas da prisão. Após um imenso hurra! em sinal de satisfação, a multidão precipitou-se com furor. Apoderou-se do prisioneiro e o arrastou, em meio aos gritos de cólera dos assistentes e de súplicas da vítima, para a praça principal do vilarejo.
Improvisou-se um júri imediatamente. Depois de ter examinado, proforma, os fatos do processo, o acusado foi declarado culpado e condenado à forca imediatamente. Amarraram uma corda numa árvore e procederam à execução. Enquanto o corpo se debatia nas convulsões da agonia, o negro era alvo dos insultos e das violências dos espectadores. Vários tiros de pistola foram disparados contra ele, contribuindo para lhe aumentar as torturas da morte.
Sedenta de cólera e vingança, a multidão não esperou que o corpo estivesse completamente imóvel para tirá-lo da corda.
Passeou seu troféu ignóbil pelas ruas de Dalton. Homens e mulheres, e até crianças, aplaudiam os ultrajes feitos ao cadáver do jovem negro.
Mas o furor do povo não devia parar aí. Depois de ter percorrido o vilarejo em todos os sentidos, foi para a frente de uma igreja de negros. Fizeram uma imensa fogueira; o cadáver foi mutilado e, em meio a ruidosas manifestações, os membros e os pedaços de carne foram atirados às chamas.
Este relato deu origem à seguinte pergunta, feita na Sociedade Espírita de Paris, a 28 de novembro de 1862:
Compreende-se que exemplos de ferocidade isolados e individuais ocorram entre pessoas civilizadas. O Espiritismo os explica, dizendo provirem de Espíritos inferiores, de certo modo extraviados numa sociedade mais avançada; contudo, em toda a sua vida, esses indivíduos revelaram a baixeza de seus instintos. O que se compreende mais dificilmente é que uma população inteira, que deu provas da superioridade de sua inteligência e, mesmo, em outras circunstâncias, de sentimentos humanitários, que professa uma religião de brandura e paz, possa ser tomada por tal vertigem sanguinária e, com uma raiva selvagem, se repaste nas torturas de uma vítima. Aqui há um problema moral sobre o qual pediremos aos Espíritos a gentileza de nos instruírem.
(Sociedade Espírita de Paris, 28 de novembro de 1862 – Médium: Sr. A. de B...)
O sangue derramado naquelas regiões, famosas até hoje por suas tendências para o progresso humano, é uma chuva de maldição, e a cólera do Deus justo não tardará muito a passar por ali, onde, com tanta frequência, se realizam abominações semelhantes a esta, cuja leitura acabais de ouvir.
Em vão tenta-se a si mesmo dissimular as consequências que forçosamente elas desencadearão; em vão quer-se atenuar o alcance do crime. Se este é por si mesmo horroroso, não o é menos pela intenção, que o faz cometer com tão horríveis refinamentos e com encarniçamento tão bestial. O interesse! O interesse humano!
Os prazeres sensuais, as satisfações do orgulho e da vaidade ainda foram o seu móvel, como em todas as outras ocasiões, e as mesmas causas originarão efeitos semelhantes, causas, por sua vez, dos efeitos da cólera celeste, de que são ameaçadas tantas iniquidades.
Credes que não haja progresso real além do da indústria, de todos os recursos e de todas as artes que tendem a suavizar os rigores da vida material e aumentar os prazeres de que se querem saciar? Não; não se acha apenas nisto o progresso necessário à elevação dos Espíritos, que só temporariamente são humanos e não devem ligar às coisas humanas senão o interesse secundário que elas merecem. O aperfeiçoamento do coração, as luzes da consciência, a difusão dos sentimentos de solidariedade universal dos seres, o da fraternidade entre os humanos, são as únicas marcas autênticas que distinguem um povo na marcha do progresso geral. Só por estes caracteres se reconhece uma nação como a mais adiantada. Mas aquelas que em seu seio ainda alimentam sentimentos de orgulho exclusivista e não veem tal porção da Humanidade senão como uma raça servil, feita para obedecer e sofrer, experimentarão, sem sombra de dúvida, o nada de suas pretensões e o peso da vingança do Céu.
Teu pai, V. de B.



[1] Revista Espírita – Janeiro/1863 – Allan Kardec

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