sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O que procede do Coração[1]


Ermance Dufaux


“Escutai e compreendei bem isto: – Não é o que entra na boca que macula o homem; o que sai da boca do homem é que o macula. – O que sai da boca procede do coração e é o que torna impuro o homem”.
Mateus, 15:11
O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO – Cap. VIII, Item 8

 
Dentre os velhos inimigos a burilar na caminhada educativa, as tendências que assinalam nosso estágio de aprendizado espiritual constituem fortes impulsos da alma que desviam o ser de seu trajeto natural na aquisição das virtudes.

Tendências são inclinações, pendores que determinam algumas características comportamentais da personalidade. Muitas delas foram adquiridas em várias etapas reencarnatórias e sedimentam o sistema de valores, com o qual a criatura faz suas escolhas na rotina da existência.

Entre essas inclinações, vamos encontrar a adoração exterior como sendo hábito profundamente arraigado na mente determinando forte vocação para a ritualização, o místico e a valorização de tradições religiosas, através da qual o homem faz seu encontro com Deus.

Muito natural que nos dias atuais as manifestações exteriores em relação à divindade prevaleçam na humanidade terrena, considerando que o seu trajeto espiritual se encontra bem mais perto da animalidade que da angelitude.

Nesse sentido, é interessante analisar que, mesmo nas fileiras da doutrina da fé raciocinada, encontra-se a maioria de seus adeptos engalfinhados em vigorosas reminiscências que fizeram parte das movimentações da alma nas vivências das religiões tradicionais. Atrofiamento do raciocínio, supervalorização dos valores institucionais, engessamento de conceitos, sensação de missionarismo religioso, atitude de supremacia da verdade, idolatria a seres “superiores”, submissão de conveniência a líderes, relação de absolvição ou penitência com práticas espíritas, desvalorização de si mesmo em razão da condição de pecador, condutas puritanas perante a sociedade e seus costumes, cultivo de comportamentos moralistas, confusão entre pureza exterior e renovação íntima, essas são algumas tendências que se apresentam junto aos nossos celeiros espíritas, remanescentes de fortes condicionamentos psíquicos.

Semelhantes caracteres imprimiram um padrão de práticas e conceitos no movimento espírita que, de alguma forma, estipulam referências a serem adotadas pelos seus seguidores.

Com todo respeito à fraternidade, necessitamos urgentemente ter a coragem de avaliar com sinceridade as influências “éticas” perniciosas dessas tendências no quadro de nossas vivências espiritistas. São reflexos inevitáveis do crescimento evolutivo que ninguém pode negar, mas daí a aceita-las sem quaisquer esforços de melhoria, é conivência e pusilanimidade. Torná-las uma referência religiosa pela qual se deva reconhecer o verdadeiro seguidor do Espiritismo é uma atitude recheada de ancestralismo e hipocrisia.

A comunidade espírita, que tantas benfeitorias tem prestado ao mundo, carece de uma reavaliação global em sua estrutura no que tange à noção de comprometimento. Convém que os líderes mais sensibilizados instiguem a formação da cultura da franqueza com fraternidade e clareza, no intuito de estabelecer uma oxigenação na sementeira para obtenção de mais qualidades nos frutos.

Muitos companheiros, os quais merecem nossa compreensão, costumam disseminar a concepção de que tudo deve correr conforme os acontecimentos, e justificam-se com a frase: “se fazendo assim está dando certo, porque mudar?” Em verdade, o que deveríamos pensar é: se fazendo assim estamos colhendo algo, então quanto não colheríamos se fizéssemos melhor, se nos abríssemos às renovações que a hora reclama?!!

Há uma acomodação lamentável que precisa ser aferida. A noção espírita de comprometimento foi acintosamente assaltada pelas velhas tendências de conseguir o máximo fazendo o mínimo. É a devoção exterior, a influência marcante da personalidade impregnada de religiosismo estéril querendo tomar conta da cabeça e do coração daqueles que estão sendo chamados a novos e mais altaneiros compromissos, na espiritualização de si mesmo e da comunidade onde floresceram.

Frágil padrão de validação da conduta espírita tem tomado conta dos costumes entre os idealistas. Enraizou-se o axioma “espírita faz isso e não faz aquilo” que tenta enquadrar o valor das ações em estereótipos de insustentável bom senso. Estereótipos, como seria óbvio, que sofrem as fantasias do “homem velho” habituado a sempre rechear com facilidades os seus caminhos em direção ao Pai, a fim de não ter que se enfrentar e assumir a árdua batalha contra suas ilusões enfermiças.

É assim que vamos notando uma supervalorização das coisas, como a não adoção de alimentação carnívora, a impropriedade de não frequentar certos ambientes sociais, a fuga da ação política, a análise da vida dissociada das ciências e conquistas humanas, a interminável procura do passe como instrumento de melhoria espiritual ao longo de anos a fio, não chorar em velórios, distanciamento da riqueza como se fosse um mal em si mesma, cenho carregado como sinônimo de responsabilidade, silêncio tumular nos ambientes espíritas. Se fumar, não é espírita; se separar matrimonialmente, tem a reencarnação fracassada; se ingerir alcoólicos, não pode ser considerado alguém em reforma; se for homossexual, não pode entrar no centro; e assim prosseguem as idiossincrasias que são estipuladas umas aqui, outras acolá.

Absolutamente não devemos desprezar o valor de todas essas questões, quando bem orientadas para o bom senso e a lógica. Entretanto, nenhuma dessas posturas é referência segura sobre a qualidade de nossos sentimentos, o que parte do coração. O que sai do coração e passa pela boca é o critério de validação de nossa realidade espiritual. Por ele se conhece a verdadeira pureza, a pureza interior que é determinada pela forma como sentimos a vida que nos rodeia. E sobre esse assunto só temos condições de avaliar o que se passa no nosso íntimo, jamais o que “sai” do coração do outro.

Sem dúvida alguma a pureza exterior pode ser um ensaio, um primeiro passo para o ingresso definitivo da Verdade em nosso coração. Todavia, amigos de ideal, pensemos se não estamos passando tempo demais na confortável zona do desculpismo, desejosos de facilitar para a consciência nossa noção sobre o que é “ser espírita”.

Quem muito recebeu, muito será pedido[2] . Em conclusão, comentamos que há muitos companheiros queridos do nosso ideário satisfeitos com o fato de apenas evitarem o mal, entretanto, estejamos alerta para a única referência ética que servirá a cada um de nós no reino da alma liberta da vida física: fazer todo o bem que pudermos no alcance de nossas forças[3] . Fora isso, somente trabalhando por uma imensa metamorfose nos reinos do coração de onde procedem todos os males.


[1] Reforma Íntima sem Martírio – Wanderley Soares de Oliveira
[2] LUCAS, 12:47 - 48.
[3] O LIVRO DOS ESPÍRITOS – Questão 770a.

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