Ermance Dufaux
“Para nos melhorarmos, outorgou-nos Deus, precisamente, o de que
necessitamos e nos basta: a voz da consciência e as tendências instintivas.
Priva-nos do que nos seria prejudicial”.
O EVANGELHO SEGUNDO O
ESPIRITISMO – Cap. V, Item 11
A natureza nos leva ao
esquecimento do passado exatamente para aprendermos a descobrir em nosso mundo
interior as razões profundas de nossos procedimentos, através da análise dos
pendores e impulsos, interesses e atrações que formam o conjunto de nossas reações
denominadas tendências.
A natureza nos presenteia com o
mecanismo natural do esquecimento para que tenhamos a mínima chance e condição
de elaborarmos essa autorreflexão, descobrirmos as motivações que sustentam
nossos vícios milenares e conseguirmos a formação de reflexos afetivos novos.
Com a presença das recordações
claras sobre os acontecimentos pretéritos, a mente estacionaria na vergonha e
no remorso, no rancor e na maga, sem um campo propício para o recomeço,
estabelecendo torvelinhos de desequilíbrio como os dramas que são narrados
pelas vias psicográficas da literatura espírita.
Agenor Pereira, devotado
seareiro espírita, encontrava-se desalentando com seus progressos na melhoria
espiritual. Ansiava por ser alguém mais nobre e não cultivar sentimentos ruins
ou permitir-se impulsos que lhe oneravam consciencialmente. Fazia comparações
com outros confrades e sentia-se o pior de todos face às vitórias ou ao estado
de alegria que demonstravam frente à vida.
Pensava ser o mais hipócrita dos
espíritas. Angustiava-se com a ideia de ter tanto conhecimento e fazer tão
pouco.
Desanimado consigo mesmo após um
momento de crise, pediu ajuda aos bondosos guias espirituais. Ao anoitecer,
fizera uma prece de desabafo apresentando ao Pai o seu cansaço com a reforma
interior. Ao sair do corpo físico, foi levado por seu “amigo familiar” a uma
caverna escura e fétida na qual arrastavam-se diversos sofredores no lamaçal
psíquico do vício. Agenor teve um súbito desfalecimento e foi então, por sua
vez, conduzido ao Hospital Esperança. Após recuperar-se, foi-lhe dado a
oportunidade de consultar uma resumida ficha que dava notas sobre suas vivências
reencarnatórias, o que passou a ler nos seguintes termos:
“Agenor Pereira, agora
reencarnado, peregrinou nas últimas seis existências por lamentáveis falências
no terreno do sexo e de infidelidade afetiva. Somando-se o tempo, entre
encarnações e desencarnações, esse período já conta seiscentos anos de viciações,
desvarios e desenlaces prematuros. Foi retirado da caverna das viciações e amparado
por equipes socorristas no Hospital Esperança. Sua tendência prejudicou mulheres
honradas, corrompeu autoridades para aprisionar maridos traídos, deixou crianças
abandonadas em razão da destruição de suas famílias. Sua insanidade provocou
ódio e repulsa, crimes e infelicidade. Face aos elos que os unem nos tempos,
Eurípedes Barsanulfo avalizou-lhe o regresso ao corpo físico com a condição de
ser a última existência com certas concessões para o crescimento em clima
provacional educativo.
Sua grande meta existencial
nessa última chance será vencer suas tendências aventureiras e imaturas.
Conhecerá a Doutrina Espírita, receberá uma companheira confidente e terá as
regalias de um lar em paz. Sua única e essencial vitória será o controle de
suas impulsões maléficas, a fim de que seja, em posteriores existências,
recambiado ao proscênio dos crimes cometidos na reedificação das almas que
prejudicou”.
Na medida em que Agenor lia a
ficha, imagens vivas lhe saltavam do campo mental como se estivesse assistindo
a cenas daquilo que fez. Terminada a leitura, um imenso sentimento de paz
invadiu-lhe a alma e pode perceber com clareza que seu anseio de reforma, inspirado
em “modelos de perfeição espírita”, na verdade, estava lhe prejudicando o
esforço. Estava desejando a santificação, eis seu erro. Regressaria ao corpo
mais feliz consigo e, embora não fosse desistir de ser alguém melhor, retiraria
contra si mesmo o hábito enfermiço das cobranças injustificáveis e ferrenhas
que lhe conduziam ao desânimo e desolação. Pararia com as comparações recheadas
de baixa autoestima e buscaria operar uma reavaliação totalmente sua, singular,
única. Antes de retornar, consultou seus instrutores sobre os motivos pelos
quais havia sido levado àquela caverna fétida. Foi então esclarecido:
“Agenor, você foi retirado
daquele lugar antes do retorno ao corpo depois de mais de quarenta anos de dor.
Ali se encontra também a maioria das pessoas a quem prejudicou, presas pelo
ódio e más recordações do passado. Certamente, eles dariam tudo para terem um
cérebro a fim de esquecerem o que lhes sucedeu, por um minuto que seja”.
Diante disso, Agenor ruborizou-se
e regressou imediatamente ao corpo.
Pensava no quanto a misericórdia
o havia beneficiado, logo a ele que se fazia o pivô de um processo de
atrocidades!
