Humberto de Campos
Quando ainda no mundo, não me
era dado avaliar o "tête-à-tête" amigável dos Espíritos, à maneira
dos homens, apenas com a diferença de que as suas palestras não se desdobram à porta
dos cafés ou das livrarias.
E é com surpresa que me reúno
àqueles que estimo, quando se me apresentam oportunidade: para uns dedos de
prosa.
Estávamos nós, quatro almas
desencarnadas como se fôssemos no mundo quatro figuras apocalípticas,
discutindo ainda as coisas mesquinhas da Terra, e a palestra versava justamente
sobre a evolução das ideias espíritas no Brasil.
Infelizmente - exclama
um do grupo, provecta figura dessas doutrinas, desencarnado há bons anos no Rio
de Janeiro - o que infesta o Espiritismo
em nossa terra é o mau gosto pelas discussões estéreis. O nosso trabalho é
contínuo para que muitos confrades não se engalfinhem pela imprensa,
demonstrando-lhes, com lições indiretas, a inutilidade das suas polêmicas.
Mesmo assim, a doutrina tem realizado muito. Suas obras de caridade cristã estão
multiplicadas por toda parte, atestando o labor do Evangelho.
Foi lembrada, então, a figura
respeitável de Bittencourt Sampaio [vide biografia neste Blog], no princípio da
organização espírita no país, recordando-se igualmente a covardia de alguns
companheiros que, guindados a prestigiosas posições na sociedade e na política,
depressa esqueceram o seu entusiasmo de crentes, bandeando-se para o
oportunismo das ideologias novas.
Ia a conversação nessa altura,
quando o Doutor C..., um dos mais caridosos facultativos do Rio, recentemente
desencarnado e cujo nome não deve mencionar, respeitando os preconceitos que se
estendem às vezes até aqui, explicou:
É pena que venhamos
a compreender tão tarde o Espiritismo, reconhecendo a sua lógica e grandeza
moral só depois do nosso regresso do mundo.
Nós, os médicos,
temos sempre o cérebro trabalhado de canseiras, na impossibilidade de resolver
o problema da sobrevivência. É certo que nunca se encontrará o ser na autópsia
de um cadáver, mas, tudo na vida é uma vibração profunda de espiritualidade.
Como, porém, a Ciência vigia as suas conquistas do Passado, ciosa dos seus
domínios ainda que sejamos inclinados às verdades novas, somos obrigados,
muitas vezes, a nos retrair, temendo os Zaratustras da sua infalibilidade.
Eu mesmo, nos meus
tempos de clínica no Rio de Janeiro, fui testemunha de casos extraordinários,
desenrolados sob as minhas vistas. Todavia, fui também presa do comodismo e do
preconceito.
E o Dr. C.. ., como se mergulhasse os olhos no abismo das
coisas que passaram, continuou pausadamente:
Eu já me encontrava
com residência na praia de Botafogo, quando lavrou na cidade um surto epidêmico
de gripe, aliás, com mínima repercussão, comparado à epidemia de após a guerra.
E como sempre contava, entre aqueles que recorriam à minha atividade
profissional, diversos amigos pobres dos morros e particularmente da Prainha,
foi sem surpresa que, numa noite-fria e nevoenta, abri a porta para receber a
visita de uma garota de seus dez anos, humilde e descalça, que vinha trêmula e
acanhada, solicitar os meus serviços.
‒ "Doutor -
dizia ela -, a mamãe está muito mal e só o senhor pode salvá-la. Quer fazer a caridade
de vir comigo?"
Impressionaram-me a
sua graça infantil e o estranho fulgor dos olhos, bem como o sorriso melancólico
que lhe brincava na boca miúda.
Considerei tudo
quanto esperava a minha atenção urgente e procurei convencê-la da impossibilidade
de a seguir, prometendo atendê-la no dia imediato. Todavia, a minha pequena
interlocutora exclamou com os olhos rasos d’água:
‒ "Oh! doutor,
não nos abandone. Ninguém, a não ser a proteção de Deus, vela por nós neste mundo.
Se o senhor não nos quiser auxiliar, a mamãe estará perdida e ela não pode
morrer agora. Venha! O senhor não teve também uma mãe que foi o anjo de sua
vida"?
A última frase dessa
menina tocou fundo o meu coração e lembrei-me dos tempos longínquos, em que
minha mãe embalava os sonhos da minha existência, comprando-me com o suor da
sua pobreza honesta os alfarrábios e o pão.
Eu devia auxiliar
aquela pequena, fosse onde fosse. A Medicina era o meu sacerdócio e dentro da
noite chuvosa que amortalhava todas as coisas, como se o Céu invisível chorasse
sobre as trevas do mundo, o táxi rolava conosco, como fantasma barulhento,
atravessando as ruas alagadas e desertas. Aquela menina, triste e silenciosa,
tinha os olhos brilhantes, perdidos no vácuo. Seu corpo magrinho recostava-se
inteiramente nas almofadas, enquanto os pés minúsculos se escondiam nas franjas
do tapete. Lembrando as suas frases significativas, quis reatar o fio do nosso
diálogo:
Há muito tempo que
sua mãe se acha doente?
‒ "Não, senhor.
Primeiro, fui eu; enquanto estive mal, tanto a mamãe cuidou de mim que até caiu
cansada e enferma, também".
"Que sente a
sua mãe?"
‒ "Muita febre.
As noites são passadas sem dormir. Às vezes, grito para os vizinhos, mas parece
que não me ouvem, pois estamos sempre as duas isoladas... Costumamos chorar muito
com esse abandono; mas, diz à mamãe que a gente precisa sofrer, entregando a
Deus o coração".
E como soube você
onde moro?
‒ "Foi a visita
de um homem que eu não conhecia. Chegou devagarzinho à nossa porta, chamando-me
à rua, dizendo-se amigo que o senhor muito estima; e, ensinando-me a sua casa.
Prometeu que o senhor me atenderia, porque também havia tido uma mãe boa e carinhosa".
Nosso diálogo foi
interrompido. A pequena enigmática mandou parar o carro. Apontou o local de sua
residência, estendendo a mão descarnada e miúda e, com poucos passos, batíamos
à porta modesta de uma choupana miserável.
‒ "Espere,
doutor - disse ela -, eu lhe abrirei a porta passando pelos fundos".
E, já inquieta,
desembaraçada, desapareceu das minhas vistas. Uma taramela deslizou com cuidado,
no meio da noite, e entrei no casebre. Uma lamparina bruxuleante e humilde, que
iluminava a saleta com o seu clarão pálido, deixava ver, no catre limpo, um
corpo de mulher, desfigurado e disforme. Seu rosto, sulcado de lágrimas, era o
atestado vivo das mais cruéis privações e dificuldades. Níobe estava ali
petrificada na sua dor. Todos os martírios se concentravam naquele pardieiro
abandonado. Às minhas primeiras perguntas, respondeu numa voz suave e débil:
‒ "Não, doutor,
não tente arrancar minha alma desesperada das garras da Morte! Nunca precisei
tanto, como agora, deixar para sempre o calabouço da Vida".
E prosseguia,
delirando:
‒ "Nada me
resta... Deixem-me morrer"!
Sobrepus, porém,
minha voz às suas lamentações e exclamei com energia:
Minha senhora, vou
tomar todas as providências que o seu caso está exigindo. Hoje mesmo cessará
esse desamparo. Urge reanimar-se! Resta-lhe muita coisa no mundo, resta-lhe essa
filha afetuosa, que espera o seu carinho de mãe extremosa.
‒ "Minha filha?
Retrucou aquela criatura, meio-mulher e meio-cadáver, enquanto duas grossas-lágrimas
feriram fundo as suas faces empalidecidas - minha filha está morta desde anteontem!
Olhe doutor, aí no quarto e não procure devolver a saúde a quem tanto necessita
morrer!
Então, espantado,
passei ao apartamento contíguo. O corpo de cera daquela criança misteriosa, que
me chamara nas sombras da noite, ali estava envolvido em panos pobres e claros.
Seu rosto imóvel, de boneca magrinha, era um retrato da privação e da fome. Os grandes
olhos fulgurantes estavam agora fechados, e na boca miúda pairava o mesmo sorriso
suave das almas resignadas e tristes.
Eu deslizara nas
avenidas com uma sombra dos mortos.
E, cobrindo melancolicamente o painel das suas lembranças,
o nosso amigo terminou:
Decorridos tantos
anos, ainda ouço a voz do fantasma pequenino e gracioso; e, na luta da Vida,
muita vez me ocorreu o seu conselho suave, que me ensinou a sofrer, entregando
a Deus o coração".
[1] Crônicas de
Além-Túmulo – Francisco C. Xavier
Parece que não dá mais para saber a diferença entre o certo ou errado pois tudo está ficando extremo e polarizado neste pais as pessoas que deveriam cuidar de um pais uma familia não o fazem e todos saem absolvidos, os valores se perderam.
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