A frenologia é ciência que trata das funções atribuídas a cada parte
do cérebro. O Dr. Gall, fundador dessa ciência, pensava que, desde que o
cérebro é o ponto para onde são conduzidas todas as sensações, e de onde partem
todas as manifestações das faculdades intelectuais e morais, cada uma das faculdades
primitivas deveria ter ali o seu órgão especial. Assim, seu sistema consiste na
localização das faculdades. Sendo o desenvolvimento de cada parte cerebral
determinado pelo desenvolvimento da calota óssea, produzindo protuberâncias, concluiu
ele que, do exame dessas protuberâncias, poder-se-ia deduzir a predominância de
tal ou qual faculdade e, daí, o caráter ou as aptidões do indivíduo. Daí,
também, o nome de cranioscopia dado a
essa ciência, com a diferença de que a frenologia
tem por objeto tudo o que diz respeito às atribuições do cérebro, enquanto a cranioscopia se limita às ilações
tiradas da inspeção do crânio.
Numa palavra, Gall fez, a
respeito do crânio e do cérebro, o que fez Lavater para os traços fisionômicos.
Não há por que discutir aqui o
mérito desta ciência, nem examinar se é verdadeira ou exagerada em todas as
suas consequências. Mas ela foi, alternadamente, defendida e criticada por
homens de alto valor científico. Se certos detalhes são ainda hipotéticos, nem
por isso deixa de repousar sobre um princípio incontestável, o das funções
gerais do cérebro, e sobre as relações existentes entre o desenvolvimento ou a
atrofia desse órgão e as manifestações intelectuais. O nosso objetivo é o
estudo das suas consequências psicológicas.
Das relações existentes entre o
desenvolvimento do cérebro e a manifestação de certas faculdades, alguns sábios
concluíram que os órgãos cerebrais são a própria fonte das faculdades, doutrina
que não é outra senão a do materialismo, porquanto tende à negação do princípio
inteligente estranho à matéria. Consequentemente, faz do homem uma máquina, sem
livre-arbítrio e sem responsabilidade de seus atos, já que sempre poderia
atribuir os seus erros à sua organização e seria injustiça puni-lo por faltas
que não teriam dependido dele cometer. Ficamos abalados pelas consequências de
semelhante teoria, e com razão.
Devia-se, por isso, proscrever a
frenologia? Não, mas examinar o que nela poderia haver de verdadeiro ou de
falso na maneira de encarar os fatos. Ora, esse exame prova que as atribuições
do cérebro em geral, e mesmo a localização das faculdades, podem conciliar-se
perfeitamente com o espiritualismo
mais severo, que nisso encontraria a explicação de certos fatos. Admitamos, por
um instante, a título de hipótese, a existência de um órgão especial para o
instinto musical. Suponhamos, além disso, como nos ensina a Doutrina Espírita, que um Espírito, cuja
existência é muito anterior ao seu corpo, reencarne com a faculdade musical
muito desenvolvida; esta se exercerá naturalmente sobre o órgão correspondente
e estimulará o seu desenvolvimento, como o exercício de um membro aumenta o
volume dos músculos. Como na infância o sistema ósseo oferece pouca
resistência, o crânio sofre a influência do movimento expansivo da massa
cerebral.
Desse modo, o desenvolvimento do
crânio é produzido pelo desenvolvimento do cérebro, assim como o
desenvolvimento do cérebro o é pelo da faculdade. A faculdade é a causa
primeira; o estado do cérebro é um efeito consecutivo. Sem a faculdade o órgão
não existiria ou seria apenas rudimentar. Encarada sob esse ponto de vista, a
frenologia, como se vê, nada tem de contrário à moral, porquanto deixa ao homem
toda a sua responsabilidade, cabendo-nos acrescentar que esta teoria é, ao
mesmo tempo, conforme a lógica e à observação dos fatos.
Objetam com os casos bem
conhecidos, nos quais a influência do organismo sobre a manifestação das
faculdades é incontestável, como os da loucura e da idiotia, mas é fácil
resolver a questão. Veem-se todos os dias homens muito inteligentes tornarem-se
loucos. O que prova isto? Um homem muito forte pode quebrar a perna e não
poderá mais andar. Ora, a vontade de andar não está na perna, mas no cérebro;
esta vontade só é paralisada pela impossibilidade de mover a perna. No louco, o
órgão que servia às manifestações do pensamento, estando avariado por uma causa
física qualquer, o pensamento já não pode manifestar-se de maneira regular;
erra a torto e a direito, fazendo o que chamamos extravagâncias. Mas nem por
isso deixa de existir em sua integridade, e a prova disso está em que, se o
órgão for restabelecido, volta o pensamento original, como o movimento da perna
que é curada.
