NOITE DE SÃO BARTOLOMEU
Assassinatos ocorridos na noite entre 23 e 24 de agosto de 1572 em Paris
Um dos nossos assinantes nos
envia uma carta de um de seus amigos, da qual extraímos o seguinte trecho:
Perguntastes a minha opinião, ou melhor, a minha crença, na presença ou
não, junto a nós, das almas dos que amamos.
Pedis, também, algumas explicações relativas à minha convicção de que
nossas almas mudam de envoltório com muita rapidez.
Por mais ridículo que pareça, direi que guardo a sincera convicção de
ter sido assassinado durante os massacres de São Bartolomeu. Eu era muito
criança quando tal lembrança veio ferir a minha imaginação. Mais tarde, ao ler
essa triste página de nossa História, pareceu que muitos detalhes me eram
conhecidos, e ainda creio que, se a velha Paris pudesse ser reconstruída, eu reconheceria
aquela alameda sombria, onde, fugindo, senti o frio de três punhaladas nas
costas. Há detalhes desta cena sangrenta que se conservam na minha memória e
que jamais desapareceram. Por que tinha eu essa convicção antes de saber o que
tinha sido a noite de São Bartolomeu? Por que, ao ler o relato desse massacre,
perguntei a mim mesmo: é meu sonho, esse sonho desagradável que tive em criança,
cuja lembrança me ficou tão viva? Por que, quando quis consultar a memória,
forçar o pensamento, fiquei como um pobre louco ao qual surge uma ideia e que
parece lutar para lhe descobrir a razão? Por quê? Nada sei. Por certo me
achareis ridículo, mas nem por isso guardarei menos a lembrança, a convicção.
Se vos dissesse que eu tinha sete anos quando tive um sonho assim: Eu
tinha vinte anos, era jovial, bem-posto, e penso que rico. Vim bater-me em
duelo e fui morto. Se dissesse que a saudação feita com a arma, antes de me
bater, eu a fiz pela primeira vez que tive um florete na mão; se dissesse que
cada preliminar mais ou menos graciosa que a educação ou a civilização pôs na
arte de se matar me era desconhecida antes de minha educação nas armas,
diríeis, sem dúvida, que sou louco ou maníaco. Bem pode ser; mas às vezes me
parece que um clarão penetra nesse nevoeiro e tenho a convicção de que a
lembrança do passado se restabelece em minha alma.
Se me perguntásseis se creio na simpatia entre as almas, em seu poder
de se porem em contato entre elas, malgrado a distância, apesar da morte, eu
vos responderia: Sim; e este sim seria pronunciado com toda a força de minha
convicção.
Aconteceu encontrar-me a vinte e cinco léguas de Lima, após oitenta e
seis dias de viagem, e despertar em lágrimas, com uma verdadeira dor no
coração; uma tristeza mortal apoderou-se de mim durante todo o dia. Anotei o
fato em meu diário. Àquela hora, na mesma noite, meu irmão foi acometido por um
ataque de apoplexia, que comprometeu gravemente a sua vida. Confrontei o dia, o
instante: tudo era exato. Eis um fato; as pessoas existem.
Direis que sou louco?
Não li nenhum autor que tenha
tratado de semelhante assunto. Fá-lo-ei quando retornar. Talvez dessa leitura
possa jorrar um pouco de luz para mim.
O Sr. V..., autor desta carta, é
oficial da marinha e atualmente em viagem. Poderia ser interessante ver se,
evocando-o, confirmaria as suas lembranças; mas haveria a impossibilidade de preveni-lo
de nossa intenção e, por outro lado, considerando-se a sua profissão, poderia
ser difícil encontrar o momento propício.
Todavia, disseram-nos que
chamássemos o seu anjo-da-guarda, quando quiséssemos evocá-lo, e ele nos diria
se poderíamos fazê-lo.
Evocação do anjo-da-guarda do Sr. V...
– Atendo ao vosso
chamado.
Conheceis o motivo que nos leva a desejar evocar o vosso
protegido. Não se trata de satisfazer uma vã curiosidade, mas de constatar, se
for possível, um fato interessante para a ciência espírita: o da recordação de
sua existência anterior.
