Cena do filme "Nosso Lar"
A Sra. G. enviuvou a três anos, ficando com quatro crianças. O filho mais velho é um amável rapaz de dezessete anos, e a filha mais jovem uma encantadora menina de seis anos.
Desde muito tempo essa família
se dedica ao Espiritismo, e antes mesmo que essa crença se tivesse popularizado
como hoje, o pai e a mãe tinham uma espécie de intuição, que diversas
circunstâncias haviam desenvolvido.
O pai do Sr. G. lhe tinha
aparecido diversas vezes em sua juventude e a cada vez o prevenia de coisas
importantes ou lhe dava conselhos úteis. Fatos do mesmo gênero igualmente se haviam
passado entre seus amigos, de sorte que, para eles, a existência de além-túmulo
não era objeto da mais leve dúvida, assim como não o era a possibilidade de nos
comunicarmos com os seres que nos são caros.
Ao surgir, o Espiritismo não foi
senão a confirmação de uma ideia bem sedimentada e santificada pelo sentimento
de uma religião esclarecida, pois aquela família é um modelo de piedade e de
caridade evangélicas. Extraíram da nova ciência os meios mais diretos de
comunicação; a mãe e um dos filhos tornaram-se excelentes médiuns. Entretanto,
longe de empregar essa faculdade em questões fúteis, todos a consideravam como
um precioso dom da Providência, do qual era permitido servir-se somente para
coisas sérias. Assim, jamais a praticam sem recolhimento e respeito, e longe do
olhar dos importunos e curiosos.
Entrementes o pai adoeceu e,
pressentindo o fim próximo, reuniu os filhos e disse-lhes:
Filhos queridos e esposa muito amada, Deus me
chama para ele. Sinto que vos deixarei daqui a pouco; mas sinto que
encontrareis em vossa fé na imortalidade a força necessária para suportar
corajosamente esta separação, assim como levo o consolo de que poderei sempre
estar entre vós e vos ajudar com os meus conselhos. Chamai-me, pois, quando eu
não estiver mais na Terra; virei sentar-me ao vosso lado, conversar convosco,
como fazem os nossos antepassados. Na verdade estaremos menos separados do que
se eu partisse para um país longínquo. Minha adorada esposa, deixo-te uma
grande tarefa; entretanto, quanto mais pesada for, mais gloriosa será. Estou
certo de que nossos filhos te auxiliarão a suportá-la; não é, meus filhos?
Secundai vossa mãe; evitai tudo quanto possa
fazê-la sofrer; sede bons e benevolentes para com todos; estendei a mão aos
vossos irmãos infelizes, porque não gostaríeis de estendê-la um dia, pedindo em
vão para vós. Que a paz, a concórdia e a união reinem entre vós; que jamais o
interesse vos separe, pois o interesse material é a maior barreira entre a
Terra e o Céu. Pensai que estarei sempre junto a vós, que vos verei como vos
vejo neste momento, e melhor ainda, pois verei o vosso pensamento. Não
queirais, pois, entristecer-me depois da morte, assim como não o fizestes em minha
vida[2].
É um espetáculo verdadeiramente
edificante presenciar a intimidade dessa piedosa família. Alimentadas nas ideias
espíritas, essas crianças não se consideram absolutamente separadas do pai. Para
elas, ele está presente e temem praticar a menor ação que o possa desagradar.
Uma noite por semana, e às vezes mais, é consagrada para conversar com ele; há,
porém, as necessidades da vida, que devem ser providas – a família não é rica –
razão por que um dia fixo é marcado para essas conversas piedosas, dia sempre esperado
com impaciência. Muitas vezes pergunta a pequenina: “É hoje que papai vem?” Esse
dia é dedicado a conversas familiares, em instruções proporcionais à
inteligência, por vezes infantis, de outras vezes graves e sublimes. São
conselhos dados a propósito de pequenas travessuras que ele assinala. Se faz
elogios, também não poupa a crítica e, nesse caso, o culpado baixa os olhos,
como se o pai estivesse à sua frente; pede-lhe perdão, que não é concedido senão
depois de várias semanas de provas: sua sentença é aguardada com fervorosa
ansiedade. Então, que alegria quando o pai diz: “Estou contente contigo!” Dizer,
no entanto: “Não virei na próxima semana” é a mais terrível ameaça.
A festa anual não é esquecida. É
sempre um dia solene, para o qual convidam os antepassados já falecidos, sem
esquecer um irmãozinho morto há alguns anos. Os retratos são ornados de flores,
cada criança prepara um pequeno trabalho, até mesmo uma saudação tradicional. O
mais velho faz uma dissertação sobre assunto grave; uma das mocinhas executa um
trecho musical; a pequenina, finalmente, recita uma fábula. É o dia das grandes
comunicações, e cada convidado recebe uma lembrança dos amigos que deixou na
Terra.
Como são belas essas reuniões,
na sua tocante simplicidade! Como tudo ali fala ao coração! Como podemos sair dali
sem estar impregnado pelo amor do bem? Nenhum olhar de mofa, nenhum sorriso
céptico vem perturbar o piedoso recolhimento; alguns amigos partilham das
mesmas convicções e as pessoas devotadas à religião da família são as únicas
admitidas a tomarem assento nesse banquete de sentimento. Ride quanto quiserdes,
vós que zombais das coisas mais santas. Por mais soberbos e endurecidos sejais,
não vos faço a injúria de acreditar que o vosso orgulho possa ficar impassível
e frio diante de tal espetáculo.
Um dia, entretanto, foi de luto
para a família, dia de verdadeiro pesar: o pai havia anunciado que durante
algum tempo, muito tempo mesmo, não poderia vir; uma grande e importante missão
o convocava longe da Terra. Nem por isso a festa anual deixou de ser celebrada;
mas foi triste, pois lá ele não estava.
Havia dito ao partir:
Meus filhos: que em meu retorno eu os possa encontrar
todos dignos de mim, razão
por que cada um se esforça por tornar-se digno dele. Eles ainda esperam.
[1] Revista
Espírita – Setembro/1859 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Utilizamos ora a segunda pessoa do singular,
ora a segunda do plural, como consta no original, a fim de melhor focalizar a
intimidade daquele momento tão significativo para um pai que se despedia da
família.
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