Assim, o pensamento não está no
cérebro, como não se encontra na calota craniana. O cérebro é o instrumento do
pensamento, como o olho é o instrumento da visão, e o crânio é a superfície
sólida que se molda aos movimentos do instrumento. Se o instrumento for deteriorado
não ocorrerá manifestação, exatamente como não se pode mais ver ao se perder um
olho.
Entretanto, por vezes acontece
que a suspensão da livre manifestação do pensamento não se deve a uma causa
acidental, como na loucura. A constituição primitiva dos órgãos pode oferecer
ao Espírito, desde o nascimento, um obstáculo do qual sua atividade não pode
triunfar. É o que acontece quando os órgãos são atrofiados ou apresentam uma
resistência insuperável. Tal é o caso da idiotia. O Espírito está como que
aprisionado e sofre essa constrição, mas nem por isso deixa de pensar como
Espírito, do mesmo modo que um prisioneiro atrás das grades. O estudo das manifestações
do Espírito de pessoas vivas, pela evocação, lança uma grande luz sobre os
fenômenos psicológicos. Isolando o Espírito da matéria, prova-se pelos fatos
que os órgãos não são a causa das faculdades, mas simples instrumentos, com o
auxílio dos quais as faculdades se manifestam com maior ou menor liberdade ou
precisão; que muitas vezes funcionam como abafadores, que amortecem as
manifestações, o que explica a maior liberdade do Espírito, uma vez desprendido
da matéria.
No conceito materialista, o que
é um idiota? Nada; é apenas um ser humano. Conforme a Doutrina Espírita é um
ser dotado de razão como todo mundo, mas enfermo de nascença pelo cérebro, como
outros o são pelos membros. Ao reabilitá-lo, não será tal doutrina mais moral,
mais humana, que a que dele faz um ser desprezível? Não é mais consolador para
um pai, que tem a infelicidade de ter um tal filho, pensar que esse envoltório imperfeito
encerra uma alma que pensa?
Aos que, sem serem
materialistas, não admitem a pluralidade das existências, perguntaremos: O que
é a alma do idiota? Se a alma é formada ao mesmo tempo com o corpo, por que criaria
Deus seres assim desgraçados? Qual será o seu futuro?
Admiti, ao contrário, uma
sucessão de existências e tudo se explica conforme a justiça: a idiotia pode
ser uma punição ou uma prova e, em todo caso, não passa de um incidente na vida
do Espírito. Isto não é maior, mais digno da justiça de Deus, do que supor que
o Pai tenha criado um ser fracassado para sempre?
Agora lancemos as vistas para a fisiognomonia. Esta ciência é baseada no princípio incontestável de que é o
pensamento que põe os órgãos em jogo, que imprime aos músculos certos movimentos.
Daí se segue que, estudando as relações entre os movimentos aparentes e o
pensamento, dos movimentos vistos podemos deduzir o pensamento, que não vemos.
É assim que não nos enganaremos quanto à intenção de quem faz um gesto ameaçador
ou amigável; que reconheceremos o modo de andar de um homem apressado e o do
que não o é. De todos os músculos, os mais móveis são os da face; ali se
refletem muitas vezes até os mais delicados matizes do pensamento. Eis por que,
com razão, se diz que o rosto é o espelho da alma. Pela frequência de certas sensações,
os músculos contraem o hábito dos movimentos correspondentes e acabam formando
a ruga. A forma exterior se modifica, assim, pelas impressões da alma, de onde
se segue que, dessa forma, algumas vezes se podem deduzir essas impressões, como
do gesto podemos deduzir o pensamento. Tal é o princípio geral da arte ou, se
se quiser, da ciência fisiognomônica. Este princípio é verdadeiro; não apenas
se apoia sobre base racional, mas é confirmado pela observação, tendo Lavater a
glória, se não de o haver descoberto, pelo menos de o ter desenvolvido e formulado
em corpo de doutrina. Infelizmente, Lavater caiu no erro comum à maioria dos
autores de sistemas, ou seja, a partir de um princípio verdadeiro sob certos
pontos, concluírem por uma aplicação universal e, em seu entusiasmo por terem
descoberto uma verdade, a vê-la por toda parte. Eis aí o exagero e, muitas vezes,
o ridículo.
Não nos cabe examinar aqui o
sistema de Lavater em seus detalhes: diremos apenas que tanto é ele consequente
ao remontar do físico ao moral por certos sinais exteriores, quanto é ilógico
ao atribuir um sentido qualquer às formas ou sinais sobre os quais o pensamento
não pode exercer nenhuma ação. É a falsa aplicação de um princípio verdadeiro
que muitas vezes o relega ao nível das crenças supersticiosas, e que leva a
confundir na mesma reprovação os que veem certo e os que exageram.
Digamos, entretanto, para ser
justo, que muitas vezes a falta é menos do mestre que dos discípulos que, em
sua admiração fanática e irrefletida, por vezes levam as consequências de um princípio
além dos limites do possível.
