Ermance Dufaux
Não basta que dos lábios manem leite e mel. Se o coração de modo algum
lhes está associado, só há hipocrisia.
Aquele cuja afabilidade e doçura não são fingidas nunca se desmente; é
o mesmo, tanto em sociedade, como na intimidade.Esse, ao demais, sabe que se, pelas aparências, se consegue enganar os homens, a Deus ninguém engana.
Lázaro (Paris, 1861)
O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO – Cap. 9, Item 6
Os adeptos sinceros do
Espiritismo mais que nunca carecem de abordar com franqueza o velho problema da
hipocrisia humana. Nesse particular, seria muito proveitoso que as agremiações
doutrinárias promovessem debates grupais acerca dos caminhos e desafios que
enfrentamos todos nós, os que decidimos por uma melhoria moral no reino do
coração.
O chamado “vício de
santificação” continua escravizando o mundo psicológico do homem a noções
primitivas e inconsistentes sobre como desenvolver o sagrado patrimônio das
virtudes, que ele encontra adormecido de vida superconsciente do ser.
Hipocrisia é o hábito humano
adquirido de aparentar o que não somos, em razão da necessidade de aprovação do
grupo social em que convivemos. Intencional ou não, é um fenômeno profundo nas
suas raízes emocionais e psíquicas, que envolve particularidades específicas e
cada criatura, mas que podemos conceituar como a atitude de simular, antes de
tudo para nós mesmos, uma “imagem ideal” daquilo que gostaríamos de ser.
Difícil definir os limites entre o desejo sincero de aperfeiçoar-se em direção
a esse “eu ideal”, e o comportamento artificial que nos leva a acreditar no
fato de estarmos nos transformando, considerando a esteira de reflexos que
criamos nas fileiras da mentira.
Aliás, para muitos corações
sinceros que efetivamente anelam por aprimoramento e mudança, detectar uma
atitude falsa e uma ação que corresponda aos novos ideais costuma desenvolver
um estado psicológico de insatisfação consigo mesmo, que pode ativar a culpa e
a cobrança impiedosa. Instala-se assim um cruel sistema mental de inaceitação
de si mesmo, que ruma para a mais habitual das camuflagens da hipocrisia: a
negação, a fuga.
Não podemos asseverar que todo
processo de defesa psíquica que vise negar a autêntica realidade humana seja
algo patológico e nocivo. Muitas almas não teriam a mínima saúde mental não
fossem semelhantes recursos que, em muitas ocasiões, funcionam como um “escudo
protetor” que vai levando a criatura, pouco a pouco, ao conhecimento doloroso
da verdadeira intimidade, até ter melhores e mais seguros recursos de
libertação e equilíbrio. No entanto, quando nesse processo existe a
participação intencional de ações que visem impressionar os outros com qualidades
ainda não conquistadas, principalmente para auferir vantagens pessoais, então
se estabelece a hipocrisia, uma ação deliberada de demonstrar atitudes que não correspondem
à natureza dos sentimentos que constituem a rotina de sua vida afetiva.
As vivências sociais humanas com
suas exigências materialistas conduziram o homem à aprendizagem da hipocrisia.
A substituição de sentimentos foi um fenômeno adquirido. O hábito de camuflar o
que se sente tornou-se uma necessidade perante os grupos, e certas concepções
foram desenvolvidas nesse contexto que estimulam a falsidade. Convencionou-se por
exemplo que homens não devem chorar, criando a imagem da insensibilidade
masculina, em torno da qual bilhões de almas trafegam em papéis hipócritas e
doentios. Certas profissões como a de educador, durante séculos aprisionadas
nas sombras do mito, levaram à criação de um abismo entre educador e educando,
que eram ambos obrigados a disfarçar emoções para respeitarem seus limites,
impostos pela perversa institucionalização dos “super-heróis da cultura”.
Naturalmente todos esses convencionalismos vêm sofrendo drásticas reformulações
para um progresso das comunidades em direção a um dia mais feliz e pleno de
autenticidade nas atividades humanas.
Acompanhando essas renovações de
mentalidade na cultura, é imperioso que os líderes e condutores espíritas
tenham a coragem de sair de seus papéis, perante a coletividade doutrinária, e
erguerem a bandeira do diálogo franco e construtivo acerca das reais
necessidades que todos carregamos, rompendo com um ciclo de “faz de conta”.
Ciclo esse que somos infelizmente obrigados a afirmar, tem feito parte da vida
de muitos adeptos espíritas e até mesmo de grupos inteiros. Sem qualquer
reprimenda, vejamos esse quadro como sendo inevitável em se tratando de almas como
nós, mal saídas do primarismo evolutivo. Nada mais fizemos que caminhar para a
nossa hominização, ou seja, largar a selvageria instintiva e galgar os degraus
da humanização – o núcleo central do aprendizado na fase hominal, a qual
estamos apenas penetrando.
