quarta-feira, 16 de maio de 2018

Os tempos chegaram[1], [2]


Henri Sausse

A vida espiritual é a vida normal e eterna do espírito, e a encarnação não passa de uma forma temporária de sua existência. À exceção da vestimenta exterior, existe, portanto identidade entre os encarnados e os desencarnados; são as mesmas individualidades sob dois aspectos diferentes, pertencendo seja ao mundo visível, seja ao mundo invisível, encontrando-se ora num, ora noutro, concorrendo num e noutro ao mesmo objetivo, por meios apropriados a sua situação. Dessa lei decorre aquela da perpetuidade das relações entre os seres; a morte não os separa em absoluto e não põe um fim a sua relações de simpatia nem a seus deveres recíprocos. Daí a solidariedade de todos por um e de um por todos, o que origina a fraternidade. Os homens só viverão felizes na Terra quando esses dois sentimentos tiverem entrado em seus corações e em seus hábitos, porque conformarão a eles suas leis e suas instituições. Será esse um dos principais resultados da transformação que se opera.
Mas como conciliar os deveres da solidariedade e da fraternidade com a crença de que a morte torna para sempre os homens estranhos uns aos outros? Pela lei da perpetuidade das relações que ligam todos os seres, o espiritismo fundamenta esse duplo princípio nas próprias leis da natureza; ele faz disso não apenas um dever, mas uma necessidade. Pela lei da pluralidade das existências, o homem se liga a tudo o que se fez e ao que se fará, aos homens do passado e aos do porvir; ele não pode mais dizer que nada tem em comum com aqueles que morrem, uma vez que uns e outros se encontram sem cessar, neste mundo e no outro, para subirem juntos a escada do progresso e se emprestarem apoio mútuo. A fraternidade não é mais circunscrita a alguns indivíduos que a sorte reuniu no decorrer da duração efêmera da vida; ela é eterna como a vida do espírito, universal como a humanidade, que constitui uma grande família na qual todos os membros são solidários uns com os outros, qualquer que seja a época em que viveram.
Tais são as ideias que emanam do espiritismo, e que ele suscitará entre todos os homens quando for universalmente difundido, compreendido, ensinado e praticado. Com o espiritismo, a fraternidade, sinônimo da caridade pregada por Cristo, não é mais uma palavra vazia; ela tem sua razão de ser. Do sentimento da fraternidade nasce aquele da reciprocidade e dos deveres sociais, de homem a homem, de provo a povo, de raça a raça; desses dois sentimentos bem compreendidos sairão necessariamente as instituições mais proveitosas ao bem-estar de todos.
A fraternidade deve ser a pedra angular da nova ordem social; mas não existe fraternidade real, sólida e efetiva se ela não estiver apoiada sobre uma base inabalável; essa base é a fé; não a fé nesses ou naqueles dogmas particulares que mudam com os tempos e os povos e se atacam reciprocamente, alimentando o antagonismo; mas a fé nos princípios fundamentais que todos podem aceitar: Deus, a alma, o futuro, o progresso individual indefinido, a perpetuidade das relações entre os seres. Quando todos os homem estiverem convencidos de que Deus é o mesmo para todos, que esse Deus soberanamente justo e bom nada pode querer de injusto, que o mal vem dos homens e não dele, vão se olhar como os filhos de um mesmo pai e se estenderão a mão. É essa fé que o espiritismo dá, e que a partir de agora será o eixo sobre o qual se moverá o gênero humano, quaisquer que sejam seu modo de adoração e suas crenças particulares, que o espiritismo respeita, mas com que não tem de se ocupar. Unicamente dessa fé pode se originar o verdadeiro progresso moral, porque apenas ela dá uma sanção lógica aos direitos legítimos e aos deveres; sem ela, o direito é aquilo que a força garante; o dever, um código humano imposto pela coerção. Sem ela, o que é o homem? Um pouco de matéria que se dissolve, um ser efêmero que se limita a passar; o próprio gênio não é senão uma fagulha que brilha um instante para depois se extinguir para sempre; sem dúvida, não existe ali do que se elevar muito aos próprios olhos.
Com um tal pensamento, onde estão realmente os direitos e os deveres? Qual é o objetivo do progresso? Unicamente essa fé leva o homem a sentir sua dignidade pela perpetuidade e a progressão de seu ser, não num futuro mesquinho e circunscrito à personalidade, porém grandioso e esplêndido. Esse pensamento o eleva acima da terra; ele se sente crescer tendo presente que possui seu papel no universo; que esse universo é seu domínio, que ele poderá percorrer um dia, e que a morte não fará dela e uma nulidade, ou ser inútil a si mesmo e aos outros.
O progresso intelectual realizado até os dias atuais nas mais vastas proporções é um grande passo e marca a primeira fase da humanidade, mas sozinho ele é impotente para regenerá-la; enquanto o homem estiver dominado pelo orgulho e pelo egoísmo, utilizará sua inteligência e seus conhecimentos em benefício de suas paixões e de seus interesses pessoais; é por isso que os aplica ao aperfeiçoamento dos meios de causar dano aos outros e de se destruir reciprocamente. Somente o progresso moral pode assegurar a felicidade dos homens na Terra, colocando um freio às paixões nocivas; só o progresso moral pode fazer reinar entre eles a concórdia, a paz, a fraternidade. É ele que abaixará as barreiras entre os povos, que fará caírem os preconceitos de castas e calarem os antagonismos de seitas, ensinando os homens a se verem como irmãos chamados a se ajudar mutuamente e não a viver às expensas uns dos outros. É ainda o progresso moral, secundado aqui pelo progresso da inteligência, que fundirá os homens numa mesma crença estabelecida sob as verdades eternas não sujeitas a discussão e por isso mesmo aceitáveis por todos.
A unidade da crença será o laço mais poderoso, o mais sólido fundamento da fraternidade universal, quebrada em todos os tempos pelos antagonismos religiosos que dividem os povos e as famílias, que fazem ver no próximo o inimigo de que se deve fugir, ao qual se deve combater ou exterminar, em vez de irmãos que é preciso amar.




[1] A Gênese – “Os tempos estão chegados” – ítem 14 e 15 - Allan Kardec
[2] Biografia de Allan Kardec – “Fraudes Espíritas” - Henri Sausse

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