Agora, se examinarmos esta
ciência nas suas relações com o Espiritismo, teremos de combater várias
induções errôneas que dela poderiam ser tiradas. Entre as relações
fisiognomônicas, existe principalmente uma sobre a qual a imaginação muitas
vezes se exerceu: é a semelhança de algumas pessoas com certos animais.
Procuremos, então, buscar a
causa.
A semelhança física entre os
parentes resulta da consanguinidade que transmite, de um a outro, partículas
orgânicas semelhantes[2],
porque o corpo procede do corpo. Mas não poderia vir ao pensamento de ninguém
supor que aquele que se parece com um gato, por exemplo, tenha nas veias o
sangue de gato. Há, pois, uma outra causa. De início, pode ser fortuita e sem
qualquer significação: é o caso mais comum. Todavia, além da semelhança física,
nota-se por vezes uma certa analogia de inclinações. Isto poderia explicar-se
pela mesma causa que modifica os traços da fisionomia. Se um Espírito ainda
atrasado conserva alguns dos instintos do animal, seu caráter, como homem, terá
esses traços, e as paixões que o agitam poderão dar a esses traços algo que
lembre vagamente os do animal cujos instintos possui. Mas esses traços se apagam
à medida que o Espírito se depura e o homem avança no caminho da perfeição.
Aqui, portanto, seria o Espírito
a imprimir sua marca na fisionomia; mas da similitude dos instintos seria
absurdo concluir que o homem, que tem os do gato, possa ser a encarnação do Espírito
de um gato. Longe de ensinar semelhante teoria, o Espiritismo sempre demonstrou
o seu ridículo e a sua impossibilidade. É verdade que se nota uma gradação
contínua na série animal; mas entre o animal e o homem há uma solução de continuidade.
Ora, mesmo admitindo, o que é apenas um sistema, que o Espírito tenha passado
por todos os graus da escala animal, antes de chegar ao homem, haveria sempre,
de um ao outro, uma interrupção que não existiria se o Espírito do animal
pudesse encarnar-se diretamente no corpo do homem. Se assim fosse, entre os
Espíritos errantes haveria os de animais, como há Espíritos humanos, o que não
acontece.
Sem entrar no exame aprofundado
desta questão, que discutiremos mais tarde, dizemos, conforme os Espíritos, que
nisto estão de acordo com a observação dos fatos, que nenhum homem é a
reencarnação do Espírito de um animal. Os instintos animais do homem decorrem
da imperfeição de seu próprio Espírito, ainda não depurado e que, sob a
influência da matéria, dá preponderância às necessidades físicas sobre as
morais e sobre o senso moral, não ainda suficientemente desenvolvido. Sendo as
mesmas as necessidades físicas no homem e no animal, necessariamente resulta
que, até o senso moral estabelecer um contrapeso, pode haver entre eles uma
certa analogia de instintos; mas aí se detém a paridade; o senso moral que não
existe num, e que no outro germina e cresce incessantemente, estabelece entre
eles a verdadeira linha de demarcação.
Uma outra indução não menos
errônea é tirada do princípio da pluralidade das existências. Da sua semelhança
com certas personagens, algumas concluem que podem ter sido tais personagens.
Ora, do que precede, é fácil demonstrar que aí existe apenas uma ideia
quimérica. Como dissemos, as relações consanguíneas podem produzir uma
similitude de formas, mas não é este aqui o caso, pois Esopo pode ter sido mais
tarde um homem bonito e Sócrates um belo rapaz. Assim, quando não há filiação corporal,
só haverá uma semelhança fortuita, porquanto não há nenhuma necessidade para o
Espírito habitar corpos parecidos e, ao tomar um novo corpo, não traz nenhuma
parcela do antigo.
Entretanto, conforme o que
dissemos acima, quanto ao caráter que as paixões podem imprimir aos traços,
poder-se-ia pensar que, se um Espírito não progrediu sensivelmente e retorna
com as mesmas inclinações, poderá trazer no rosto identidade de expressão. Isto
é exato, mas seria no máximo um ar de família, e daí a uma semelhança real há
muita distância. Aliás, este caso deve ser excepcional, pois é raro que o
Espírito não venha em outra existência com disposições sensivelmente
modificadas. Assim, dos sinais fisiognomônicos não se pode tirar absolutamente
nenhum indício das existências anteriores. Só podemos encontrá-las no caráter
moral, nas ideias instintivas e intuitivas, nas inclinações inatas, nas que não
resultam da educação, assim como na natureza das expiações suportadas. E ainda
isto só poderia indicar o gênero de existência, o caráter que se deveria ter,
levando em conta o progresso, mas não a individualidade. (Vide O Livro dos Espíritos, números 216 e
217).
[1]
Revista Espírita – Julho/1860 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Kardec serviu-se das teorias científicas da
época. Só em 1865 Mendel publicaria seus primeiros trabalhos de genética,
enquanto a molécula de DNA, base da hereditariedade, nem sequer era sonhada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário