terça-feira, 3 de outubro de 2017

Frenologia e Fisiognomonia[1]


 
A frenologia é ciência que trata das funções atribuídas a cada parte do cérebro. O Dr. Gall, fundador dessa ciência, pensava que, desde que o cérebro é o ponto para onde são conduzidas todas as sensações, e de onde partem todas as manifestações das faculdades intelectuais e morais, cada uma das faculdades primitivas deveria ter ali o seu órgão especial. Assim, seu sistema consiste na localização das faculdades. Sendo o desenvolvimento de cada parte cerebral determinado pelo desenvolvimento da calota óssea, produzindo protuberâncias, concluiu ele que, do exame dessas protuberâncias, poder-se-ia deduzir a predominância de tal ou qual faculdade e, daí, o caráter ou as aptidões do indivíduo. Daí, também, o nome de cranioscopia dado a essa ciência, com a diferença de que a frenologia tem por objeto tudo o que diz respeito às atribuições do cérebro, enquanto a cranioscopia se limita às ilações tiradas da inspeção do crânio.
Numa palavra, Gall fez, a respeito do crânio e do cérebro, o que fez Lavater para os traços fisionômicos.
Não há por que discutir aqui o mérito desta ciência, nem examinar se é verdadeira ou exagerada em todas as suas consequências. Mas ela foi, alternadamente, defendida e criticada por homens de alto valor científico. Se certos detalhes são ainda hipotéticos, nem por isso deixa de repousar sobre um princípio incontestável, o das funções gerais do cérebro, e sobre as relações existentes entre o desenvolvimento ou a atrofia desse órgão e as manifestações intelectuais. O nosso objetivo é o estudo das suas consequências psicológicas.
Das relações existentes entre o desenvolvimento do cérebro e a manifestação de certas faculdades, alguns sábios concluíram que os órgãos cerebrais são a própria fonte das faculdades, doutrina que não é outra senão a do materialismo, porquanto tende à negação do princípio inteligente estranho à matéria. Consequentemente, faz do homem uma máquina, sem livre-arbítrio e sem responsabilidade de seus atos, já que sempre poderia atribuir os seus erros à sua organização e seria injustiça puni-lo por faltas que não teriam dependido dele cometer. Ficamos abalados pelas consequências de semelhante teoria, e com razão.
Devia-se, por isso, proscrever a frenologia? Não, mas examinar o que nela poderia haver de verdadeiro ou de falso na maneira de encarar os fatos. Ora, esse exame prova que as atribuições do cérebro em geral, e mesmo a localização das faculdades, podem conciliar-se perfeitamente com o espiritualismo mais severo, que nisso encontraria a explicação de certos fatos. Admitamos, por um instante, a título de hipótese, a existência de um órgão especial para o instinto musical. Suponhamos, além disso, como nos ensina a Doutrina Espírita, que um Espírito, cuja existência é muito anterior ao seu corpo, reencarne com a faculdade musical muito desenvolvida; esta se exercerá naturalmente sobre o órgão correspondente e estimulará o seu desenvolvimento, como o exercício de um membro aumenta o volume dos músculos. Como na infância o sistema ósseo oferece pouca resistência, o crânio sofre a influência do movimento expansivo da massa cerebral.
Desse modo, o desenvolvimento do crânio é produzido pelo desenvolvimento do cérebro, assim como o desenvolvimento do cérebro o é pelo da faculdade. A faculdade é a causa primeira; o estado do cérebro é um efeito consecutivo. Sem a faculdade o órgão não existiria ou seria apenas rudimentar. Encarada sob esse ponto de vista, a frenologia, como se vê, nada tem de contrário à moral, porquanto deixa ao homem toda a sua responsabilidade, cabendo-nos acrescentar que esta teoria é, ao mesmo tempo, conforme a lógica e à observação dos fatos.
Objetam com os casos bem conhecidos, nos quais a influência do organismo sobre a manifestação das faculdades é incontestável, como os da loucura e da idiotia, mas é fácil resolver a questão. Veem-se todos os dias homens muito inteligentes tornarem-se loucos. O que prova isto? Um homem muito forte pode quebrar a perna e não poderá mais andar. Ora, a vontade de andar não está na perna, mas no cérebro; esta vontade só é paralisada pela impossibilidade de mover a perna. No louco, o órgão que servia às manifestações do pensamento, estando avariado por uma causa física qualquer, o pensamento já não pode manifestar-se de maneira regular; erra a torto e a direito, fazendo o que chamamos extravagâncias. Mas nem por isso deixa de existir em sua integridade, e a prova disso está em que, se o órgão for restabelecido, volta o pensamento original, como o movimento da perna que é curada.