– Compreendo o vosso
desejo, mas neste momento seu Espírito não se acha livre; está ativamente
ocupado pelo corpo e numa inquietação moral que o impede de repousar.
Ainda está no mar?
– Está em terra; mas
poderei responder a algumas perguntas, porque aquela alma foi sempre confiada à
minha guarda.
Já que tendes a bondade de responder, perguntaremos se a
lembrança que ele julga ter conservado de sua morte numa existência anterior é
uma ilusão.
– É uma intuição
muito real. Na época essa pessoa vivia muito bem na Terra.
Por que motivo essa lembrança lhe é mais precisa do que
para outros? Há nisso uma causa fisiológica ou uma utilidade particular para
ele?
– Essas lembranças
vivazes são muito raras.
Dependem um pouco do gênero
de morte, que de tal modo o impressionou que está, por assim dizer, encarnado
em sua alma. Entretanto, muitas outras criaturas tiveram mortes igualmente terríveis,
mas a lembrança não lhes ficou. Só raramente Deus o permite.
Depois dessa morte, ocorrida na noite de São Bartolomeu,
teve ele outras existências?
Resp. – Não.
Que idade tinha quando morreu?
– Uns trinta anos.
Pode-se saber o que ele era?
– Era ligado à casa
de Coligny.
Se tivéssemos podido evocá-lo, ter-lhe-íamos perguntado se
recorda o nome da rua onde foi assassinado, a fim de ver se, indo a esse local,
quando voltar a Paris, a lembrança da cena lhe será ainda mais precisa.
– Foi no cruzamento
de Bucy.
A casa onde foi morto ainda existe?
– Não; foi
reconstruída.
Com o mesmo objetivo teríamos perguntado se recorda o nome
que tinha.
– Seu nome não é
conhecido na História, pois era simples soldado. Chamava-se Gaston Vincent.
Seu amigo, aqui presente, gostaria de saber se ele recebeu
suas cartas.
– Ainda não.
Éreis seu anjo-da-guarda naquela época?
– Sim, então e agora.
Observação –
As pessoas cépticas, mais brincalhonas do que sérias, poderiam dizer que seu
anjo-da-guarda o protegeu mal e perguntar por que não desviou a mão que o
feriu. Embora semelhante questão mereça apenas uma resposta, algumas palavras a
respeito talvez não sejam inúteis.
Primeiramente diremos que, estando o morrer na natureza do homem, não
está no poder de nenhum anjo-da-guarda opor-se ao curso das leis da Natureza.
Do contrário, não haveria razão para que também não impedissem a morte natural,
tanto quanto a acidental. Em segundo lugar, estando o momento e o gênero de
morte no destino de cada um, é preciso que esse destino se cumpra.
Finalmente, diremos que os Espíritos não
encaram a morte como nós: a verdadeira vida é a do Espírito, da qual as
diversas existências corporais não passam de episódios. O corpo é um invólucro
que o Espírito reveste momentaneamente e deixa como uma roupa usada ou rasgada. Pouco importa, pois, que se morra um pouco mais cedo ou um
pouco mais tarde, desta ou daquela maneira, pois que, em última análise, sempre
é preciso que se chegue lá, e essa morte, longe de prejudicar o Espírito, pode
ser-lhe bastante útil, conforme a maneira por que se realiza. É o prisioneiro
que deixa sua prisão temporária para fruir a liberdade eterna.
Pode ser que o fim trágico de
Gaston Vincent tenha sido uma coisa útil para ele, como Espírito, o que seu
anjo-da-guarda compreendia melhor que ele, porquanto um, não via senão o
presente, ao passo que o outro vislumbrava o futuro. Espíritos retirados deste
mundo por uma morte prematura, na flor da idade, muitas vezes nos responderam que
era um favor de Deus, que, assim, os havia preservado dos males aos quais, sem
isto, estariam expostos.
[1] Revista
Espírita – Julho/1860 – Allan Kardec
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