terça-feira, 17 de outubro de 2017

Lembrança de uma Existência Anterior[1]

(Sociedade, 25 de maio de 1860)

 

NOITE DE SÃO BARTOLOMEU
Assassinatos ocorridos na noite entre 23 e 24 de agosto de 1572 em Paris
 
Um dos nossos assinantes nos envia uma carta de um de seus amigos, da qual extraímos o seguinte trecho:
Perguntastes a minha opinião, ou melhor, a minha crença, na presença ou não, junto a nós, das almas dos que amamos.
Pedis, também, algumas explicações relativas à minha convicção de que nossas almas mudam de envoltório com muita rapidez.
Por mais ridículo que pareça, direi que guardo a sincera convicção de ter sido assassinado durante os massacres de São Bartolomeu. Eu era muito criança quando tal lembrança veio ferir a minha imaginação. Mais tarde, ao ler essa triste página de nossa História, pareceu que muitos detalhes me eram conhecidos, e ainda creio que, se a velha Paris pudesse ser reconstruída, eu reconheceria aquela alameda sombria, onde, fugindo, senti o frio de três punhaladas nas costas. Há detalhes desta cena sangrenta que se conservam na minha memória e que jamais desapareceram. Por que tinha eu essa convicção antes de saber o que tinha sido a noite de São Bartolomeu? Por que, ao ler o relato desse massacre, perguntei a mim mesmo: é meu sonho, esse sonho desagradável que tive em criança, cuja lembrança me ficou tão viva? Por que, quando quis consultar a memória, forçar o pensamento, fiquei como um pobre louco ao qual surge uma ideia e que parece lutar para lhe descobrir a razão? Por quê? Nada sei. Por certo me achareis ridículo, mas nem por isso guardarei menos a lembrança, a convicção.
Se vos dissesse que eu tinha sete anos quando tive um sonho assim: Eu tinha vinte anos, era jovial, bem-posto, e penso que rico. Vim bater-me em duelo e fui morto. Se dissesse que a saudação feita com a arma, antes de me bater, eu a fiz pela primeira vez que tive um florete na mão; se dissesse que cada preliminar mais ou menos graciosa que a educação ou a civilização pôs na arte de se matar me era desconhecida antes de minha educação nas armas, diríeis, sem dúvida, que sou louco ou maníaco. Bem pode ser; mas às vezes me parece que um clarão penetra nesse nevoeiro e tenho a convicção de que a lembrança do passado se restabelece em minha alma.
Se me perguntásseis se creio na simpatia entre as almas, em seu poder de se porem em contato entre elas, malgrado a distância, apesar da morte, eu vos responderia: Sim; e este sim seria pronunciado com toda a força de minha convicção.
Aconteceu encontrar-me a vinte e cinco léguas de Lima, após oitenta e seis dias de viagem, e despertar em lágrimas, com uma verdadeira dor no coração; uma tristeza mortal apoderou-se de mim durante todo o dia. Anotei o fato em meu diário. Àquela hora, na mesma noite, meu irmão foi acometido por um ataque de apoplexia, que comprometeu gravemente a sua vida. Confrontei o dia, o instante: tudo era exato. Eis um fato; as pessoas existem.
Direis que sou louco?
 Não li nenhum autor que tenha tratado de semelhante assunto. Fá-lo-ei quando retornar. Talvez dessa leitura possa jorrar um pouco de luz para mim.
O Sr. V..., autor desta carta, é oficial da marinha e atualmente em viagem. Poderia ser interessante ver se, evocando-o, confirmaria as suas lembranças; mas haveria a impossibilidade de preveni-lo de nossa intenção e, por outro lado, considerando-se a sua profissão, poderia ser difícil encontrar o momento propício.
Todavia, disseram-nos que chamássemos o seu anjo-da-guarda, quando quiséssemos evocá-lo, e ele nos diria se poderíamos fazê-lo.
Evocação do anjo-da-guarda do Sr. V...
Atendo ao vosso chamado.
Conheceis o motivo que nos leva a desejar evocar o vosso protegido. Não se trata de satisfazer uma vã curiosidade, mas de constatar, se for possível, um fato interessante para a ciência espírita: o da recordação de sua existência anterior.
Compreendo o vosso desejo, mas neste momento seu Espírito não se acha livre; está ativamente ocupado pelo corpo e numa inquietação moral que o impede de repousar.
Ainda está no mar?
Está em terra; mas poderei responder a algumas perguntas, porque aquela alma foi sempre confiada à minha guarda.
Já que tendes a bondade de responder, perguntaremos se a lembrança que ele julga ter conservado de sua morte numa existência anterior é uma ilusão.
É uma intuição muito real. Na época essa pessoa vivia muito bem na Terra.
Por que motivo essa lembrança lhe é mais precisa do que para outros? Há nisso uma causa fisiológica ou uma utilidade particular para ele?
Essas lembranças vivazes são muito raras.
 
