terça-feira, 3 de abril de 2018

RELAÇÕES SIMPÁTICAS ENTRE VIVOS E MORTOS[1]

(Sociedade Espírita de Argel – Médium: Sr. B...)


Por que, em nossas conversas com os Espíritos das pessoas que nos foram muito queridas, sentimos um embaraço, uma frieza mesmo, que jamais teríamos sentido quando elas eram vivas?
Resposta:
Porque sois materiais e nós não mais o somos.
Vou fazer uma comparação que, como todas as comparações, não será absolutamente exata; contudo, o será bastante para o que quero dizer.
Suponho que experimentes por uma mulher uma dessas paixões que só os romancistas imaginam entre vós e que considerais exageradas, enquanto para nós parecem pouco diferir, pelo menos das que conhecemos na vastidão infinita.
Continuo supondo. Depois de ter tido, por algum tempo, a felicidade inefável de falar diariamente com essa mulher e de a contemplar tanto quanto possível, uma circunstância qualquer faz com que não mais a possas ver e que deves contentar-te apenas em ouvi-la.
Crês que teu amor resistiria sem nenhuma brecha a uma situação desse gênero, prolongada indefinidamente? Confessa que ele sofreria alguma modificação, ou aquilo que chamaríamos uma diminuição.
Vamos mais longe. Não só não poderás mais ver esta bela amiga, mas nem mesmo poderás ouvi-la. Não deixam que te aproximes dela. Prolonga essa situação durante alguns anos e vê o que acontecerá.
Agora, mais um passo. A mulher que amas está morta; há muito tempo encontra-se sepultada nas trevas do sepulcro.
Nova mudança em ti. Não quero dizer que a paixão esteja morta com o seu objeto, mas sustento que, pelo menos, transformou-se.
E de tal modo que, se por um favor celeste, a mulher que tanto lamentas e por quem sempre choras viesse apresentar-se à tua frente, não na odiosa realidade do esqueleto que repousa no cemitério, mas sob a forma que amavas e adoravas até o êxtase, estás bem seguro de que o primeiro efeito da aparição imprevista não seria um sentimento de profundo terror?
Como vês, meu amigo, as paixões, as afeições vivas não são possíveis em toda a sua plenitude senão entre pessoas da mesma natureza, entre mundanos e mundanos, entre Espíritos e Espíritos. Com isto não pretendo dizer que toda afeição deva apagar-se com a morte, mas que muda de natureza e toma outro caráter. Numa palavra, quero dizer que em vossa Terra conservais uma boa lembrança daqueles a quem amastes, mas que a matéria, no meio da qual viveis, só vos permite compreender e praticar amores materiais; que, sendo tal gênero necessariamente impossível entre vós e nós, sois tão desajeitados e frios nas vossas relações conosco. Se queres convencer-te, relê algumas conversas espíritas entre parentes, amigos ou conhecidos; nelas encontrarás tanto gelo que fará com que os habitantes dos polos sintam frio[2].
Não o queremos, nem nos entristecemos por isso, desde que sejamos suficientemente elevados na hierarquia dos Espíritos para perceber e compreender; mas, naturalmente, isto não deixa de ter alguma influência sobre a nossa maneira de ser para convosco.
Lembra-te da história de Hanifa que, podendo entrar em comunicação com a filha querida, que tanto pranteava, faz-lhe esta primeira pergunta: Há um tesouro oculto nesta casa? Só obteve como resposta uma bela mistificação, que ela mesma provocou!
Penso, meu amigo, ter dito o bastante para que bem sintas a causa do mal-estar que necessariamente existe entre vós e nós. Poderia ter dito mais. Por exemplo, que vemos todas as vossas imperfeições e impurezas do corpo e da alma e que, do vosso lado, tendes a consciência de que o vemos. Confessa que é embaraçoso para ambos os lados. Coloca dois amantes apaixonadíssimos nessa caixa de vidro onde tudo aparece, tanto no moral como no físico e pergunta a ti mesmo o que acontecerá.
Quanto a nós, animados por um sentimento de caridade que não podeis compreender, somos, em relação a vós, como a boa mãe, a quem as enfermidades e as traquinadas do filho chorão que lhe tira o sono não a fazem esquecer, nem mesmo por um instante, os sublimes instintos da maternidade. Nós vos vemos fracos, feios, maus e, contudo, vos amamos, porque nos esforçamos por melhorar-vos. Mas não nos fazeis justiça, temendo-nos mais do que nos amando.

Désiré Léglise

Poeta argelino, morto em 1851




[1] Revista Espírita – Maio/1862 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Ora o Espírito emprega a segunda pessoa do singular, ora a segunda do plural.

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