Ao despertar na vida corporal
trazia na alma um novo alento. Não guardava lembranças precisas, mas sabia-se muito
amparado. Valorizava agora seu esforço e desejava abandonar de vez os
estereótipos, fazendo o melhor de si. Amava com mais louvor o lar. Guardava na
alma a impressão de que uma “missão” o aguardava para o futuro e concentraria
esforço em manter-se íntegro nos seus ideais. Suas sensações e sentimentos são
sintetizados na fala sábia do codificador: “Pouco lhe importa saber o que foi
antes: se se vê punido, é que praticou o mal. Suas atuais tendências más indicam
o que lhe resta a corrigir em si próprio e é nisso que deve concentrar-se toda a
sua atenção, porquanto, daquilo de que se haja corrigido completamente, nenhum traço
mais conservará[2].
Que a historieta de nosso Agenor
sirva de estímulo a todos nós em transformação. Se não conseguimos ainda eliminar
certos ímpetos inferiores, mas evitamos as atitudes que deles poderiam nascer,
guardemos na alma a certeza de que estamos no caminho do crescimento arando o
terreno para uma farta semeadura no futuro. Esperar colher sem plantar é
ilusão. Não nos libertaremos dos grilhões do pretérito somente apenas na base
de contenção e disciplina, contudo, esse pode ser um primeiro e muito precioso
passo para muitos corações.
Muitos aprendizes inspirados nas
proposituras espíritas equivocam-se ostensivamente. Querem perfeição a baixo
custo e entregam-se a “reforma de metade”. Insatisfeitos com os parcos
resultados de seus esforços, atiram-se a autoavaliações impiedosas e
descabidas. Terminam em desistência, através de fugas, bem elaboradas pelas
sombras dinâmicas e dotadas de “inteligência” que residem em sua
subconsciência.
Sábia providência, o
esquecimento do passado. “...outorgou-nos Deus, precisamente, o de que
necessitamos e nos basta: a voz da consciência e as tendências instintivas”.
Com a consciência temos o rumo correto para aplicarmos o esforço educativo, com
as tendências instintivas, temos as boias sinalizadoras para que saibamos nos
conduzir dentro desse rumo. Em uma temos o futuro, em outra temos o passado
cooperando para não desviarmos novamente do que nos espera.
Uma pálida noção do que fez
Agenor em outras vidas, nessa situação especifica, lhe fez muito bem. No
entanto, imaginemos se ele, ao regressar ao corpo, trouxesse a recordação de que
sua mãe teria sido uma dessas mulheres traídas, como se sentiria? Que seus
filhos fossem algumas daquelas crianças abandonadas pelas famílias por ele
destruídas, como reagiria? Ou então que viesse a saber que aqueles maridos
traídos estavam agora ao seu lado, dividindo as tarefas doutrinárias em fortes
crises de ciúme e ressentimento?
Se lembrássemos das vivências
que esculpiram no campo mental as tendências atuais, ficaríamos certamente na
costumeira atitude defensiva, responsabilizando pessoas e situações pelas
decisões e comportamentos que adotamos. Com isso, fugiríamos mais uma vez de
averiguar com coragem nossa parcela de compromissos, nos insucessos de cada
passo, e de recriar nossas reações perante os condicionamentos. Não sabendo a
origem exata das nossas tendências, ficamos entregues a nós mesmos sem poder
culpar a ninguém, nem a nada. Temos em nós o resultado de nossas obras, eis a
lei.
Quando atribuímos ao passado
algo que não conhecemos ou conseguimos compreender sobre nossas reações e
escolhas, estamos nos furtando da investigação nem sempre agradável que
deveríamos proceder para encontrar as razões de tais sentimentos na vida
presente. O que sentimos hoje, tenha raízes no pretérito distante ou não, é do
hoje e deve ser tratado como algo que guarda uma matriz na vida presente, que
precisa de reeducação e disciplina. Assim nos pronunciamos porque muitos
conhecedores da reencarnação, a pretexto de distanciarem-se da responsabilidade
pessoal, emprestam a teoria das vidas passadas uma explicação para certos
impulsos da vida presente, desejosos de criar um álibi para desonerá-los das
consequências de seus atos hodiernos. É o medo de terem que olhar e assumir para
si mesmo que, venha do passado ou não, ainda sentem o que não gostariam de sentir
e querem o que gostariam de não querer. Além disso, com essa postura, deixamos
a nós mesmos uma mensagem subliminar do tipo: “nada podemos fazer pela
identificação desse impulso”, gerando acomodação e a possibilidade de novamente
falhar.
Toda vivência interior ocorre
porque o nosso momento de conhecê-lo é agora, do contrário não a
experimentaríamos. Para isso não se torna necessário uma regressão às vidas
anteriores na busca de recordações claras. Se pensarmos bem, vivemos imersos em
constante “regressão natural” controlada pela Sábia Providência. Via de regra,
estamos aprisionados ainda ao palco das lutas que criamos ou fruindo os
benefícios das escassas qualidades que desenvolvemos.
Viver o momento é viver a
realidade. Por necessidades de controlar tudo, caminhamos para frente ou para
traz em lamentável falta de confiança na vida e em seus “Sábios Regimentos”.
A pensadora Louise L. Hay diz
que o passado é passado e não pode ser modificado. Todavia, podemos alterar
nossos pensamentos em relação ao passado[3].
Essa a finalidade do
esquecimento: alterar o que sentimos e pensamos, sob a imensa coação dos
instintos e tendências que ainda nos inclinam a retroceder e parar no “tempo
evolutivo”.
[1] Reforma Íntima
sem Martírio – Psicografado por
Wanderley S. de Oliveira
[2] O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO – Cap. V, item 11.
[3] VOCE PODE CURAR A SUA VIDA, Louise L. Hay – Pág. 24 (4ª
edição), Editora Best Seller.
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