quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Estudo inédito no país avalia relatos de quase-morte[1]




PROJETO INTERNACIONAL AWARE GANHA A CONTRIBUIÇÃO DE ESPECIALISTAS DA UFJF INTERESSADOS NA RELAÇÃO ENTRE MENTE E CÉREBRO E EM SUAS IMPLICAÇÕES PARA A ÁREA DA SAÚDE

Uma equipe multidisciplinar de professores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) se uniu a um projeto de pesquisa internacional buscando investigar a natureza das Experiências de Quase-Morte (EQMs) em pacientes vítimas de parada cardíaca. Pessoas que vivenciaram tal situação e receberam procedimentos de ressuscitação bem-sucedidos frequentemente relatam terem tido a experiência de imagens e sensações extracorpóreas durante o período no qual estiveram sem pulso. Tais experiências desafiam o conhecimento científico estabelecido, considerando-as impossíveis em virtude da ausência presumida de atividade cerebral causada pela falta de irrigação sanguínea e oxigenação do cérebro.

Relatos de EQMs ocorrem desde a antiguidade e se tornaram comuns na literatura médica nas últimas décadas, mas permanecem até hoje sem explicação científica. Os casos não são ouvidos exclusivamente em consultórios, pessoas às quais afirmam terem “visto a morte de perto” são personagens comuns em programas de televisão e filmes. A intenção da pesquisa não é dar respostas definitivas para as questões envolvendo mente e cérebro, mas apontar evidências para o começo de novas perguntas, como ressaltou um dos coordenadores do grupo, o professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, Leonardo Miana.

A metodologia do projeto consiste na instalação de prateleiras acima dos leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais de Juiz de Fora. Nas prateleiras, parecidas com bandejas, são colocadas figuras impressas de objetos ou pessoas públicas, reconhecidas facilmente pela população, como a de uma fruta, um político ou um esportista. Tais imagens ficam localizadas a 30cm do teto onde só poderiam ser visualizadas por alguém que estivesse flutuando. Não há como observá-las de qualquer lugar do chão ou de cima do leito. O estudo é cego, médico e paciente não sabem quais figuras estão ali.

Os leitos são constantemente monitorados e, caso algum dos internados sofra uma parada cardíaca, seus relatos serão investigados posteriormente. Após a recuperação do paciente, um questionário embasado na Escala de Greyson – com perguntas formadas por componentes cognitivos, emocionais, transcendentais e paranormais –, será aplicado para classificar sua experiência como uma EQM padrão ou não.

Caracterizada a experiência como uma EQM padrão, inicia-se uma segunda etapa da pesquisa. A versão do paciente sobre os acontecimentos vivenciados durante a parada cardíaca será gravada e analisada cuidadosamente com o intuito de identificar se o investigando relata fatos ou ocorrências que se desenrolaram durante o período de parada cardíaca. Entre outras evidências, será verificado se há menções às figuras expostas nas prateleiras, ou seja, se o paciente, aparentemente de fora do corpo, conseguiu ver as figuras. O médico e professor do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFJF, Carlos Mourão, outro integrante do grupo, explica que, além da aplicação da escala de Greyson e do acompanhamento dos relatos, diferentes testes neurológicos e psicológicos são feitos para descartar variáveis que poderiam desacreditar a veracidade das narrativas, como doenças neurológicas ou transtornos psiquiátricos.

Leonardo Miana diz que, nos dois anos de aplicação da pesquisa, a expectativa é de se obter de 50 a cem casos de parada cardíaca com sucesso na reanimação e na recuperação do paciente.

“Destes, esperamos que, pelo menos, 10% relatem experiências de quase-morte.” Os números foram estimados de acordo com dados estatísticos observados em outros estudos.

Para o pesquisador, mesmo que apenas um ou dois pacientes apresente evidências consistentes de percepções verídicas durante o período de inatividade cerebral, haverá um forte indicativo de que mente e cérebro são coisas distintas e, portanto, o fenômeno das EQMs não encontraria explicação nas teses convencionais às quais veem a consciência humana como um produto gerado exclusivamente pelas atividades cerebrais.

Já na hipótese de as vítimas de EQM não fornecerem evidência de percepção verídica durante a parada cardíaca, várias suposições seriam pertinentes. Entre elas, uma encontra razoável aceitação, a de que, no momento da parada cardíaca, algumas descargas elétricas ainda em atividade no cérebro resultariam na produção cognitiva de imagens, sensações, emoções, culminando naquilo que se convencionou chamar de EQM. Também há a hipótese de que a experiência quase-morte seja uma criação mental involuntária atuando como um mecanismo de defesa psicológica frente a uma situação ameaçadora como a morte.

Outra suposição para explicar o fenômeno – bastante controversa, pois não há evidências sustentáveis – é de que o cérebro poderia manter algumas de suas funções mesmo na ausência de oxigenação. Tal constatação, segundo os especialistas da pesquisa, traria grande reviravolta na medicina, podendo resultar em novos procedimentos na área da saúde.


QUESTÃO MENTE-CÉREBRO

Qualquer que seja o resultado dos estudos, a certeza é de que a questão “mente e cérebro” não estará solucionada. Para o professor Carlos Mourão, este será apenas um novo dado, somando-se aos de outras pesquisas da área. “Será mais um tijolinho para ajudar na construção da obra do conhecimento.” O professor do Departamento de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas (ICH), Saulo Araújo, também entende que a ciência está longe de decifrar as questões envolvendo mente e cérebro, presentes na filosofia há mais de dois mil anos. “A corrente reducionista acredita que no dia em que conhecermos todo o cérebro, compreenderemos a mente, a consciência em sua totalidade, mas isso pode não ser verdade.”

Outro participante do grupo, o professor do Departamento de Filosofia do ICH, Gustavo Castañon, ressalta que independentemente das conclusões do projeto, a grande contribuição desta pesquisa será a de incorporar à arena da investigação científica um problema antes abordado simplesmente como um conjunto de relatos místicos.

Sabe-se atualmente que as atividades mentais estão habitualmente relacionadas com atividades cerebrais. “Por exemplo, quando vejo, lembro ou imagino algo, há ativações de certas áreas cerebrais relacionadas a estas funções. Mas a partir daí, não é possível concluir se o cérebro produz estas atividades mentais ou se na verdade ele é um veículo para manifestação da mente, que teria uma origem extracerebral”, esclarece outro coordenador do grupo, o professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, Alexander Moreira de Almeida. As pesquisas de imageamento cerebral só apontam que certas experiências mentais acontecem juntamente com ativações de determinadas áreas do cérebro, mas não podem ainda dizer qual delas é a causa e qual é o efeito.


ESTÁGIO DA PESQUISA

No exterior, a pesquisa Aware (sigla em inglês de awareness During Resuscitation), coordenada pelo britânico Sam Parnia, da Universidade de Southampton, já obteve cerca de dois mil relatos de experiências de quase-morte, desde seu início em 2009. Nenhum deles foi divulgado, pois se espera a combinação de um número ainda mais expressivo de depoimentos para a maior confiabilidade e consequente publicação dos resultados.

O projeto Aware possui a colaboração de 25 centros de pesquisa espalhados pela Europa, Estados Unidos e Canadá, sendo a UFJF a única entidade participante do grupo fora da Europa e da América do Norte. Aqui, os trabalhos ainda estão em fase de planejamento e testes e aguardam a liberação do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para serem iniciados. No momento, acadêmicos do curso de Medicina fazem visitas à Santa Casa de Misericórdia, único hospital da cidade que já possui as prateleiras com as figuras instaladas, para saber se os pacientes dos leitos da UTI tiveram paradas cardíacas. Os hospitais Universitário, Monte Sinai, Albert Sabin e João Felício em breve farão parte da pesquisa.


EQUIPE BRASILEIRA

Alexander Moreira de Almeida – Professor Adjunto de Psiquiatria e Semiologia da Faculdade de Medicina da UFJF. Alex.ma@ufjf.edu.br

Leonardo Augusto Miana – Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da UFJF. leonardomiana@gmail.com

Carlos Alberto Mourão Júnior – Professor Adjunto de Fisiologia do ICB da UFJF. carlos.mourao@ufjf.edu.br

Saulo de Freitas Araújo – Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFJF. saulo.araujo@ufjf.edu.br

Gustavo Arja Castañon – Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UFJF. gustavocastanon@hotmail.com

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