Assim, o pensamento não está no cérebro, como não se encontra na calota craniana. O cérebro é o instrumento do pensamento, como o olho é o instrumento da visão, e o crânio é a superfície sólida que se molda aos movimentos do instrumento. Se o instrumento for deteriorado não ocorrerá manifestação, exatamente como não se pode mais ver ao se perder um olho.
Entretanto, por vezes acontece que a suspensão da livre manifestação do pensamento não se deve a uma causa acidental, como na loucura. A constituição primitiva dos órgãos pode oferecer ao Espírito, desde o nascimento, um obstáculo do qual sua atividade não pode triunfar. É o que acontece quando os órgãos são atrofiados ou apresentam uma resistência insuperável. Tal é o caso da idiotia. O Espírito está como que aprisionado e sofre essa constrição, mas nem por isso deixa de pensar como Espírito, do mesmo modo que um prisioneiro atrás das grades. O estudo das manifestações do Espírito de pessoas vivas, pela evocação, lança uma grande luz sobre os fenômenos psicológicos. Isolando o Espírito da matéria, prova-se pelos fatos que os órgãos não são a causa das faculdades, mas simples instrumentos, com o auxílio dos quais as faculdades se manifestam com maior ou menor liberdade ou precisão; que muitas vezes funcionam como abafadores, que amortecem as manifestações, o que explica a maior liberdade do Espírito, uma vez desprendido da matéria.
No conceito materialista, o que é um idiota? Nada; é apenas um ser humano. Conforme a Doutrina Espírita é um ser dotado de razão como todo mundo, mas enfermo de nascença pelo cérebro, como outros o são pelos membros. Ao reabilitá-lo, não será tal doutrina mais moral, mais humana, que a que dele faz um ser desprezível? Não é mais consolador para um pai, que tem a infelicidade de ter um tal filho, pensar que esse envoltório imperfeito encerra uma alma que pensa?
Aos que, sem serem materialistas, não admitem a pluralidade das existências, perguntaremos: O que é a alma do idiota? Se a alma é formada ao mesmo tempo com o corpo, por que criaria Deus seres assim desgraçados? Qual será o seu futuro?
Admiti, ao contrário, uma sucessão de existências e tudo se explica conforme a justiça: a idiotia pode ser uma punição ou uma prova e, em todo caso, não passa de um incidente na vida do Espírito. Isto não é maior, mais digno da justiça de Deus, do que supor que o Pai tenha criado um ser fracassado para sempre?
Agora lancemos as vistas para a fisiognomonia. Esta ciência é baseada no princípio incontestável de que é o pensamento que põe os órgãos em jogo, que imprime aos músculos certos movimentos. Daí se segue que, estudando as relações entre os movimentos aparentes e o pensamento, dos movimentos vistos podemos deduzir o pensamento, que não vemos. É assim que não nos enganaremos quanto à intenção de quem faz um gesto ameaçador ou amigável; que reconheceremos o modo de andar de um homem apressado e o do que não o é. De todos os músculos, os mais móveis são os da face; ali se refletem muitas vezes até os mais delicados matizes do pensamento. Eis por que, com razão, se diz que o rosto é o espelho da alma. Pela frequência de certas sensações, os músculos contraem o hábito dos movimentos correspondentes e acabam formando a ruga. A forma exterior se modifica, assim, pelas impressões da alma, de onde se segue que, dessa forma, algumas vezes se podem deduzir essas impressões, como do gesto podemos deduzir o pensamento. Tal é o princípio geral da arte ou, se se quiser, da ciência fisiognomônica. Este princípio é verdadeiro; não apenas se apoia sobre base racional, mas é confirmado pela observação, tendo Lavater a glória, se não de o haver descoberto, pelo menos de o ter desenvolvido e formulado em corpo de doutrina. Infelizmente, Lavater caiu no erro comum à maioria dos autores de sistemas, ou seja, a partir de um princípio verdadeiro sob certos pontos, concluírem por uma aplicação universal e, em seu entusiasmo por terem descoberto uma verdade, a vê-la por toda parte. Eis aí o exagero e, muitas vezes, o ridículo.
Não nos cabe examinar aqui o sistema de Lavater em seus detalhes: diremos apenas que tanto é ele consequente ao remontar do físico ao moral por certos sinais exteriores, quanto é ilógico ao atribuir um sentido qualquer às formas ou sinais sobre os quais o pensamento não pode exercer nenhuma ação. É a falsa aplicação de um princípio verdadeiro que muitas vezes o relega ao nível das crenças supersticiosas, e que leva a confundir na mesma reprovação os que veem certo e os que exageram.
Digamos, entretanto, para ser justo, que muitas vezes a falta é menos do mestre que dos discípulos que, em sua admiração fanática e irrefletida, por vezes levam as consequências de um princípio além dos limites do possível.