Dependem um pouco do gênero de morte, que de tal modo o impressionou que está, por assim dizer, encarnado em sua alma. Entretanto, muitas outras criaturas tiveram mortes igualmente terríveis, mas a lembrança não lhes ficou. Só raramente Deus o permite.
 
Depois dessa morte, ocorrida na noite de São Bartolomeu, teve ele outras existências?
Resp. – Não.
Que idade tinha quando morreu?
Uns trinta anos.
Pode-se saber o que ele era?
Era ligado à casa de Coligny.
Se tivéssemos podido evocá-lo, ter-lhe-íamos perguntado se recorda o nome da rua onde foi assassinado, a fim de ver se, indo a esse local, quando voltar a Paris, a lembrança da cena lhe será ainda mais precisa.
Foi no cruzamento de Bucy.
A casa onde foi morto ainda existe?
Não; foi reconstruída.
Com o mesmo objetivo teríamos perguntado se recorda o nome que tinha.
Seu nome não é conhecido na História, pois era simples soldado. Chamava-se Gaston Vincent.
Seu amigo, aqui presente, gostaria de saber se ele recebeu suas cartas.
Ainda não.
Éreis seu anjo-da-guarda naquela época?
Sim, então e agora.
Observação – As pessoas cépticas, mais brincalhonas do que sérias, poderiam dizer que seu anjo-da-guarda o protegeu mal e perguntar por que não desviou a mão que o feriu. Embora semelhante questão mereça apenas uma resposta, algumas palavras a respeito talvez não sejam inúteis.
Primeiramente diremos que, estando o morrer na natureza do homem, não está no poder de nenhum anjo-da-guarda opor-se ao curso das leis da Natureza. Do contrário, não haveria razão para que também não impedissem a morte natural, tanto quanto a acidental. Em segundo lugar, estando o momento e o gênero de morte no destino de cada um, é preciso que esse destino se cumpra.
 Finalmente, diremos que os Espíritos não encaram a morte como nós: a verdadeira vida é a do Espírito, da qual as diversas existências corporais não passam de episódios. O corpo é um invólucro que o Espírito reveste momentaneamente e deixa como uma roupa usada ou rasgada. Pouco importa, pois, que se morra um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, desta ou daquela maneira, pois que, em última análise, sempre é preciso que se chegue lá, e essa morte, longe de prejudicar o Espírito, pode ser-lhe bastante útil, conforme a maneira por que se realiza. É o prisioneiro que deixa sua prisão temporária para fruir a liberdade eterna.
Pode ser que o fim trágico de Gaston Vincent tenha sido uma coisa útil para ele, como Espírito, o que seu anjo-da-guarda compreendia melhor que ele, porquanto um, não via senão o presente, ao passo que o outro vislumbrava o futuro. Espíritos retirados deste mundo por uma morte prematura, na flor da idade, muitas vezes nos responderam que era um favor de Deus, que, assim, os havia preservado dos males aos quais, sem isto, estariam expostos.




[1] Revista Espírita – Julho/1860 – Allan Kardec

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