Adquirir essa consciência de que
a evolução não se faz aos saltos, e sim etapa a etapa, é um valoroso passo na
libertação desse “vício de santificação”, essa necessidade neurótica que
incutimos ao longo de eras sem fim, especialmente nas letras religiosas, com o
qual queremos passar por aquilo que ainda não somos. Disso resulta o conflito,
a dor, a cobrança, o perfeccionismo e todo um complexo de atitude de
autodesamor.
Sejamos nós mesmos e não nos
sintamos menores por isso. Aparentar santificação para o mundo não nos exonera
da equânime realidade dos princípios universais. Ninguém escapa das leis
criadas pelo Criador. A elas todos estamos submetidos. Que nos adiantará
demonstrar santificação para os outros, se a vida dos espíritos é um espelho da
Verdade que mostrará, a cada um de nós, particularmente, como somos?
Se acreditamos, portanto, na
imortalidade e sabemos da existência dessas “leis espelho”, deveríamos então
concluir que o quanto antes, para aqueles que se encontram na carne, tratamos
nossa realidade sem medos e culpas, maior será o bem que fazemos a nós mesmos.
Recordemos, nesse ínterim, que a
caridade para com o outro, conquanto seja extenso tributo de ajuste aos
Estatutos Divinos, não é “passaporte de garantia” par a movimentação nas
experiências de autoridade e de equilíbrio nos planos imortais. Aprendamos o
quanto antes a cultivar essa “sensação de salvação”, experimentada nos serviços
de doação, também em nossos momentos de autoencontro. Essa conquista realmente
nos pertence e ninguém nos pode tirar em tempo algum.
Viver distante da hipocrisia
necessariamente não significa expor a vida íntima e as lutas que carregamos a
qualquer pessoa, mas expô-las antes de tudo, a nós mesmos, assumindo o que
sentimos, os desejos que nutrimos, os sonhos que ainda trazemos, os sentimentos
que nos incendeiam de paixões, os pensamentos que nos consomem as horas,
esforçando-se por analisar nossas más condutas. Por outro ângulo, esse mesmo
processo de “detecção consciente” precisa ser realizado com nossos valores, as
decisões infelizes que deixamos de tomar, o sacrifício de construir uma
atividade espiritual, os novos costumes que estamos talhando na personalidade, os
sentimentos sublimes que começam a ensaiar projetos de luz na nossa mente, as escolhas
que temos feito no bem comum.
Reforma íntima, como a própria
expressão comunica, quer dizer a mudança que fazemos por dentro. E jamais, em
caso algum, ela se dará repentinamente, num salto. A santificação é um processo
lento e gradativo. Cuidemos com atenção das velhas ilusões que nos fazem
acreditar na “angelitude por osmose”, ou seja, de que a simples presença ou
participação nos ofícios doutrinários é garantia de aperfeiçoamento.
Temos recebido na vida
espiritual inúmeros companheiros de ideal, cuja revolta consigo próprios leva-os
a tormentos patológicos de graves proporções, quando percebem o equívoco em
acreditar que tão somente suas adesões às atividades de amor lhes renderam o “reino
dos céus”. A ilusão é tão intensa que requer tratamentos especializados e
longos em nosso plano. E vejam, os meus amigos na carne, o que a mente é capaz,
pois muitos desses corações poderiam intensamente se beneficiar das realizações
a que se entregaram, podendo mesmo alguns obter um trespasse tranquilo,
todavia, sem exceção, estão esperando mais do que merecem, é quando surge a
inconformação diante das expectativas de honrarias e glórias injustificáveis na
espiritualidade. Então esbravejam ao perceberem que são tratados com muito
carinho e amor, a fim de assumirem sua verdade realidade de doentes com baixo
aproveitamento na reencarnação, colhendo espinhoso resultado de seu autoengano.
Espíritas amigos e irmãos,
lembrai-vos de que todos estamos na Terra, planeta de testes infindáveis ao
nosso aperfeiçoamento. Mesmo os que nos encontramos fora do corpo ajustamo-nos a
essa conotação evolutiva. E nessa conjuntura o caminho da santificação se
amoita à realidade do homem que nela habita. Se, por agora, estivermos pelo
menos nos esforçando para sair do mal que fazemos a nós e ao próximo, dirigimo-nos
para essa proposta sagrada. Todavia, se ansiamos por concretizar em mais larga
escala as luzes de nossa santificação, lancemo-nos com louvor a outra etapa do
processo e aprendamos como criar todo o bem que pudermos em torno de nossos
passos, soltando-nos definitivamente de todos os grilhões do terrível
sentimento do fingimento, o qual ainda nos faz sentir que somos aquilo que
supomos ser.
[1] Reforma Íntima
sem Martírio – Wanderley S. de
Oliveira
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