Agora, se examinarmos esta ciência nas suas relações com o Espiritismo, teremos de combater várias induções errôneas que dela poderiam ser tiradas. Entre as relações fisiognomônicas, existe principalmente uma sobre a qual a imaginação muitas vezes se exerceu: é a semelhança de algumas pessoas com certos animais.
Procuremos, então, buscar a causa.
A semelhança física entre os parentes resulta da consanguinidade que transmite, de um a outro, partículas orgânicas semelhantes[2], porque o corpo procede do corpo. Mas não poderia vir ao pensamento de ninguém supor que aquele que se parece com um gato, por exemplo, tenha nas veias o sangue de gato. Há, pois, uma outra causa. De início, pode ser fortuita e sem qualquer significação: é o caso mais comum. Todavia, além da semelhança física, nota-se por vezes uma certa analogia de inclinações. Isto poderia explicar-se pela mesma causa que modifica os traços da fisionomia. Se um Espírito ainda atrasado conserva alguns dos instintos do animal, seu caráter, como homem, terá esses traços, e as paixões que o agitam poderão dar a esses traços algo que lembre vagamente os do animal cujos instintos possui. Mas esses traços se apagam à medida que o Espírito se depura e o homem avança no caminho da perfeição.
Aqui, portanto, seria o Espírito a imprimir sua marca na fisionomia; mas da similitude dos instintos seria absurdo concluir que o homem, que tem os do gato, possa ser a encarnação do Espírito de um gato. Longe de ensinar semelhante teoria, o Espiritismo sempre demonstrou o seu ridículo e a sua impossibilidade. É verdade que se nota uma gradação contínua na série animal; mas entre o animal e o homem há uma solução de continuidade. Ora, mesmo admitindo, o que é apenas um sistema, que o Espírito tenha passado por todos os graus da escala animal, antes de chegar ao homem, haveria sempre, de um ao outro, uma interrupção que não existiria se o Espírito do animal pudesse encarnar-se diretamente no corpo do homem. Se assim fosse, entre os Espíritos errantes haveria os de animais, como há Espíritos humanos, o que não acontece.
Sem entrar no exame aprofundado desta questão, que discutiremos mais tarde, dizemos, conforme os Espíritos, que nisto estão de acordo com a observação dos fatos, que nenhum homem é a reencarnação do Espírito de um animal. Os instintos animais do homem decorrem da imperfeição de seu próprio Espírito, ainda não depurado e que, sob a influência da matéria, dá preponderância às necessidades físicas sobre as morais e sobre o senso moral, não ainda suficientemente desenvolvido. Sendo as mesmas as necessidades físicas no homem e no animal, necessariamente resulta que, até o senso moral estabelecer um contrapeso, pode haver entre eles uma certa analogia de instintos; mas aí se detém a paridade; o senso moral que não existe num, e que no outro germina e cresce incessantemente, estabelece entre eles a verdadeira linha de demarcação.
Uma outra indução não menos errônea é tirada do princípio da pluralidade das existências. Da sua semelhança com certas personagens, algumas concluem que podem ter sido tais personagens. Ora, do que precede, é fácil demonstrar que aí existe apenas uma ideia quimérica. Como dissemos, as relações consanguíneas podem produzir uma similitude de formas, mas não é este aqui o caso, pois Esopo pode ter sido mais tarde um homem bonito e Sócrates um belo rapaz. Assim, quando não há filiação corporal, só haverá uma semelhança fortuita, porquanto não há nenhuma necessidade para o Espírito habitar corpos parecidos e, ao tomar um novo corpo, não traz nenhuma parcela do antigo.
Entretanto, conforme o que dissemos acima, quanto ao caráter que as paixões podem imprimir aos traços, poder-se-ia pensar que, se um Espírito não progrediu sensivelmente e retorna com as mesmas inclinações, poderá trazer no rosto identidade de expressão. Isto é exato, mas seria no máximo um ar de família, e daí a uma semelhança real há muita distância. Aliás, este caso deve ser excepcional, pois é raro que o Espírito não venha em outra existência com disposições sensivelmente modificadas. Assim, dos sinais fisiognomônicos não se pode tirar absolutamente nenhum indício das existências anteriores. Só podemos encontrá-las no caráter moral, nas ideias instintivas e intuitivas, nas inclinações inatas, nas que não resultam da educação, assim como na natureza das expiações suportadas. E ainda isto só poderia indicar o gênero de existência, o caráter que se deveria ter, levando em conta o progresso, mas não a individualidade. (Vide O Livro dos Espíritos, números 216 e 217).




[1] Revista Espírita – Julho/1860 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Kardec serviu-se das teorias científicas da época. Só em 1865 Mendel publicaria seus primeiros trabalhos de genética, enquanto a molécula de DNA, base da hereditariedade, nem sequer era sonhada.

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